Publicado em

Moçambique, um lugar para a poesia, por Fátima Mendonça

Posfácio das edições moçambicanas de Sangue negro, de Noémia de Sousa: 2001 (AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos), e 2011 (Ed. Marimbique), revisto pela autora Fátima Mendonça, em agosto de 2016, para a Editora Kapulana.

 

UMA PEDRADA NO CHARCO

            Se retomo neste texto o título do ensaio de Augusto dos Santos Abranches, é porque me parece justo introduzir, neste lugar, a percepção que o mesmo teve do papel que a poesia moçambicana poderia vir a representar, nos finais dos anos quarenta, num pós-guerra marcado por profunda transformação de mentalidades.1[i]

            Com efeito, Augusto dos Santos Abranches poucos anos transcorridos sobre a sua chegada a Moçambique, tomando como modelo a produção literária de Cabo Verde – que já então se autonomizava –, lamentava:

(…) em vez de conhecer e integrar-se nesse assombroso movimento literário que está rompendo no arquipélago de Cabo Verde, criação essa poética até na angústia que as ilhas asfixiam, (…); criação essa poética até na revolta e no subjugamento, Moçambique dorme ou mede as suas divagações pela intensidade do luar da noite” (…). Para Moçambique, (…), o exemplo de Cabo Verde pode e deve ser um estímulo para a criação da sua literatura, um abraço irmão. Pode e deve ser a indução do seu lugar para a poesia.2

            Poucos anos depois desta sua intervenção, Augusto dos Santos Abranches foi ‘surpreendido’ por um poema publicado no jornal O Brado Africano, em Fevereiro de 1949, com o título “Poesia não venhas!”, assinado com as iniciais N. S. Entusiasmado com a ‘descoberta’ refere no jornal Notícias:

Foi pois com uma surpresa e uma alegria desmedidas que topámos no semanário de Lourenço Marques, O Brado Africano, com o poema “Poesia não venhas!” Que N. S. assina. A primeira reacção foi a de estarmos em presença de um plágio. Para isso, o ritmo do poema nos convidava. Mas a nossa lembrança, por mais esforçada que fosse, não conseguia encontrar nos seus esconderijos, que Freud classificou, nada que elucidasse onde e por quem poderia ter sido escrito o poema. Cremos pois que N. S. é e o seu autor (…) Autor ou autora, esclareça-se.3

            Embora a própria Noémia de Sousa tenha valorizado este episódio, há poucos anos, em entrevista a Nelson Saúte4, afirmando que “se não tivesse surgido um Augusto dos Santos Abranches a chamar a atenção para o meu nome talvez permanecesse desconhecida até hoje”, penso que o fenómeno que constituiu – e constitui ainda hoje – a recepção de meia centena de poemas, dispersos pelas páginas de O Brado Africano – coligidos numa brochura mimeografada, distribuída por amigos – só pode ser explicado por causas mais profundas.

            Como Rui Knopfli acentua, em evocação que faz desse período, o marasmo a que estava votada a produção literária, nos finais da década de 40, tornava já inaudível o eco de Rui de Noronha e, as manifestações literárias que se lhe seguem, constituíam apenas “o prolongamento, quase sempre anémico, de estilos e hábitos metropolitanos, ainda quando incidem sobre a realidade circundante pois raramente excedem o relato externo e superficial de um exotismo de fachada. É a época dos batuques sensuais, dos poentes cor de fogo e das palmeiras esguias e ondulantes;”5

            A opinião de Rui Knopfli poder-se-á aplicar a autores como Caetano Campos, cujo livro de poemas Nyaka (húmus), (1942), revela tendências próximas da poesia negrista, exploradas mais tarde pelo luso-tropicalismo, assim como a muita da poesia dispersa pela imprensa da época e, que de alguma forma, esgotavam a dinâmica literária protagonizada pela geração de letrados, que emergira de O Africano e de O Brado Africano, nas décadas de vinte e trinta, de que João Albasini e Rui de Noronha – entre outros – são representantes.

            A poesia de Noémia de Sousa, que aliás já se iniciara em 19486, indiciava pois uma nova atitude estética que, como a maior parte dos movimentos e correntes literárias, não pode ser dissociada de razões de ordem histórica. Entre muitas razões prováveis parece-me importante salientar o clima provocado pelas alterações históricas determinadas pelo final da segunda guerra mundial, a que se juntaram condições políticas específicas, provocadas pela candidatura de Norton de Matos (opositor de Salazar) à presidência da República em Portugal, em 1948. A própria Noémia de Sousa, foi participante ativa, com João Mendes e Ricardo Rangel, no movimento cívico e político que, aproveitando a ‘abertura’ política que antecedeu as eleições de 1949, criou em Moçambique uma extensão do MUD, (movimento unitário com ligações, hoje reconhecidas, com o Partido Comunista Português) o que, logo a seguir – passada a pseudoabertura salazarista – provocou a sua prisão e a deportação de João Mendes e de outros membros da organização7. O sentimento de resistência ao colonialismo, já presente noutros sectores da sociedade colonizada, estava pois a alargar-se a grupos provenientes da pequena burguesia urbana africana e europeia. Este sentimento transita para as formas literárias, assumindo contornos ideológicos, que projetam a rejeição do carácter colonial do contato com Portugal.

            Alguma desta literatura emergente, deixa perceber a sedução pela ideia de uma síntese futura entre duas visões do mundo, duas formas de expressão: a africana e a europeia. Pode-se dizer que esta foi a proposta – embora ténue – de Orlando Mendes em Trajectórias (1940), Cinco poesias do mar Índico [conjunto de poemas publicados na Seara Nova em 1947] e Clima (1959) assim como de João da Fonseca Amaral e de Rui Knopfli na sua primeira fase. É o próprio Rui Knopfli quem recorda que Orlando Mendes, constituiria “a linha de cota que rompia e nos separava do soneto de importação e do verniz de um folclore postiço”, destacando igualmente o papel de João da Fonseca Amaral que, “um pé colocado na Polana aristocrática, outro mergulhado nas areias suburbanas do AIto-Maé” teve uma ação de elemento dinamizador e aglutinante da geração intelectual que amadureceria ao longo da década de cinquenta, sob a dupla influência de correntes estéticas modernistas e das ideologias pan-africanistas.8

            Com Noémia de Sousa, está-se perante uma poesia de onde emerge uma temática nova, associada a um discurso torrencial e emotivo, – uma “poética da voz”, como refere Ana Mafalda Leite9 – orientada para a afirmação negritudinista, o que em Moçambique, na época, assumia carácter inovador. Com a parte dos poemas de José Craveirinha, que dão continuidade e reelaboram esta orientação temática, estes poemas constituem hoje uma irrecusável referência para a história literária de Moçambique.

            No seu conjunto, a produção poética da década de cinquenta, adquire a forma de projeto de criação de um espaço literário próprio. Os jornais Itinerário, O Brado Africano e a iniciativa [sem continuidade] de Msaho vão constituir o suporte material desta ação, que adquiriu o aspecto de movimento político e cultural.

            Poder-se-á assim explicar a emergência de um grupo, com afinidades estéticas éticas, cuja ação se desenvolveria nesses finais de quarenta e início de cinquenta e a que estiveram ligados, de uma forma ou de outra, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar, o próprio Rui Knopfli, o pintor António Bronze e o hoje cineasta Rui Guerra, celebrizado pelo “cinema novo” brasileiro.

            Mas a riqueza deste período da história literária de Moçambique, reside no facto – de em simultâneo com esta, terem emergido igualmente outras tendências, a configurar outros grupos, que também procuravam formas de afirmação estética. Julgo ser importante destacar aqui a o núcleo surgido em torno de Reinaldo Ferreira, Cordeiro de Brito e Fernando Ferreira e da sua atividade de tertúlia, desenvolvida no café Scala. Do mesmo modo, a aproximação ao surrealismo, iniciada por Duarte Galvão/Virgílio de Lemos – ainda não suficientemente valorizada pelos estudos realizados – permite avaliar o carácter de abertura e de modernidade da produção poética desta época10. Creio que a iniciativa de Mshao levada a cabo por Virgílio de Lemos (editor com Domingos de Azevedo e Reinaldo Ferreira), Antero Machado (diretor artístico) e Eugénio de Lemos (secretário), representou, ao fim e ao cabo, uma forma de aglutinar tendências diversificadas naquilo que designaríamos hoje como a comunidade imaginada (incluindo a representação da literatura oral e de outras formas de arte). Não admira portanto, que, no primeiro (e único) número de Msaho, o maior destaque tenha sido para “Poema da infância distante” de Noémia de Sousa, porquanto este se adequava tematicamente à configuração utópica da proposta de Msaho, contida na nota de abertura:

contra todas as previsões e contra toda a expectativa temos neste momento a consciência de que a poética de “Msaho” não constitui uma corrente distinta diferenciada com raízes vincadamente moçambicanas (…) mas o que nesta primeira folha revela ainda desencontro estético, formal ou expressivo numa segunda folha poderá tornar-se homogéneo e vir a definir uma força resultante do contacto com elementos nativos, que hoje ainda formam uma massa disforme dependente e incolor.11

            Este fenómeno de identificação produziu-se igualmente a partir da Cabo-Verde, S. Tomé e Angola, onde toda uma geração de intelectuais surge na cena cultural e política de tal forma que, ao mesmo tempo que acolhia tendências estéticas oriundas dos vários modernismos, se enquadrava ideologicamente em formas de problematização, ou de contestação do sistema colonial e dos seus epistemas, orientadas para projeções identitárias.

 

DO ALHEIO AO PRÓPRIO: CONSTRUIR A TRADIÇÃO

            Vários estudiosos da literatura moçambicana têm chamada a atenção para o carácter de modernidade das manifestações literárias ocorridas em Moçambique após 1945.12

            Contudo, na maior parte dos casos, as convergências com movimentos literários contemporâneos, foram percebidas como meras influências sem que, de um ponto de vista comparatista, se atentasse nas formas como, sucessivamente, movimentos como a Negritude, Modernismo Brasileiro, Presença ou Neorrealismo, foram sendo recebidos e transformados pelos autores moçambicanos.

            Parece-me que, os níveis de recepção das teorias que enformaram estes movimentos, foram variados e será necessário delimitar e caracterizar o quadro histórico, social e cultural de recepção das ideias estéticas e éticas por eles veiculadas.

            Isso permitirá mostrar a convergência, na literatura moçambicana, de elementos estéticos que, nas literaturas de referência se revelaram incompatíveis, como, por exemplo, a integração simultânea de processos oriundos da estética presencista e neorrealista ou negritudinista, em contextos ideológicos marcados pelos nacionalismos africanos, alimentados por concepções marxistas.

            A poesia de Noémia de Sousa, diferentemente da de Rui de Noronha, cujo papel predominante foi o de referência fundadora, (tenha-se em vista a recepção da poesia de Noronha, desde a sua morte em 1943), vai constituir modelo e apresentar reiterações futuras, intertextualmente formuladas sob a forma de referências diretas, alusões ou apropriações temáticas, imagísticas e retóricas. Contudo, desenha-se já o que os aproxima, a ocupação de um espaço duplo: o da tradição literária portuguesa e aquele que é instituído pela sua própria ‘performance’. Como é que esta dupla herança se articula de modo a que os textos se possam assemelhar aos dos seus antecedentes portugueses, mas sejam diferentemente “negros”, para retomar a expressão de Pires Laranjeira13 ou pelo menos “não portugueses”? (isto é, Outros).

            Ocorre-me recorrer a Henry Louis Gates Jr., quando reflete sobre a problemática geral da alteridade do texto “negro”:

Canonical Western texts are to be digested rather than regurgited, but digested along canonical black formal and vernacular texts. The result, in work such as that by Aimé Césaire, Ralph Ellison and Soyinka, is a literature ‘like’ its French or Spanish, American or English antecedents, yet differently ‘black’.14

            Para melhor explorar esta questão gostaria de chamar a atenção para um elemento que, sendo comum a outros poetas moçambicanos, produz na poesia de Noémia de Sousa, um efeito que me parece ter sido decisivo, para o papel de modelo que veio a assumir nos diferentes níveis de recepção que obteve. 

            Trata-se da forma como, através de varias estratégias intertextuais, historiciza os textos encaminhando-os para a expectativa que rodeia um certo espaço (África) e um certo tempo ideológico (a emergência dos nacionalismos africanos).

            Se tomarmos como exemplo o Poema a Rui de Noronha, poder-se-ão verificar analogias com dois poemas do poeta neorrealista português Joaquim Namorado, intitulados “Navegação à vela” e “Manifesto”15.

            Para mostrar o trabalho intertextual realizado por Noémia de Sousa, reterei uma das características da poesia de Joaquim Namorado desta fase, assinaladas por Carlos Reis (447- 456)16 i.e. o carácter fortemente injuntivo e emocional da enunciação o que, em sua opinião, não permite a eficácia ideológica anunciada pelo programa neorrealista. Essa característica está efetivamente presente em “Navegação” à vela:

 

Vai

pelos caminhos seguros

nos vapores das companhias

com a certeza de aportar…

deixa

que eu continue sendo

o último tripulante

da fragata naufragada

neste mar dos tubarões16

 

            Ora Noémia de Sousa utiliza no seu “Poema a Rui de Noronha” a estrutura vai (tu) vs deixa (eu) e a oposição semântica implícita do poema “Navegação” à vela, mas amplificando as potencialidades nela contidas, e que Joaquim Namorado limitou, como bem refere Carlos Reis (454)16, à construção da imagem abstrata do poeta arauto – deixa que eu continue sendo o ultimo tripulante. O resultado no poema de Noémia de Sousa (…) Mas o archote, murcho e fraco/que tuas mãos diáfanas mal logravam suster/deixa que nós o levemos! é produzido pela amplificação sistemática dessa oposição em que a imagem do poeta arauto de Joaquim Namorado se transforma, no texto de Noémia de Sousa, em força coletiva (Nós), descrita e nomeada (África/nação) nossa terra natal/nossa África/nossas brônzeas, fortes mãos/revolta nascida nas veias entumecidas/

            Do mesmo modo a sequência metafórica próxima da alegoria – “o último tripulante/fragata naufragada/mar de tubarões” – é transformada numa cadeia de metáforas a partir dos lexemas archote-fogueiras-chama-lume-chama que se articulam com a representação do sujeito brônzeas, fortes mãos – revolta – peitos esmagados, criando um efeito referencial ausente do poema de Joaquim Namorado.

            Também a construção do alocutário é amplificada pela apropriação e transposição de elementos representativos da estética neorrealista, isto é pela oposição entre contemplação e ação, presentes no poema “Manifesto”:

 

Deixa os suspiros profundos

e parte a guitarra mágica que te deixou D. Juan…

deixa-me esse ar de sombra de trapista!

Vem para a rua, para o sol, para a chuva!

Ama sem literatura, como um homem!

Deixa dormir os papiros

na meditação das múmias faraónicas.

– A vida é a única lição.18

 

            O resultado é, em Joaquim Namorado, a identificação militante com uma realidade abstrata, daí advindo, creio, a falta de eficácia referida por Carlos Reis, enquanto no poema de Noémia de Sousa se constrói um modelo mais concreto e humanizado Rui de Noronha/meu irmão/sangrando de amores/.

            Esta característica historicizante da poesia de Noémia de Sousa (e eu diria mesmo, de grande parte da poesia moçambicana) é referida por Pires Laranjeira, no bem documentado estudo sobre a negritude africana de língua portuguesa, nestes termos:

O discurso do negro é pois, injuntivamente mais preciso, descritivo e ideológico que o do Neo-realismo português, em condições de publicação e divulgação tanto ou mais agrestes, mas sem abandonar uma estratégia discursiva de cariz estético tradicional, modelada pela pressão dos circunstancialismos conhecidos.19

            Ao amplificar as potencialidades do hipotexto (neorrealista) Noémia de Sousa introduz no novo texto (moçambicano) uma forte historicidade, religando-o a um espaço particularizado (Moçambique) e a um tempo concreto (o das explosões nacionalistas africanas):

 

“nossas almas passivas aprendem a querer/com força, com raiva/e se erguem guerreiras, para a dura luta/” “Que fizeste de África, poeta?” O poema marca a História e faz-se sua representação.20

 

EM HARLÉM, NO CORAÇÃO DA MAFALALA: TRANSFORMAR O MUNDO

            Em Moçambique, assim como em Angola, a estética da Negritude teve repercussões, embora a poesia marcada por alguns dos seus códigos discursivos ultrapasse os códigos ideológicos, temáticos e estéticos característicos do Movimento, tal como se manifestaram, quer na poesia da Renascença Negra, quer na poesia da Negritude de Paris, e se aproxime de gestos literários próximos de outros movimentos modernos, nomeadamente o Neorrealismo português e o Modernismo brasileiro.

            Surgida com alguns anos de atraso, relativamente ao Movimento nas suas manifestações americanas ou parisienses, por razões históricas compreensíveis, coube às gerações dos anos cinquenta de Angola e Moçambique, desenvolver o que, na poesia do poeta são tomense Francisco José Tenreiro, se pressentia: uma corrente estético-literária sintonizada com as tendências de ruptura que orientaram os vários modernismos, tendo chegado, nalguns casos, a excedê-los.

            Ultrapassando a representação essencialista da identidade negra, tão cara a Senghor, esta poesia acaba por integrar elementos ideológicos que lhe permitiram funcionar simultaneamente como Manifesto estético e Manifesto político.

            A poesia de Noémia de Sousa é, deste ponto de vista, paradigmática pois orienta-se para uma temática marcadamente nova (no contexto moçambicano) onde recorrentemente emerge África desdobrada em vários símbolos (Mãe, Energia, Redenção) do mesmo modo que os ecos longínquos e distantes de Harlém nela perpassam, como acontece no poema “A Billie Holiday, cantora”: “(…) e então/tua voz minha irmã americana/veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão/estranha, profunda, quente/vazada em escravidão (…)”

            Essa inovação temática desenvolve-se para uma insistente representação do quotidiano suburbano: o contratado, o estivador, o mineiro, a prostituta interligam-se emblematicamente num universo imagístico sustentado pela imprecação violenta de um Eu que, sucessivas mutações metonímicas, conduzem à integração no coletivo, como acontece em “Patrão”:

 

(…)

pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu

quem subiu aos andaimes,

quem agora limpa e a põe tão bonita (…)

(…) E o suor é meu

a dor é minha

o sacrifício é meu

a terra é minha

e meu é também o céu (…)

 

            Estas características de poesia de Noémia de Sousa, a que muitas vezes se vem juntar um registo injuntivo, fazem dela uma escrita fixada na ação, em que o projeto de empenhamento é constantemente assumido. Para tal, contribui também a oposição insistente Eu-Nós vs Tu, Eu/Nós vs Vós, onde o estatuto de ‘superioridade’ do Eu/Nós se manifesta, sobrecarregado de uma emocionalidade que nos recorda (sempre) gestos literários do neorrealismo, concentrando, por isso, no texto uma força utópica que marca de maneira particular a sua poesia.

            É por esta via que os poemas de Noémia de Sousa introduzem na poesia moçambicana um discurso simultaneamente lírico (no sentido que lhe atribui Paul Valéry de “desenvolvimento de uma exclamação”) e épico, o que vai determinar o seu papel de vanguarda estética e justificar mais tarde a sua inclusão no discurso nacionalista africano moderno.

            Na verdade creio ser este aspecto que explica o facto de, embora disseminados e não publicados em livro (ainda que a brochura mimeografada tenha circulado o que, em si, também é significativo) a poesia de Noémia de Sousa se tenha insinuado, como referência, no campo literário, configurado pela relação poesia/ação, instituída pela série ideológica. Com efeito, podemos verificar que Noémia de Sousa figura em praticamente todas as antologias de poesia africana de língua portuguesa, desde os anos cinquenta ou em traduções, vinda a lume – fora do espaço colonial –, antes da independência de Moçambique as quais, de forma direta ou indireta, projetavam elementos ideológicos da esfera dos nacionalismos africanos. Do mesmo modo, se, percorrermos páginas/cadernos ou revistas literárias mais recentes, dentro e fora de Moçambique, encontraremos esses fios de memória a percorrer novos textos (poéticos ou não), ancorados na necessidade de dar expressão a variadas emoções.

            Parafraseando Alberto de Lacerda,21 uma outra figura da ‘República das Letras’ [moçambicanas/portuguesas?], contemporâneo de Noémia de Sousa, “o poema além do prazer que dá (…) revela mais profundamente o homem e a vida, obriga-o a viajar, e de uma viagem volta-se sempre diferente”, diria que há meio século estes poemas (finalmente reunidos) proporcionam a diversas camadas de leitores e de leitoras esse prazer ou essa viagem. Os regressos e as diferenças, que se operaram em cada leitura, estão indelevelmente inscritos nas formas como a partir delas – leituras –, se interrogam e des(constroem) representações, singulares ou coletivas da(s) realidade(s). E isso, estou convencida, (se afinal ela não chegou ao fim, como se anunciou) só a História poderá responder ou confirmar.

Maputo, setembro de 2001.

Fátima Mendonça
Professora aposentada da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Investigadora integrada do CLEPUL (Centro de Culturas e Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa), autora de diversos ensaios sobre literaturas africanas e literatura moçambicana

 

_______________________

Notas e referências bibliográficas

1 Augusto dos Santos Abranches deixou o seu nome ligado à geração coimbrã do neorrealismo. Dirigiu em Coimbra a Livraria Portugália (que funcionou igualmente como editora) a qual se tornou, nos finais da década de 30, um espaço de convivência de escritores como Fernando Namora, João José Cochofel, Joaquim Namorado. E provável que tenha também tido atividade nos movimentos realistas Presença e Vértice. Por volta de 1943 ou 1944 veio para Moçambique, tendo-se empregado na Livraria Minerva Central de Lourenço Marques. Ainda em 1944 cria Sulco “Página de Artes e Letras do Notícias de Domingo para Gente Moça” de que saíram 16 números (2/7/44 a 4/3/45). Passou a orientar a revista Itinerário (1945/1955), na sua ultima fase, tendo também dirigido o semanário Agora (1948) mandado suprimir por ordem do governador-geral. É a Augusto dos Santos Abranches que se deve a divulgação em Moçambique de autores portugueses, brasileiros, cabo-verdianos e angolanos, cuja escrita se deixa impregnar pelas tendências modernistas. Foi um ativo dinamizador da atividade literária da geração que emergiu do pós-guerra em Moçambique papel que Rui Knopfli assinala em crónica publicada depois do seu falecimento no jornal A Voz de Moçambique (25/5/63). Partiu para o Brasil em 1956 tendo falecido em São Paulo em 1963. Deixou publicados dois livros de poemas (Poemas de hoje, 1942) (Tufão, 1943) e uma peça de teatro (As várias faces, 1943) para além de uma assinalável produção ensaística dispersa na imprensa moçambicana, cujo estudo será um contributo para a história literária de Moçambique. Cf. Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996.

2 Augusto dos Santos Abranches – “Moçambique lugar para a poesia” In Teses apresentadas ao I Congresso realizado de 8 a 13 de Setembro de 1947. Lourenço Marques, Sociedade de estudos da Colónia de Moçambique, [1947] Cf. Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996, p. 29-31.

3 Citado em Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996 p.18.

4 Nelson Saúte. Os habitantes da memória. Lisboa:

5 Rui Knopfli – “Breve relance sobre a actividade literária”. Facho, nº 30, (Lourenço Marques): Ed. Sonap, Set/Out, 1974.

6 Canção fraterna foi o primeiro poema que Noémia de Sousa publicou. As circunstâncias da sua publicação são relatadas pela autora em entrevista a Michel Laban. Cf. Michel Laban Moçambique encontro com escritores. Vol I. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 1998, p. 236-346.

7 Em 1985, tive o privilégio de participar, com outros colegas da UEM, num Seminário intitulado Ideologias da Libertação Nacional dirigido por Mário Pinto de Andrade em Maputo. Nessa altura, fui alertada por Mário de Andrade para a existência de uma nota do Governo Geral de Moçambique em que o nome de Noémia de Sousa aparece associado aos de Ricardo Rangel, João Mendes e Rui Guedes como fazendo parte de uma “Comissão Central” que pretenderia criar uma “Organização Comunista Moçambicana”. Quando a pude questionar diretamente, sobre este assunto, Noémia de Sousa deu-me a indicação, creio que por modéstia, de que Cassiano Caldas (que eu conhecia, através de Mário Barradas desde os finais dos anos 60) me poderia esclarecer melhor sobre todo este período. Gravei então uma longa entrevista com Cassiano Caldas em Maputo, que me forneceu detalhes importantes sobre a sua passagem pelo itinerário, a constituição do MUD em Moçambique, em que participara, das relações com o PCP, assim como do papel que Noémia desempenhara nessa altura. Mais tarde, forneci estas informações ao meu colega Pires Laranjeira que as recenseou em Literaturas africanas de expressão portuguesa, Lisboa: Universidade Aberta 1995, p. 260. Em 1999 Dalila Cabrita Mateus publica A luta pela independência. A formação das elites fundadores da FRELIMO, MPLA e PAIGC, [Lisboa: Ed. Inquérito]. Trata-se de uma tese de mestrado circunstanciada que, para além de confirmar os dados de Mário de Andrade e Cassiano Caldas, reconstrói, a partir dos ficheiros da PIDE, a trajetória política, [aparente e injustificadamente esquecida] de Noémia de Sousa, com continuidade em Lisboa, assim como a de alguns dos protagonistas desse movimento, nomeadamente João Mendes [que reaparece na vida política e social de Moçambique, depois de 1975] e Sofia Pomba Guerra que vai reaparecer na Guiné-Bissau com ligações ao PAIGC.

8 Rui Knopfli. Op. cit. A poesia de Fonseca Amaral foi reunida e publicada postumamente. Cf. Poemas por João Fonseca Amaral. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999.

9 Ana Mafalda Leite. Voz, origem, corpo, narração – poesia de Noémia de Sousa In: Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Ed. Colibri, 1998, p. 99-110.

10 Foi feita recentemente uma primeira sistematização da poesia de Virgílio de Lemos por Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Seco. Cf. Virgilio de Lemos & heterónimos. Eroticus Moçambicanus – Breve antologia da poesia escrita em Moçambique, (1944-1963). Rio de Janeiro: Nova Fronteira – UFRJ, 1999.

11 Msaho. Folha de poesia. (1) Lourenço Marques, 25/10/952. A nota de abertura com o título apresento é assinada por Virgílio de Lemos, principal dinamizador do projeto. Os desenhos do pintor João Ayres e a apresentação gráfica denotam as preocupações modernistas subjacentes a Msaho. Não deixa de ser interessante verificar que, 35 anos mais tarde, num contexto histórico e político completamente diferente, a mesma necessidade se manifesta com os cadernos literários Xiphefo, iniciativa de um grupo de professores/poetas de Inhambane, que se mantém desde 1987.

12 Cf. Mário de Andrade – Prefácio a Cadernos de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Lisboa: CEI, 1953; Manuel Ferreira – Literaturas africanas de expressão portuguesa. (2 vol.) Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977. No reino de Caliban lll. Lisboa: Plátano, 1985; Alfredo Margarido Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980; Fernando J.B. Martinho – O negro norte-americano como modelo na busca de identidade para os poetas de África de língua portuguesa. In: Les litteratures Africaines de langue portugaise – À Ia recherche de l’identité individuelle et nationale. Actes du colloque international. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1985, p. 523-530; Gilberto Matusse – A representação literária da identidade moçambicana: Craveirinha. Scripta, 2° semestre, 1997, vol 1, nº 1, (PUC Minas), p. 15-195; Orlando Mendes – Sobre literatura moçambicana. Maputo: INLD, 1978; Fátima Mendonca – Literatura moçambicana – a história e as escritas. Maputo: Faculdade de Letras e Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988; Francisco Noa – Literatura moçambicana: Memória e conflito. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1997. Manoel de Souza e Silva – Do alheio ao próprio a poesia em Moçambique. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

13 Cf. Pires Laranjeira – A Negritude Africana de Língua Portuguesa. Porto: Afrontamento, 1995.

14 O termo ‘black’ é utilizado por Gates e por outros críticos afro-americanos, tendo como referência o contexto histórico dos Estados Unidos e a atual problemática do multiculturalismo e das minorias. As identidades ‘black’, ‘chicana’, ‘chinese american’ ou ‘native american’ representam, na óptica destes autores uma construção cultural – portanto histórica – extensiva a outras categorias sociais minoritárias como género ou orientação sexual. A sua aplicação ao caso moçambicano não é, por isso, pacífica, valendo apenas como homólogo de uma alteridade manifesta. Cf. Henry Louis Gates -. In: Black literature and literary theory. New York: Methuen, 194, p. 1-24.

15 Joaquim Namorado. Incomodidade. Atlântida: Coimbra, 1945. O poéma Manifesto foi publicado [por Noémia de Sousa?] no jornal O Brado Africano em 3/2/51 p.3.

16 Carlos Reis – O discurso Ideológico do Neo-Realismo Português Coimbra: Livraria Almedina, 1983.

17 Op. cit. p. 40.

18 Op. cit. p. 59-60.

19 Pires Laranjeira. Op. cit. p. 486.

20 Esta questão foi tratada por mim num estudo mais desenvolvido intitulado A literatura moçambicana em questão, cuja primeira versão foi publicada na revista Discursos, Fev. 1995, n° 9, [Coimbra: Universidade Aberta] p. 37-54. Uma versão posterior foi publicada em Taíra, Revue du Centre de Recherche d’Etudes Lusophones et Intertropicales. 1997, n° 9, CRELIT, [Université Stendhal-Grenoble 3].

21 Cit. por Fernando J.B. Martinho – Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Colibri, 1996, p. 108. O autor cita o ensaio de Alberto Lacerda intitulado Lugar para a poesia publicado no fascículo 1 de Távola Redonda, em Janeiro de 1950.

 Citar como:

MENDONÇA, Fátima.  “Moçambique, lugar para a poesia”. Posfácio in: SOUSA, Noémia. Sangue negro. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. [Vozes da África].