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A vida verdadeira de Domingos Xavier: lembranças e homenagens.

Os seguintes textos sobre o romance A vida verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, que compõem a edição brasileira da Kapulana, com lançamento em 19 de junho de 2024,  representam os sentimentos e pensamentos de amigos e estudiosos da obra do renomado escritor angolano.

PEPETELA [Angola]

            A vida verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira, é o primeiro romance retratando a luta de libertação de Angola. É, portanto, um livro seminal na literatura angolana. Já não seria pouca coisa. Além do mais, baseia-se numa sequência lógica de anteriores contos de Luandino que, em passinhos aparentemente mais mansos, vão colocando os grãos de areia necessários para o surgimento do livro, sobretudo com a descrição das vidas de sofrimento dos colonizados perante a brutalidade do regime proto-fascista de Salazar, do racismo, das injustiças perpetradas pelos auto-proclamados civilizados e civilizadores. O romance é a consagração do que apreendemos nos contos. Claro que não poderia ser publicado por nenhuma gráfica de Angola ou Portugal, e foi passando em cópias sucessivas e clandestinas por um grupo interessado de angolanos, como um estandarte que deveria ser empunhado na luta inevitável pela independência nacional. Inspirou para a acção os que o puderam ler e encorajou alguns que tinham a aspiração de escrever sobre o mesmo tema.

            Como diria alguma personagem de Jorge Amado: Saravá, Luandino.

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CARMEN TINDÓ SECCO [Brasil]

A vida verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira (1961) é um clássico da literatura angolana. Essa obra me atrai por seu questionamento aos regimes opressores e pela intertextualidade com a poesia de Agostinho Neto e o cinema de Sarah Maldoror, particularmente com o filme Sambizanga (1972), adaptação do referido romance. Tanto na narrativa cinematográfica, como na romanesca, o protagonista Domingos Xavier, revolucionário preso pela polícia portuguesa, é, arbitrariamente, levado para o calabouço. Como no poema “Mussunda Amigo”, de Agostinho Neto, dá sua vida pela liberdade de Angola. Mussunda é o alfaiate que politiza a consciência dos demais.

Em Sambizanga e no romance, há a utopia da libertação de Angola e a crítica ao colonialismo português. Contudo, os enredos tomam perspectivas diversas. No romance, o narrador, a cada capítulo, dá voz a um personagem. No filme, imagens-ações, direcionadas pelo olhar de Maria, esposa de Domingos, vão escoltando seu deambular à cata do marido. A canção “Caminho do Mato”, cuja letra é um poema de Agostinho Neto, traz poesia ao filme, seguindo a busca angustiada de Maria, à medida que denuncia o trabalho forçado imposto pelo regime colonial.

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 RITA CHAVES [Brasil]

Um dos primeiros livros publicados no Brasil na célebre coleção Autores Africanos, A vida verdadeira de Domingos Xavier trouxe-nos o sobressalto gerado pelas grandes revelações. O encontro com Luandino Vieira trazia-nos o impacto de uma literatura que, sem descuidar do compromisso com a transformação que a realidade colonial exigia, avança no desejo de ir além do essencial programa daquele tempo naquele espaço: libertar Angola, fundar um país.

Situando-se dialeticamente no encontro entre a lealdade a valores éticos e a aposta em um poderoso senso estético, a força da obra está em uma linguagem apta a refletir os complexos movimentos de tantas vidas. Ao escrever sobre a vida de um homem, o Domingos do título, Luandino traz-nos o itinerário de uma mulher em confronto direto com a opressão colonial em todas as suas dimensões. Assim, a estória de um herói popular combina-se exemplarmente com o percurso de sua companheira. Sem recorrer aos jargões, ele nos coloca diante de uma obra aberta à  perspectiva feminina, característica muito bem trabalhada em Sambizanga por Sarah Maldoror, a excelente diretora da adaptação para o cinema.

Só podemos celebrar a reedição dessa obra que salta no tempo e faz perdurar o impacto que nos levou, a tantos de nós, a “descobrir” Angola naqueles complicados anos que envolveram as lutas de libertação. Mais que um documento, ela permanece fundando Angola e multiplicando a força do imaginário que, entre verdades tão diversas, cerca sua geografia e sua história.

Citar como: VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. “Sobre a obra”. São Paulo: Kapulana, 2024. [Série Vozes da África]

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Nós, os do Makulusu: do fundo humano em cada caco, por Jacqueline Kaczorowski

 

Tantos pisam este chão que ele talvez
um dia se humanize. E malaxado,
embebido da fluida substância de nossos segredos,
quem sabe a flor que aí se elabora, calcária, sangüínea?
(“Contemplação no banco”, Carlos Drummond de Andrade)

Após anos de ausência das livrarias brasileiras, somos finalmente agraciados com uma nova publicação desta obra-prima: Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. O magro e denso romance angolano impacta desde a primeira frase e, como pode gerar certo estranhamento, nesta edição [1] são apresentados brevemente alguns elementos da narrativa com o objetivo de incentivar o leitor a caminhar por este labirinto refinado. Aquele que o percorrer perceberá seu esforço recompensado por uma obra que, não se rendendo a qualquer didatismo, aposta numa composição cuja elaboração ao mesmo tempo requer e oferece ferramentas para a sofisticação do olhar.

Nestes tempos em que presenciamos atônitos o ressurgimento de uma tendência global à intolerância e aos totalitarismos, dados a maniqueísmos de toda sorte, urge combater o afluxo e recorrer a exercícios de humanização. As redes sociais têm sido um bom exemplo de arena onde algoritmos ensinam a reduzir o outro: ali, via de regra, somos induzidos por certo sentido de urgência a não lhe reservar o direito ao erro, ao diálogo, ou mesmo ao processo de aprendizado, percurso que cada um trilha a seu tempo e que exige paciência. Sob aparente fugacidade, fixamos um momento do outro como dado acabado, interditando, assim, possibilidades de transformação. 

Diante de tal cenário, parece senso comum recorrer à sugestão do mergulho na literatura como remédio. A sensibilidade que aciona, o tempo que exige para contemplação, absorção e amadurecimento da apreciação, a identificação com o diferente que demanda e proporciona, a transformação de personagens diante de nossos olhos são algumas das faculdades que caminham na contramão do simplismo que facilmente se transveste em algoz. Recuperando a voz de Antonio Candido, o texto literário “não corrompe nem edifica (…); mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

Importa salientar, entretanto, que, apesar de todo o potencial de humanização que a literatura efetivamente comporta, nem sempre é esta a vocação que privilegia. Um exemplo pode ser encontrado na pena de outro grande escritor, o nigeriano Chinua Achebe, quando ensina que o “vasto arsenal de imagens depreciativas da África que foram coletadas para defender o tráfico de escravos e, mais tarde, a colonização, deu ao mundo uma tradição literária que agora, felizmente, está extinta; mas deu também uma maneira particular de olhar (ou melhor, de não olhar) a África e os africanos que, infelizmente, perdura até os dias de hoje”.

Vale recordar que, no final do século XIX, após a famigerada Conferência de Berlim, o acirramento das disputas territoriais exigia maior firmeza na ocupação das colônias, levando as metrópoles à criação de uma série de órgãos e mecanismos de controle dos territórios e de suas populações. O contexto angolano não foi exceção. Colonizado por Portugal, cujo império precário não teve a brandura que ainda defendem alguns, foi alvo de uma violência que também se expressou na constituição de um vasto repertório discursivo a serviço da dominação. Os “Concursos de Literatura Colonial” promovidos a partir de 1926 pela Agência Geral das Colônias, com alto investimento financeiro e o objetivo de “intensificar por todos os meios a propaganda das nossas colónias e da obra colonial portuguesa”, ilustram bem como a escrita literária passou a exercer função importante nesse quadro.

Ainda que tenha se prestado ao papel de instrumento a serviço da sujeição, a literatura também pôde ser tomada pelo avesso em seu potencial criativo e transformada em “arma que eu conquistei ao outro”, como define Manuel Rui, outro escritor angolano. Desde o século XIX é possível identificar, em Angola, manifestações literárias que desafiam o padrão proposto pelo opressor. No século XX já se verifica o desenvolvimento de um projeto literário autônomo, resultado do empenho de uma geração de escritores e intelectuais entre os quais podemos situar José Luandino Vieira.

Nascido em Portugal em 1935, muda-se cedo para Luanda, onde vive sua infância. É por seu compromisso radical com a luta pela libertação nacional que se torna cidadão angolano e adota o nome “Luandino”. Em decorrência de sua atuação é preso duas vezes e tem sua vida “hipotecada por muitos anos”, desde muito jovem. Conforme conta em seus Papéis da prisão, “do Aljube, em Lisboa, ao Campo de Trabalho no Tarrafal, passando por todas as cadeias disponíveis na nossa terra de Luanda, palmilhei doze anos da estrada da minha vida”. É nesta condição de exceção, portanto, que o autor desenvolve seu primoroso trabalho literário.

Suas memórias do cárcere, ao contrário do que seria esperado, sugerem um pacto com a liberdade capaz de extrapolar o espaço da cela e inscrever as ruas de Luanda e sua cultura popular em textos que, por meio da memória e da imaginação, ajudavam a substituir a vida, para tomar de empréstimo uma expressão do escritor. Confinado em espaços que impossibilitavam outras intervenções diretas, Luandino Vieira atuou dentro de seu “particular campo de acção – o estético”. Os resultados excepcionais demonstram a eficácia da apropriação da língua portuguesa como “despojo de guerra” e o empenho em construir uma voz narrativa que, desestabilizando a lógica da opressão, engendra novos modos de dizer a realidade.

Um dos frutos deste projeto literário é a escrita, em 1967, “de um só jacto”, deste romance singular, composto no Campo de Concentração do Tarrafal, onde Luandino Vieira passou oito anos. Imerso na severidade do “campo da morte lenta”, surpreende a trilha potente e lúcida que desenha para mostrar que “não há outros homens para com eles construir o mundo. É com esses mesmos que se fará – ou nunca se fará”. A capacidade de aderir radicalmente a um projeto ético e também se colocar habilmente na pele do outro, mesmo do mais antagônico, revela como a literatura pode, sim, vestir o manto diáfano da fantasia para combater a violência objetiva do real sem prescindir da “cortesia de dar a cada um o que lhe é devido”, lembrando novamente Achebe.

O início da leitura pode provocar um choque: que língua é essa que, ao mesmo tempo, sinto que conheço e desconheço? O que ela está me contando? Quem fala e de quem fala? Na primeira sentença somos lançados no meio de uma guerra, mas, logo em seguida, adentramos uma brincadeira em um dia de sol. O que aconteceu?

O leitor que aprender a ouvir o movimento do texto notará que um dos recursos utilizados pelo escritor é a justaposição de ideias, cenas e imagens que podem parecer desconexas. Ao longo da obra, no entanto, muitas delas são retomadas, desvelando aos poucos algumas associações complexas e sempre aprofundando sentidos. Com paciência é possível construir familiaridade com os procedimentos e perceber que alguns se assemelham àqueles do funcionamento da memória, que muitas vezes irrompe de maneiras imprevistas, nem sempre lineares.

Seguindo o movimento da memória de Mais-Velho, acionada pela dor, passamos a reconhecer sua voz e outras tantas que incorpora à sua, num emaranhado cada vez mais complexo, mas também mais nítido. Lembranças, projeções e muitas indagações são misturadas ao momento real que este narrador-personagem vivencia: sua caminhada em direção ao irremediável reconhecimento da morte de Maninho e do “viver de morte” que agarrou Paizinho. Nesta deambulação conhecemos os outros três protagonistas: Maninho, Paizinho e Kibiaka. A realidade asfixiante do colonialismo obriga os companheiros inseparáveis de aventuras infantis pelos capins do Makulusu a carregarem “o alegre caixão da nossa infância” na escolha de rumos inconciliáveis: Maninho, branco nascido na metrópole (assim como seu irmão Mais-Velho) integra o exército colonial português, escolha forçosa que defende com a ideia de que “só há uma maneira de a acabar, esta guerra que não queres e eu não quero: é fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”. Paizinho, meio-irmão mestiço dos dois, participa de ações clandestinas e acaba preso pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Kibiaka, amigo negro morador do Bairro Operário, junta-se à guerrilha. Mais-Velho é aquele que segue imerso em dúvidas; o “escrupuloso” que, segundo o olhar de Maninho, não teve certeza suficiente para tomar uma decisão radical como as de seus companheiros e “limitou-se” ao trabalho clandestino. São “quatro ritmos e saberes e vidas diferentes” atravessados pela violência, inexorável.

No trajeto descobrimos pela voz de Mais-Velho que Maninho, “o melhor de todos nós”, era integrado à terra e aos seus, “ele é quem (…) bebia e comia, falava e ria sempre lá entre os que eu amava vagamundeando nas ruas solitárias e velhas da nossa terra de Luanda. E a ele a carabina escolhera. Simples buraco, fino e furo, toda a vida por ele saiu…”, “para ficar da cor da farda que lhe embrulha, tapado nas moscas, antes que a salva do estilo vai-lhe acordar no sonho de amor que, no ódio do próprio ódio, queria construir”. Descobrimos também que, se Kibiaka “segue na mata seu caminho de dignidade”, também pode ter saído de suas mãos, “que são as culpadas de ter homens com ideias e dignidade”, o balázio que roubou a vida de Maninho. E que Mais-Velho, em um gesto de solidariedade à luta, no Natal colocara “no sapatinho o único brinquedo que merece um homem digno como o meu amigo Kibiaka: Parabellum, de 9 milímetros”.

Paizinho, cuja cabeça “era uma peça de alta precisão, um instrumento afinadíssimo que ele cuidava diariamente com pensamento e acção”, que “nunca trai, porque é sério em tudo que em sua vida faz”, de “sangrenta presença” nos presságios do meio-irmão, é apresentado ao Mais-Velho de seis anos de idade ao mesmo tempo que a dor da mãe “Estrudes”: “cara desfeita e enrugada, alguma coisa lhe dói no dentro da alma é o que pode ser, pois não tira os olhos do miúdo encardido, seguro na mão da mulher negra, está quieto como se fosse de pau”. Dela conhecemos ainda a funda dor da perda do filho, as “mãos grossas de unhas curtas e negras do trabalho, aquelas pernas de varizes que não se equilibravam nos sapatos de salto alto”, de “apanhar azeitona dentro de Invernos frios e descalços da tua infância”, a “coragem de sempre perder” – quando pai Paulo afirma que Paizinho é seu afilhado com o “tranquilo riso de quem que sabe verdade ou mentira ele é que fala verdade sempre”.

Pai Paulo, colono pobre e racista, é exemplar tão verossímil da colonização lusa quanto o operário Brito, com sua consciência de classe que permite linchar publicamente um trabalhador negro. O lamento materno desta morte evoca o peso da violência colonial sobre toda uma coletividade: “este o grito só que oiço ou é coro de milhões de gritos iguais?”. A narrativa dialeticamente evidencia as contradições de um sistema extremamente embrutecedor e não interdita a complexidade a nenhuma das personagens, recuperando traços que marcam também a constituição subjetiva de todo um grupo.

O vigor da premissa, que é possível vislumbrar mesmo com a apresentação de poucos elementos, somado à extraordinária habilidade com que o escritor humaniza todas as personagens sem jamais elidir as relações de força entre elas, entregam ao leitor um texto pelo qual é impossível passar incólume. “Amar os homens é sempre uma alegria dolorosa”, afinal.

São Paulo, abril de 2019.

Jacqueline Kaczorowski

Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH/USP), com pesquisa sobre a obra Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. Membro dos grupos de pesquisa PIELAFRICA – Pactos e impactos do espaço nas literaturas africanas de língua portuguesa (Angola e Moçambique), vinculado à UFRJ, e GEHISLIT, vinculado ao Depto. de História da PUC-Minas.

Citar como:

O ARTIGO:
KACZOROWSKI, Jacqueline .“Nós, os do Makulusu: do fundo humano em cada caco”. Prefácio. In: VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/nos-os-do-makulusu-do-fundo-humano-em-cada-caco-por-jacqueline-kaczorowski/>

O LIVRO:
VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]. Disponível em: https://www.kapulana.com.br/produto/nos-os-do-makulusu/<>

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As aventuras de Ngunga, de Pepetela: lembranças e mensagens

Os seguintes textos compõem a edição brasileira da Kapulana, comemorativa dos 50 anos de As aventuras de Ngunga, de Pepetela. Fazem parte da seção denominada Lembranças e Mensagens, e representam os sentimentos e pensamentos de leitores desse clássico da literatura africana, de amigos e de  companheiros de luta do combativo e sensível escritor angolano Pepetela. 

MIA COUTO [MOÇAMBIQUE]

A escrita de Pepetela transporta-nos para as histórias da nossa História com a proximidade de quem vive por dentro a realidade angolana e a distância de quem sonhou um outro mundo. Pepetela foi guerrilheiro contra as velhas injustiças, foi cidadão quando se construía uma nova nação e foi crítico quando foi necessário denunciar as novas elites do seu país. Mas acima de tudo continua a ser um escritor que nos orgulha a todos nós, cidadãos da língua portuguesa.

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 RITA CHAVES [BRASIL]

Mais que de um só escritor, em As aventuras de Ngunga temos um livro de um tempo e de um lugar. É a expressão de uma utopia que tomou conta de muitas gerações, de uma gente capaz de suspender o medo e, em seu lugar, erguer a esperança. Os anos eram os de 1960/70 e o chão era de uma Angola em movimento, de um território que saía de suas fronteiras e investia na transformação. Nem o canhão, nem a escrita — aliados na dominação, como bem define Manuel Rui em emblemático ensaio sobre as tradições orais — foram capazes de deter Ngunga ou de parar essa literatura que nos faz pensar e querer continuar imaginando um mundo mais justo. Como muitas vezes mais, Pepetela se faz intérprete dessa corrente e partilha a sua voz com a de tantos outros personagens que se moviam pelos terrenos minados, movidos por um sonho mais poderoso do que as armas do inimigo. Dessa invenção, participaram personagens de papel como Comandante Nossa Luta, Comandante Mavinga, professor União e Uassamba, tão misteriosa em sua beleza, e personagens reais, mulheres, homens e crianças que emprestaram suas vidas a uma causa.

Com seu talento excepcional, o autor soube associá-los e converter em energia viva os sinais da utopia, aquela utopia concreta que resiste a tantos ventos. Se o sonho do socialismo se esfumou, adiado talvez para outras idades, como insistimos em acreditar, o sonho de Angola está vivo e se reinventa no Ngunga que guardam no peito o escritor e alguns de seus companheiros de luta. E outros que prosseguem na vida difícil de cada dia resistindo ao desalento. E nós, leitoras e leitores apaixonados, só queremos acompanhá-los na esperança de novos dias. E, nos dizendo de um certo tempo e um certo lugar, de forma tão verdadeira, a narrativa salta para além desses limites e nos entrega a força de uma humanidade que nos faz melhores. Nessa comunhão reside a razão de ser da literatura que, em sua tão difícil definição, insiste em perdurar nesse mundo hostil.

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JOFRE ROCHA [ANGOLA]

Tenho a agradecer ao talento de Pepetela em As aventuras de Ngunga, a perícia com que nos transporta para o universo dos homens que fazem a História, de que ele próprio faz parte, num plano de realidade crua mas humanizante, onde se entrechocam culturas, reminiscências do passado, avanços e recuos, crendices, afectos desencontrados.

Abraça-nos então a vivência dos personagens mergulhados num idealismo não isento de interrogações, temores e incertezas que a ignorância e a superstição muitas vezes alimentam, mas que se revigora quotidianamente na vontade inabalável de vencer.

Bem haja, escritor Pepetela!

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LUÍS BERNARDO HONWANA [MOÇAMBIQUE]

Num momento do processo de afirmação das nossas literaturas em que o movimento geral poderia ainda ser definido como o de protesto e tomada de consciência — qualquer coisa que nasce, fermenta e ganha corpo nos corredores da clandestinidade, num tempo de espera, As aventuras de Ngunga de Pepetela é a primeira obra que  é engendrada no próprio “maquis”, como  nessa altura aprendemos a designar o espaço da luta armada de libertação nacional.

Do universo da CONCP eu já tinha como referências literárias (e também como amigos pessoais, pois conhecemo-nos ainda em Portugal no tempo de exílio, o Luandino Vieira e o Manuel Rui) além, bem entendido, dos clássicos da “Mensagem” e da Casa dos Estudantes Império. O Pepetela conheci-o na minha primeira ida a Luanda, como parte da delegação moçambicana às cerimónias da proclamação da independência de Angola. Apresentou-mo o Rui Mingas.

E porque já tinha lido As aventuras de Ngunga e sabia de tudo quanto na altura já se tinha difundido sobre a génese desse livro senti-me imediatamente amigo de Pepetela, sem embargo do seu trato meio sacudido a que a hirsutez de aspecto não fazia senão acentuar. (Juro que o som familiar que tem para um ouvido moçambicano o nome Ngunga, para nós um apelido, não teve e continua a não ter nada a ver com o assunto…)

E fico cada vez mais amigo de Pepetela, mais comovido com a limpidez daquelas histórias, mais solidário com o povo irmão de Angola e mais admirador da sua grandiosa literatura — de cada vez que releio esse livro saboroso que deu certo quando tinha tudo para dar errado: um texto que um “camarada Quadro” se põe a escrever porque sentiu que os alunos das escolas do MPLA que vem visitando não têm material de leitura e também porque é oportuno naquela conjuntura produzir histórias que inspirem os patriotas, que ajudem a compreender a luta e a difundir a mensagem…

Quem é que disse que a literatura que se faz por encomenda não pode produzir verdadeiras obras-primas (quando quem a subscreve tem real talento)?

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FRANCISCO NOA [MOÇAMBIQUE]

Trata-se de uma das obras que, ao lado de Luuanda de Luandino Vieira, Nós matámos o Cão Tinhoso! de Luís Bernardo Honwana, Quem me dera ser onda de Manuel Rui, preencheu, de forma prodigiosa, a nossa imaginação de adolescentes, em plena ebulição revolucionária e que envolveu as nossas independências na década de 70. O facto de terem como protagonistas crianças e adolescentes desencadeou, em cada um de nós, uma imediata e festiva identificação. No caso específico da obra de Pepetela, há toda uma vivacidade envolvente não só na inquestionável mestria da arte de narrar, mas também no desfile de personagens inesquecíveis como Comandante Nossa Luta, Comandante Mavinga, professor União, a bela e enigmática Uassamba, sem obviamente esquecer o próprio Ngunga. É, pois, à volta deste, onde se concentram e gravitam as inúmeras e apelativas peripécias, as decepções, os sonhos de uma nação, e muito particularmente todo um código de valores que tanto estruturavam as mensagens cruzadas no texto, como ajudaram, de forma muito didáctica, a inseminar a nossa imaginação, ajudando-nos a melhor interpretar o mundo novo que nascia diante dos nossos olhos ainda prenhes de inocência. A transformação de Ngunga, no final, representava todas as mudanças individuais e colectivas que as nossas jovens nações experimentavam, num genuíno exercício ritualístico de passagem.

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CARMEN TINDÓ SECCO [BRASIL]

As aventuras de Ngunga é um livro encantador. Quando me preparava para prestar o concurso para a cadeira das Literaturas Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1993, li essa obra de Pepetela com meus alunos do Pedro II, colégio em que lecionei antes de ingressar na UFRJ. Houve interesse por parte  dos discentes da quinta série, pois a coragem exemplar de Ngunga e as lições de vida e liberdade por ele transmitidas foram alvo de grande admiração.

A narrativa, assemelhando-se a uma singela epopeia do MPLA, erige o protagonista, Ngunga, como “pioneiro sem mácula”, “herói mítico”, amante dos pássaros, dos rios, da natureza. Há um olhar e uma dicção poética captando a flora, a fauna da geografia angolana, em meio à luta de libertação vivenciada pelo menino órfão que perdera os pais na guerra.

O trecho poético e bastante político que mais me emocionou foi, ao final, quando compreendi que Ngunga “está em todos nós, os que recusamos o arame farpado”, “os que queremos o mel para todos”.

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JOSÉ LUÍS CABAÇO [MOÇAMBIQUE]

Antes de ser amigo do Pepe eu já me sentia seu companheiro de jornada, juntos na mesma picada, sonhando sonhos paralelos. Mayombe foi a referência da gesta dos nossos povos, do heroísmo e dos sacrifícios consentidos, convivendo com problemas que se adivinhavam e contradições incubadas.

Neste caleidoscópio de entusiasmos, certezas e angústias me veio parar às mãos outro livro de Pepetela escrito nos anos da luta de libertação: As aventuras de Ngunga. E se Mayombe me surgiu como um convite à reflexão sobre os obstáculos a superar pela geração que aceitara o grande desafio, nessas Aventuras eu li (ou quis ler) a generosa transparência do empenho dos Pioneiros a nos alertar para a importância de preservar a essência da Libertação do Povo e resgatar, a cada momento, os ideais que a inspiraram. Hoje, passado meio século, na leitura dessa narrativa voltamos a perceber essa utopia figurada em Ngunga como, mais que uma escolha, uma necessidade para seguirmos. Ao amigo e ao escritor agradeço a lucidez e a beleza da sua mensagem.

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 INOCÊNCIA MATA [SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE]

Embora ciente de que vale sempre repetir o óbvio, Pepetela é um escritor sobre o qual apetece dizer que dispensa apresentações. Vale, pois, a pena apresentar aquele que ganhou o nome na guerrilha: Pepetela (pestanas em kimbundu), nome por que é conhecido Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nasceu em Benguela a 29 de Outubro de 1941. Fez os estudos primários na sua terra natal e os secundários no Liceu Diogo Cão, na antiga Sá da Bandeira, hoje Lubango. Completou os estudos secundários em 1958, ano em que rumou para a então metrópole, com o propósito de estudar Engenharia no Instituto Superior Técnico. Em 1961, decide mudar de curso, tendo-se matriculado no curso Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da então Universidade Clássica de Lisboa, hoje apenas Universidade de Lisboa. Em Lisboa frequenta a Casa dos Estudantes do Império. Narrativizaria essa experiência e essas vivências em A Geração da Utopia (1992), um romance de forte projecção auto-biográfica.

A partir da fermentação político-ideológica vivida na “Casa”, decide-se pelo exílio em França, em 1962. Em 1963 torna-se militante do MPLA – Movimento Popular da Libertação de Angola, para depois rumar à recém-independente Argélia onde estudará Sociologia. Na capital argelina, onde será co-fundador do Centro de Estudos Angolanos, faz parte da equipa da  História de Angola (a primeira escrita por angolanos).

Em 1969 é integrado na luta armada na Frente de Cabinda com funções na área da Informação e da Educação, ao mesmo tempo que participava na guerrilha. Ainda durante o ano de 1969, escreve Muana Puó, romance que só viria a ser publicado em 1978. Durante as pausas da guerra, nos anos de 70 e 71, como prolongamento pessoal de um comunicado de guerra, escreve Mayombe, que só seria publicado, após aturada reflexão pessoal e curiosa autorização, em 1980. Este romance valer-lhe-á, no mesmo ano, o Prémio Nacional de Literatura. Mas seria a necessidade de produzir material didáctico para ser utilizado na alfabetização das populações das zonas libertadas da guerrilha do MPLA que o levou a escrever As Aventuras de Ngunga. É que em 1972 é deslocado para a Frente Leste para, no ano seguinte, ocupar o cargo de Secretário Permanente da Educação e Cultura. É no desempenho destas funções, e dada a manifesta falta de materiais didácticos, que escreve as estórias que darão origem a As Aventuras de Ngunga, que serão primeiro distribuídas em exemplares mimeografados em 1973 e, em 1977, publicadas na forma que hoje se conhece.

As Aventuras de Ngunga é uma narrativa breve (não cabe no âmbito deste texto uma discussão genológica, se se trata de um romance ou uma novela) sobre o menino órfão-futuro-guerrilheiro, sobre combatentes como o guerrilheiro Nossa Luta, o comandante Mavinga, o professor União, a velha Ntumba ou mesmo Chivuala, o companheiro de Ngunga, que são representados com signos que constroem uma isotopia de (quase) perfeição humana – a isotopia do Homem Novo. Por isso, diferentemente das personagens de outros romances, mesmo os seus primeiros romances – como Ele e Ela (Muana Puó, 1969), Sem Medo e João (Mayombe, 1980), Alexandre Semedo, Vilonda, Ulisses/Joel (Yaka, 1984); Lueji e Tchinguri, uma personagem extraordinária que desafia os nossos limites de empatia e de construção de sentidos éticos e morais (Lueji, 1989), Aníbal, Sara e até Elias (A Geração da Utopia, 1992), e mesmo João Evangelista (O Desejo de Kianda, 1995) – que são “andarilhos de fronteiras”, de ideias, de afectos e de sentimentos, as personagens de As Aventuras de Ngunga, são “planas”, no sentido em que,  na sua constituição e desenvolvimento, são de percepção linear, sendo os (seus) defeitos e virtudes de carácter usados para desencadear excursos moralizantes e doutrinários: o valor da escola e do saber, a relação entre alfabetismo e liberdade, o sentido da solidariedade e de entre-ajuda, a humildade e o espírito de colectivismo, a sinceridade contra a mentira…. Mesmo considerando o perfil doutrinário da narrativa, ninguém pode discordar de que “a escola era uma grande vitória sobre o colonialismo”, como disse a Ngunga o admirável comandante Mavinga, ele próprio analfabeto… Compreende-se, assim, que em algumas classificações esta novela aparece no acervo da literatura (infanto-)juvenil. Uma vez que as personagens não são “volúveis”, por elas não se opera nenhum descentramento a fim de que se possa vislumbrar os limites de cada visão e aportar o cais da multiplicidade de perspectivas para conformar uma realidade, abarcá-la e traduzir a sua complexidade, possibilitando, deste modo, uma percepção dessa realidade, segundo vários interesses e afectos.

Com essas personagens, consagram-se as identidades perfeitas de mitos e figuras erigidas a heróis nacionais (e o primeiro é, sem dúvida, Nossa Luta que cai em combate), diferentemente do que se verá em Mayombe, por exemplo, também um romance de guerrilha. É que As Aventuras de Ngunga, que se pode considerar um romance de formação, é uma obra em que a verve pedagógica por/sobre uma sociedade nova atinge a sua realização plena, tendo em conta, sobretudo, o “apelo da modernidade” e a necessidade de combate ao obscurantismo, reminiscências da linguagem materialista do “partido da vanguarda” da nação.

Gosto da simplicidade da escrita de As Aventuras de Ngunga, gerada na efervescência da luta de libertação nacional. Uma narrativa que me faz lembrar essoutra, anos depois, A Montanha da Água Lilás (2000): a diferença entre as duas não é de natureza, é de tempo – tal como esta novela, também As Aventuras de Ngunga é uma “Fábula para Todas as Idades”. Com efeito, apesar de esta ser uma narrativa de guerrilha e aquela uma fábula em que, por intermédio da metáfora da água lilás, se questionam os motivos por detrás do prolongar da guerra em Angola, ambas as narrativas se propõem a ensinar cidadãos de todas as idades quanto custou a liberdade.

Citar como: PEPETELA. As aventuras de Ngunga. “Lembranças e mensagens”. São Paulo: Kapulana, 2023. [Série Vozes da África]

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Muitas histórias, em ‘Quatro histórias’, de João Paulo Borges Coelho – por Larissa Lisboa

João Paulo Borges Coelho nos presenteia com um novo livro ficcional, “Quatro histórias”. O pequeno formato, contudo, tem como proposta grandes discussões que possibilitarão ao público brasileiro conhecer ainda mais o universo plural de sua obra artística.

Somos convidados a adentrar em diversos espaços para além de Moçambique. Seja através do diálogo com um passado não tão distante, onde as fronteiras geográficas africanas se faziam ainda mais complexas, seja através do presente, nas mais de quatro décadas de Independência do país e nas conflituosas relações globais, Borges Coelho nos desnuda a sua visão crítica, como historiador, a partir de uma genialidade artística que se constrói, inclusive, em histórias enigmáticas.

Assim, os três últimos séculos estão presentes nessas potentes narrativas que resgatam personagens históricas da África Austral, a exemplo de Abushiri ibn Salim al-Harthi (líder árabe da Revolta de Abushiri, no século XIX), além de comuns indivíduos, mas retratados como espelhos sociais que giram em torno dos processos coloniais, como a escravidão, e do neocolonialismo, na China como nova potência.

Portanto, ao público leitor da editora Kapulana, o convite é lançado: a leitura de uma pequena obra, consoante com o formato tradicional do conto, na possibilidade de uma profunda reflexão, além do prazer pela apreciação de um excelente texto.      

São Paulo, 09 de fevereiro de 2021.

Larissa Lisboa
Universidade Federal de São Paulo.

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O ARTIGO:
LISBOA, Larissa. “Muitas histórias, em ‘Quatro histórias’, de João Paulo Borges Coelho”, São Paulo: Kapulana, 2021. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/muitas-historias-em-quatro-historias-de-joao-paulo-borges-coelho-por-larissa-lisboa/>

O LIVRO:
COELHO, João Paulo Borges. Quatro histórias. São Paulo: Kapulana, 2021. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/quatro-historias/>

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A oficina de Nazir Ahmed Can em “campos, espaços” da escrita moçambicana, por Rita Chaves

Seis anos após o lançamento, em Moçambique, de Discurso e poder nos romances de João Paulo Borges Coelho, o primeiro trabalho exaustivo sobre o ficcionista moçambicano que acaba de ser publicado pela Kapulana, Nazir Ahmed Can entrega ao leitor brasileiro O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. Durante esse período, a capacidade analítica de seu autor materializou-se em livros coletivos e em algumas das melhores revistas acadêmicas do Brasil e não só, revelando um leitor profundamente interessado na literatura do continente africano. Foi também esse o tempo que do território moçambicano, solo inicial de suas pesquisas, ampliou seu olhar arguto e sensível na direção de países como Angola e Cabo Verde, incorporando ainda espaços pouco palmilhados entre nós como  alguns países situados no Oceano Índico. Assim, em suas análises, nomes como Ondjaki, Ruy Duarte de Carvalho, Mario Lúcio de Sousa e Ananda Devi vieram se associar a João Paulo Borges Coelho e outros moçambicanos como Luís Bernardo Honwana, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa e Helder Faife, alguns dos nomes aqui visitados.

Nesse movimento, o pesquisador habituado a romper fronteiras físicas transitou por diferentes gêneros literários para investigar problemas fundamentais da produção africana, menos empenhado em encontrar respostas do que no compromisso de formular questões – marca que define uma qualidade do intelectual contemporâneo de seu tempo. Nesse volume em que volta a se concentrar em Moçambique, notamos que tal regresso ao lugar de partida articula-se a uma notável capacidade de renovar o modo de percebê-lo. A partir do(s) conceito(s) de espaço, Nazir Ahmed Can avança no processo de análise e interpretação de textos que espelham e constroem as intrincadas relações entre ficção e realidade e convida-nos a uma viagem em que a mobilidade é, mais que um objeto, um modo de ver o mundo, o literário e aquele que catalisa a escrita das tantas páginas examinadas.

 

Na escolha do conceito de campo intelectual, cunhado por Pierre Bourdieu e muito utilizado no domínio das ciências sociais, marca seu apreço pela interdisciplinaridade como método, mas sabe evitar sua utilização como um recurso meramente terminológico para o exercício metalinguístico tão a gosto de algumas modulações críticas. Ao contrário, fugindo à tautologia, suas análises têm no fenômeno literário um cais de partidas e chegadas, expressando o firme propósito de captar vários movimentos para focalizar com pertinência e respeito inclusive um repertório ainda pouco divulgado como o identificado com o símile campo. Para isso concorrem o seu conhecimento do lugar, as suas vivências na realidade viva das ruas que compõem o espaço dos escritores e seus personagens. A pesquisa no terreno iniciada há mais de dez anos está na base de uma experiência capaz de facultar ao leitor brasileiro o acesso a todo um universo inexplorado, sem a trivial convocação à bênção paternalista que traduz alguns de nossos equívocos na relação com as literaturas africanas.

No corpo a corpo com a escrita dos autores visitados, reconhecendo sempre que a literatura é a arte da palavra, definição banal mas às vezes ignorada por tantos estudiosos, ele perscruta a linguagem e seus artifícios na tarefa de desvelar os projetos artísticos que constituem a literatura no país. A concepção de insílio surge como uma chave para observar alguns dos impasses vividos pelos escritores moçambicanos, e, sobretudo, compreender como os dilemas vividos no tempo e no espaço que respiram são operados na estrutura de seus textos. Um quadro assim configurado explica a presença da tradução como um procedimento que se impõe na mediação de mundos misturados e mesmo contraditórios. Sem diluir a contradição que define espaços socioculturais marcados pela diferença e pela desigualdade, ela favorece hipóteses de diálogos entre as pontas, recorda-nos o autor.

Com uma fina seleção de instrumentos de análise e a atenção posta em referências teórico-críticas, como Edward Said, Bernard Mouralis e Antonio Candido, por exemplo, ele procura também captar as redes que envolvem a literatura como instituição, identificando o seu lugar na dinâmica social e política de um estado nacional de formação recente e convulsionada. Contrapondo-se aos procedimentos meramente judicativos e aos apelos à celebração, Nazir Ahmed Can defende o direito à exigência, a que em 1994 já se referia Ruy Duarte de Carvalho. O processo de descolonização do conhecimento e do imaginário no território das chamadas “Africanas” tem em sua reflexão uma forte aliança porque nela estão inscritos os sinais da maturidade desejada por aqueles que nesse barco viajam desde há muito ou em tempos mais recentes.

São Paulo, 10 de junho de 2020.

Rita Chaves
Universidade de São Paulo.

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O ARTIGO:
CHAVES, Rita. “A oficina de Nazir Ahmed Can em ‘campos, espaços’ da escrita moçambicana”. Prefácio: In: CAN, Nazir Ahmed. O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. São Paulo: Kapulana, 2020. [Ciências e Artes] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/a-oficina-de-nazir-ahmed-can-em-campos-espacos-da-escrita-mocambicana-por-rita-chaves/>

O LIVRO:
CAN, Nazir Ahmed. O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. São Paulo: Kapulana, 2020. [Ciências e Artes] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/o-campo-literario-mocambicano-traducao-do-espaco-e-formas-de-insilio/>

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O pó e a fissura, os muros e a sombra… Quantos tempos cabem na rua?, por Nazir A. Can

Publicado pela primeira vez em 2006, mais de três décadas depois da independência moçambicana, Crônica da Rua 513.2 reconstrói esse período com a distância suficiente para se demarcar da justificada euforia e incidir na contradição que qualquer temporalidade transitória abriga. Sem apresentar um herói, que iria contra o tom antiépico deste romance, e ambientado em Maputo, cenário raramente percorrido pela prosa moçambicana, João Paulo Borges Coelho avalia o modo como uma rua (simples e complexa) vive o tempo (belo e conturbado) da passeata revolucionária. O título, de resto, sintetiza o programa da obra: aliar o pequeno espaço (da rua) ao imenso tempo perdido (da crônica).

Também no “Prólogo: sobre os nomes e a rua” é possível notar o relevo dado a três elementos decisivos para a formação da identidade: o tempo, o nome e o espaço. Após sublinhar os tons da segregação racial, que hierarquizou pessoas, lugares e culturas no período colonial, bem como a herança armadilhada deixada pelo imaginário que nesse tempo se instalou, o narrador reflete sobre o processo de renomeação das ruas e avenidas retomado pela nova ordem. À valorização de indivíduos que lutaram pela libertação (Samora Machel, Eduardo Mondlane ou Josina Machel), de alguns modelos estrangeiros que com ela tiveram uma vinculação ideológica (Marx, Lenine, Kim Il Sung, Siad Barre) e de algumas datas históricas (25 de Setembro ou 25 de Junho) associa-se o desejo de apagamento das referências do passado. As exceções a essa lógica são os espaços numerados, como a rua 513.2, que se manteve como estava. Vale referir que, neste caso, ao invés do esperado 2.513 (fórmula mais próxima do que podemos encontrar hoje em algumas ruas de Maputo), temos o número 2, da dualidade, colocado no fim. Se seguirmos o sutil convite do narrador para não “desprezar a aritmética” e dividirmos estes números (513 por 2), teremos o seguinte resultado: 256.5. Ou inclusive uma data velada, 25-6-75, dia da independência do país. Tanto no título quanto no prólogo, portanto, se articulam algumas das principais estratégias da obra: a metonímia, a seleção onomástica, o jogo de inversões simbólicas e a sobredeterminação das coordenadas de existência tempo e espaço.

Seguindo a lógica da exceção, os nomes de várias personagens, como Josefate, Basílio, Valgy, Tito, Judite, Filimone ou Santiago, anunciam o propósito narrativo de se apropriar do texto bíblico. De maneira lúdica, (e) com efeito, o romance problematiza alguns dos postulados do período pós-independência através da imbricação de enunciados que aproximam o discurso socialista da revolução a uma visão teológica do mundo. Assim, depois de anunciar o desejo de transformação de estatuto no ambiente histórico representado (a doxa), o narrador, com base no mesmo material (o nome), sugere a ambivalência forçada que provam as personagens (o paradoxo). Com a partida de uns (portugueses, em sua maioria), a chegada de outros (moçambicanos dos subúrbios, mas não só) e a permanência de um pequeno e hesitante grupo (como o branco Costa e o indiano Valgy) sucedem-se os encontros e os mal-entendidos engendrados no interior de uma experiência coletiva intensa. Procurando desconstruir modelos de ortodoxia através da sátira, o autor investe ainda na criação dos “resquícios do passado”, espectros dos antigos habitantes da rua que, após a revolução, se escondem nas casas com a cumplicidade dos atuais moradores. O antigo PIDE Monteiro (rivalizando a poltrona da sala com o Secretário do Partido, Filimone Tembe), a prostituta branca Arminda (que, sentada na borda da cama, aconselha a nova moradora Antonieta), o mecânico Marques (cúmplice de garagem e de interesses de Ferraz) entre outros, auxiliam João Paulo Borges Coelho a construir os seus já característicos e insólitos limiares simbólicos. Significando tanto um resto (do espaço) como uma fissura (do tempo), o termo “resquício” sugere a contiguidade como traço constitutivo da jovem nação. Além de representarem a dificuldade de controle da heterodoxia popular, todas estas personagens indiciam, devido a sua natureza especular, que a linha que separa a transição da transação é porosa. Em suma, mais do que “pós-colonial”, conceito que nos remeteria a uma ideia romantizada de corte com o passado, estamos diante de uma sociedade ficcional que partilha os seus espaços com o pó colonial.

Com aquela mordacidade que humaniza, embora nem sempre redima, João Paulo Borges Coelho lê as dinâmicas de um tempo que, a sua maneira, também selou a descoincidência entre a austeridade do discurso público e a fluidez dos gestos privados. Entre a euforia de uns, a hesitação de outros, a improvisação de muitos e a melancolia de todos, espelhada nos muros que se agigantam na reta final da narrativa, anunciando possivelmente a voracidade neoliberal dos dias que correm, as relações entre as personagens dão a medida de uma época vivida sob os signos da solidariedade e do sobressalto. Por via de uma cuidadosa escolha lexical, capaz de enlaçar ritmo, imagem e sentido, além da ironia, que assume aqui plenamente as funções pragmática (por acionar a antífrase e a paródia) e estética (favorecendo a conversão do segredo em indício), o autor devolve à ficção aquela virtualidade poética que constrange qualquer afã de linearidade. Talvez por isso, e tal como a árvore da Rua 513.2 que se mantém firme após tantas intempéries, oferecendo sua sombra ao cortejo de indivíduos comuns que por ali circula, este romance resistirá aos humores do tempo.

Que siga a leitura, pois. E que se façam as contas depois.

Rio de Janeiro / Salamanca, 19 de fevereiro de 2020.

Nazir Ahmed Can
Universidade Federal do Rio de Janeiro / FAPERJ / CNPq / CAPES.

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Elaborado entre 2019 e 2020, este texto contou com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Programa Jovem Cientista do Nosso Estado, processo nº E-26/203.025/2018), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Nível 2, processo nº 307217/2018-3) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES/PrINT) – Finance Code 001, Projeto 88887.364731/2019-00.
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O ARTIGO:
CAN, Nazir Ahmed .“O pó e a fissura, os muros e a sombra… Quantos tempos cabem na rua?”. Prefácio. In: COELHO, João Paulo. Crônica da Rua 513.2. São Paulo: Kapulana, 2020. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/o-po-e-a-fissura-os-muros-e-a-sombra-quantos-tempos-cabem-na-rua-por-nazir-a-can/>

O LIVRO:
COELHO, João Paulo. Crônica da Rua 513.2. São Paulo: Kapulana, 2020 [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/cronica-da-rua-513-2/>

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[Sobre] Condições Nervosas, de Tsitsi Dangarembga – por Rutendo Tavengerwei

Condições nervosas, de Tsitsi Dangarembga, é incrível.

A história se passa na Rodésia (hoje Zimbábue) na década de 1960, antes de o país conquistar a independência, e é narrada por Tambu, sedenta por uma educação que não lhe foi oferecida porque sua família é pobre e acha mais importante que seu irmão vá para a escola. No entanto, ela tem a oportunidade de estudar após a morte do irmão, e Dangarembga nos conduz pela progressão da vida de Tambu, por sua mudança da área rural, onde sempre viveu com os pais, para a escola missionária onde o tio é diretor.

A história incorpora as realidades de várias mulheres da vida de Tambu: a mãe e a tia, que apresentam as dificuldades da existência como mulheres negras, pobres e sem estudo, controladas pelas demandas de uma sociedade patriarcal; e Maiguru e Nyasha, que por terem estudado na Inglaterra, agora se veem presas no constante conflito entre a cultura africana e a ocidental, e por suas identidades perturbadas pelo colonialismo.

Condições nervosas aborda questões de extrema importância, e absolutamente merece ser chamado de clássico moderno.

Rutendo Tavengerwei
Escritora do Zimbábue, autora de
Esperança para voar (Kapulana, 2018)

Citar como: TAVENGERWEI, Rutendo. [Sobre] Condições Nervosas, de Tsitsi Dangarembga [orelha]. In: DANGAREMBGA, Tsitsi. Condições nervosas. São Paulo: Kapulana, 2019. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/codicoes-nervosas-tsitsi-dangarembga/>

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A pena da Abolição, por Laurentino Gomes [sobre José do Patrocínio, a pena da Abolição, de Tom Farias]

José do Patrocínio, a pena da Abolição, de Tom Farias, é mais do que uma boa biografia de um dos maiores abolicionistas brasileiros. É também o relato minucioso, bem documentado e bem escrito de um dos momentos cruciais da história do Brasil. O movimento que levou à libertação dos escravos pela Lei Áurea em Treze de Maio de 1888, e que teve em José do Patrocínio um de seus protagonistas, foi a nossa primeira campanha genuinamente popular e de dimensões nacionais. Envolveu todas as regiões e classes sociais, carregou multidões a comícios e manifestações públicas, dominou as páginas dos jornais e os debates no parlamento e mudou de forma dramática as relações políticas e sociais que até então vigoravam no país.

Nunca antes tantos brasileiros se haviam mobilizado de forma tão intensa por uma causa comum, nem mesmo durante a Guerra do Paraguai. Como efeito colateral, deu o empurrão que faltava para a queda da monarquia e a proclamação da República, no ano seguinte. É esse o fio condutor deste livro fascinante de autoria de um dos mais respeitados e talentosos jornalistas e escritores da atualidade. Leitura fundamental para entender o fenômeno da escravidão e seu legado que ainda hoje assombra os brasileiros.

Rio de Janeiro, setembro de 2019.
Laurentino Gomes
Escritor e jornalista

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O ARTIGO:
GOMES, Laurentino .“A pena da Abolição”. Prefácio. In: FARIAS, Tom. José do Patrocínio, a pena da Abolição. São Paulo: Kapulana, 2019.  Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/a-pena-da-abolicao-por-laurentino-gomes-sobre-jose-do-patrocinio-a-pena-da-abolicao-de-tom-farias/>

O LIVRO:
FARIAS, Tom. José do Patrocínio, a pena da Abolição. São Paulo: Kapulana, 2019. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/jose-do-patrocinio-a-pena-da-abolicao/>

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Velho mundo, mundo novo, por Ana Paula Tavares [sobre O quase fim do mundo, de Pepetela]

Calpe pode ser tudo menos a cidade feliz e os seus centros e margens estreitam-se quando a terra se rompe e o desaparecimento sucessivo da vida (homens, mulheres, insetos e outros bichos) acontece sem que uma razão clara (peste, guerra, furacão) tudo justifique. Ao contrário de um anjo carregado de futuro aqui sobrevivem indivíduos e uma imensa solidão incapaz de suportar todo o peso do mundo para descobrir e resolver. Os que sobrevivem procuram razões para todos os acontecimentos e ainda formas de resolver os estilhaços da vida que sobrou de um imenso passado por conhecer. A dimensão da violência perturba a observação e o quotidiano dos dias e das noites que o silêncio prolonga e acentua. Com uma linguagem trabalhada o romance abre-se às vozes das várias visões do acontecido como se Calpe se tornasse no pequeno quintal do mundo onde se discutem razões, hipóteses e estratégias. Os mares estão vazios de peixes e nos rios só sobrevivem as formas elementares da vida. Sobram demasiadas coisas materiais para tão pouca vida.

Devorados por um tempo que não é o deles os sobreviventes iniciam o ciclo das viagens onde como novos sujeitos da história descobrem os destinos e vão refundar o mundo. O continente africano resolve de novo o enigma da fundação: a partir de um centro renovar os ciclos, perceber o novo sentido da vida porque Calpe e o mundo à volta só conservam os mortos. A aventura começa e tudo se renova nesta narrativa misteriosa e fundadora.

26 de agosto de 2019.

Ana Paula Tavares
Escritora e historiadora angolana

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O ARTIGO:
TAVARES, Ana Paula .“Velho mundo, mundo novo”. Prefácio. In: PEPETELA. O quase fim do mundo. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/velho-mundo-mundo-novo-por-ana-paula-tavares-sobre-o-quase-fim-do-mundo-de-pepetela/>

O LIVRO:
PEPETELA. O quase fim do mundo. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/o-quase-fim-do-mundo/>

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O criado, o criador e outras criaturas: notas sobre As visitas do Dr. Valdez e a escrita de João Paulo Borges Coelho, por Nazir A. Can

As visitas do Dr. Valdez integra-se em um projeto literário que se apresenta, hoje, como um dos mais desafiadores dos contextos de língua portuguesa. Desde 2003, ano de sua estreia como ficcionista, com As duas sombras do rio, João Paulo Borges Coelho publicou sete romances, dois volumes de contos e três novelas. A este registro vertiginoso, que não dispensa o rigor e a experimentação estética, juntam-se três livros de histórias em quadrinhos, lançados em Maputo no início dos anos 80, e algumas narrativas curtas espalhadas em edições de natureza diversa. Embora também seja um reconhecido historiador, João Paulo Borges Coelho evita em seu trabalho artístico o caminho da restituição didática do passado. Apoiado em estratégias como a metonímia, a metáfora ou a alegoria, frequentemente mediadas pelos recursos do humor e da ironia, o jogo que propõe aponta antes para as trocas simbólicas entre o “pequeno” (cotidiano) e o “grande” (história). Virtuoso, o primeiro abre fendas no solo rígido do segundo.

Ambientado na Ilha do Ibo e na cidade da Beira, em um tempo complexo que se situa entre o já agônico colonialismo português e a eufórica independência moçambicana, As visitas do Dr. Valdez coloca em cena a experiência do interstício. A narrativa gira em torno do empregado doméstico Vicente e de suas patroas, as velhas mestiças Sá Amélia e Sá Caetana. Preocupada com os delírios da primeira, que reclamava das ausências do Dr. Valdez, entretanto já morto pelo excesso de manteiga ingerido em vida, Sá Caetana propõe um jogo a Vicente: resgatar o médico das cinzas. Assim, nos domingos de folga, Vicente disfarça-se de senhor doutor branco, em uma tripla transformação que visa devolver alguma alegria à Sá Amélia. Mas não só.

Com o disfarce do velho colono, elaborado na escuridão solitária e precária de seu quarto, o jovem empregado encontra uma criativa maneira de confrontar Sá Caetana e todo o imaginário por ela representado. Por trás da máscara, Vicente aciona um discurso estrategicamente ambíguo e passa a atuar em um dos campos que mais aflige os poderes autoritários: o da imaginação reivindicativa. A imitação que faz do Dr. Valdez, na cara e na casa da autoridade, desestabiliza a velha ordem colonial ancorada nas premissas da superioridade racial e científica e, como tal, no privilégio que decorre da primazia e da lei. O jovem procura libertar-se, portanto, de uma vida de submissão que lhe parecia destinada e acompanhar a mudança que, a um nível mais abrangente, se vai anunciando em Moçambique. Contudo, recorda com frequência as palavras de seu pai: o velho Cosme Paulino exigia-lhe que desse continuidade a uma história de servidão, cuidando das senhoras como se de sua própria família se tratasse. A vinculação quase umbilical a dois mundos opostos acentua a ambiguidade das relações entre as personagens, que são convidadas a ocupar distintas posições durante a narrativa.

Realizadas em três domingos e estruturadas em torno de outros tantos núcleos de significado (gesto, voz e olhar), as visitas do Dr. Valdez asseguram ao empregado alguma margem para expressar seu descontentamento. O discurso de Vicente, na primeira visita, adquire uma capa predominantemente visual. A maneira como se disfarça e os pensamentos que elaboram seus gestos constituem uma eficaz afirmação pública de sua rebelião privada. Executando de maneira sagaz e irônica os gestos doutorais de Valdez, avança por fronteiras até então intransponíveis: senta-se pela primeira vez no sofá, aceita o chá servido pela patroa, toma a iniciativa de observar da janela o quintal e espanta-se com o espaço miserável que é reservado aos criados… Enfim, graças ao novo lugar que lhe cabe no cenário, vê o mundo de um ângulo inédito. E se faz ouvir, mesmo quando silencia. Em contextos onde o estatuto impera, a autoridade não necessita de muitas palavras para se fazer valer. O discurso verbal da dupla Vicente/Valdez progride do comedimento, na primeira visita, para o confronto aberto, na segunda. Programada nos bastidores, depois de um inusitado encontro entre o criador Vicente e a criatura Dr. Valdez, a terceira visita sintetizará as duas anteriores, além de trazer o complemento fundamental da máscara-elmo, peça tradicional da arte maconde que se sobrepõe a do Dr. Valdez. Em dificuldade por ter que se dirigir a quem não vê totalmente, Sá Caetana perde um dos seus principais pontos de apoio: o desigual duelo de olhares.

Assim, após a performance física da primeira visita (que conforma ironicamente a imagem do colono) e da reivindicação retórica da segunda (que confirma a indignação do colonizado, mas o expõe a um risco), a terceira visita será marcada pelo impacto do olhar e de seus desdobramentos. Qualquer desses encontros terá contornos e resultados imprevisíveis, que não nos cabe aqui esmiuçar. Mas não resistimos a uma especulação: a representação de Vicente talvez nos queira dizer, entre outras coisas, que a arte é menos transformadora no momento em que explicita a raiva do que quando, sem renunciar ao compromisso político, faz a adequada mediação das estratégias que lhe são específicas (o gesto, a voz, o olhar e a necessidade de se colocar no lugar do outro). João Paulo Borges Coelho, por seu turno, parece querer complementar com uma pergunta: até quando serão necessárias as máscaras?

Cada uma dessas visitas, por outro lado, nasce de contextos específicos dentro dos quais a memória – imediata, remota, inventada – desempenha uma função relevante. Os jogos de espelhos internos à própria estrutura narrativa, que nos reenviam ao universo íntimo das personagens, complementam e orientam o sentido da teatralização. Compondo os bastidores – ou a pré-história – da encenação, o olhar retrospectivo do narrador e das personagens afigura-se como chave de leitura para as três visitas do Dr. Valdez. No que se refere a Vicente, as memórias remontam, por exemplo, ao tempo da infância, quando presenciou a humilhação pública de que foi alvo seu pai às mãos do patrão Araújo, em um dos episódios mais violentos já relatados na ficção moçambicana; indicam ainda o presente das saídas noturnas, tensão e excessos partilhados com seus amigos Jeremias e Sabonete, que também são empregados domésticos; finalmente, projetam o futuro enganador, metaforizado nas luzes de neón da Boite Primavera e na dança sinuosa de Maria Camba. As figuras do pugilista Ganda, herói nos ringues e engraxate fora deles, e do estranho dançarino que com sua arte recupera a complementaridade perdida do mundo, funcionam também como ativos lugares de memória para o empregado.

A compulsão memorial que atravessa a narrativa e a escrita de João Paulo Borges Coelho, conferindo-lhe unidade, está subordinada a uma resposta artística às formas de produção do esquecimento, especialmente aquelas que são elaboradas pelo discurso político. Este tipo de discurso possui uma natureza programática que choca com o espaço da intimidade (dos rumores e dos desejos, dos ódios e dos segredos, das ambivalências e das confluências) onde sua literatura se alimenta. Em suas obras, aliás, qualquer tipo de mergulho no passado é orientado por um presente repleto de complexidades. E vice-versa. Ao autor, por isso, interessa menos enquadrar a lembrança em um registro fixo de verdade do que ligá-la a um campo aberto de interrogações e interpelações.

Ao eleger caminhos que favorecem a sobreposição de tempos e memórias, a pluralização da geografia literária, a densidade existencial de heróis e personagens secundárias, a diversificação de posturas do narrador e a desestabilização de doxas por via de uma pesquisa estética sobre o paradoxo, João Paulo Borges Coelho consolida o romance moçambicano e constrói um novo lugar no campo literário.

Celebremos, pois, sua primeira visita ao leitor brasileiro.

Rio de Janeiro, 20 de julho de 2019.
Atualizado pelo autor em 01 de outubro de 2019.

Nazir Ahmed Can
Universidade Federal do Rio de Janeiro / FAPERJ / CNPq .
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Este texto foi escrito com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Programa Jovem Cientista do Nosso Estado, processo nº E-26/203.025/2018) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Nível 2, processo nº 307217/2018-3).
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O ARTIGO:
CAN, Nazir Ahmed .“O criado, o criador e outras criaturas: notas sobre As visitas do Dr. Valdez e a escrita de João Paulo Borges Coelho ”. Prefácio. In: COELHO, João Paulo. As visitas do Dr. Valdez. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/as-visitas-do-dr-valdez/>

O LIVRO:
COELHO, João Paulo. As visitas do Dr. Valdez. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/as-visitas-do-dr-valdez/>

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Mulheres, violência e reconciliação em Aldino Muianga (sobre o romance Asas Quebradas), por Ana Braun

Asas quebradas, romance do ficcionista moçambicano Aldino Muianga, é um livro sobre mulheres, violência e reconciliação. Estruturado a partir da perspectiva de duas moçambicanas, Macisse e Celinha, o romance narra a história de mãe e filha separadas por um episódio de brutalidade que resultará em conflitos das mais diversas ordens, em particular configurando uma ausência geradora de angústia pelo desconhecimento do próprio passado.

A representação da violência é uma das marcas da produção literária moçambicana. Tendo surgido em grande parte como resposta à barbárie que significou a implantação e o estabelecimento do sistema colonial, a literatura de autores já tidos como canônicos, como Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha, Noémia de Sousa, entre outros, se mostrava comprometida em retratar pelo viés realista a opressão, racismo e discriminação que marcaram o período colonial em Moçambique.

Também em momentos anteriores da obra do próprio Aldino Muianga, como nos livros de contos O domador de burros e outros contos (2015) e A noiva de Kebera (2016) – ambos publicados pela Editora Kapulana –, a violência esteve tematizada, ainda que por vezes camuflada pela ironia e humor: na representação dos diferentes espaços associada à descrição das práticas sociais que denunciavam o conflito social, político e econômico como elemento estruturador das relações entre os indivíduos em Moçambique. Se, no entanto, nesses casos a representação da violência se dá a partir das dinâmicas que ocorrem em espaços públicos, no romance Asas quebradas, a violência emerge do âmbito do privado, do seio das relações familiares, e acaba amplificada por uma estrutura social que, mesmo em transformação, ainda é em grande parte insensível ao sofrimento das vítimas – em sua grande maioria mulheres – das múltiplas formas que a opressão doméstica adquire. Pois, mesmo tendo sido parte consistente e atuante da luta anticolonial, as mulheres moçambicanas ainda enfrentam nos dias de hoje uma situação de subalternização no âmbito econômico, cultural e social, experimentando em seu cotidiano diversas formas de sujeição e resistência ao modelo patriarcal.

O romance de Muianga se apresenta, nesse sentido, como representação da lógica que rege as relações de gênero na sociedade moçambicana de hoje. Divididas entre o desejo de uma vida plena e a impossibilidade dessa realização naquele contexto, as protagonistas do romance acabam personificando toda a complexidade da existência feminina no mundo africano contemporâneo, ele mesmo cindido entre o modo ancestral e as transformações sociais advindas da colonização europeia e suas práticas ocidentalizadas.

No romance, convivem – e não exatamente em harmonia – práticas associadas às sociedades tradicionais africanas (o peso do julgamento coletivo da comunidade, o saber dos mais velhos, o poder dos rituais) e esse outro mundo, estruturado por um Estado regido por leis, que, apenas em tese, alicerçariam a construção de uma nova sociedade marcada pela justiça social. Assim, se por um lado, a tradição e o sentido comunitário ancestral são relativizados pelos valores da modernidade, por outro, a narrativa nos alerta que a lógica do mundo ocidentalizado também é insuficiente para captar as especificidades das relações nesses contextos, não sendo capaz de proteger as mulheres das agressões perpetradas tanto pelos indivíduos quanto pela própria sociedade, de maneira geral. São elas, portanto, quem mais sofrerão as consequências de viver num mundo que, apesar de cindido entre essas duas lógicas, vai invariavelmente conferir às mulheres papel secundário, subalterno e de abandono. O romance mostra a tensão gerada pela impossibilidade do enfrentamento individual de uma estrutura social que criminaliza e responsabiliza a mulher pela violência à qual é submetida.

O predomínio do discurso interior das personagens, mediado por um narrador onisciente que nada esconde do leitor, coloca-nos em posição privilegiada, já que temos acesso a dados desconhecidos, ignorados pelas demais personagens. Ganhamos, por consequência, também o poder de julgar suas ações e de nos posicionar ante as injustiças vivenciadas pelas mulheres no romance. Nesse sentido, as personagens masculinas aparecem em clara desvantagem em relação ao leitor. A narrativa indica que, seja em maior ou menor grau, todos acabam de alguma forma exercendo modos de opressão que submetem as mulheres ao sofrimento, solidão e sentimento de inadequação.

Assim, do mesmo modo que o sistema colonial representou uma forma de dominação, o modo patriarcal que rege as relações entre as pessoas naquela sociedade também o é. E, à medida em que avançamos na leitura do romance, vai se tornando cada vez mais claro que a lógica do patriarcado está incorporada também no modo de ação das próprias mulheres, que se veem, muitas vezes, não apenas impedidas de serem solidárias umas com as outras mas mesmo como inimigas, em disputa pela suposta estabilidade emocional e financeira oferecida pelo relacionamento amoroso. Ao mesmo tempo, há, em vários outros momentos da narrativa, a ênfase na solidariedade feminina, no entendimento de que a chave para uma existência plena está na conciliação entre indivíduos, reatando, em parte, presente e passado.   

Sendo a literatura lugar tanto de afirmação quanto de contestação de práticas sociais, é possível ver o romance de Aldino Muianga como meio de desvelamento da complexidade da questão. Ao incorporar em sua prosa a tensão que ainda permeia as relações entre os gêneros na sociedade moçambicana contemporânea, Muianga apresenta ao leitor um exercício de reflexão inestimável.

Guarapuava, 10 de junho de 2019.

Ana Beatriz Matte Braun
Pesquisadora de literatura moçambicana e Docente na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

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O ARTIGO:
BRAUN, Ana Beatriz Matte .“Mulheres, violência e reconciliação em Aldino Muianga”. Prefácio. In: MUIANGA, Aldino. Asas quebradas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/mulheres-violencia-e-reconciliacao-em-aldino-muianga-sobre-o-romance-asas-quebradas/>

O LIVRO:
MUIANGA, Aldino. Asas quebradas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/asas-quebradas-aldino-muianga-mocambique/>

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Avisos à navegação, por Carmen Tindó Secco

Os saberes de uma época são formados por teias de representações sociais e culturais, incluindo os discursos literários. São essas malhas de conhecimentos e memórias que a escrita de Ana Paula Tavares revisita e tece com lucidez e poesia. Suas crônicas são curtas, densas e profundamente políticas.  A escritora – também exímia poeta – maneja as palavras com labor e arte, construindo sentidos que transformam seu discurso em viagem por dentro do tempo e da linguagem. Viagem que se converte em autoconhecimento, em regresso à própria casa, à terra natal, ao âmago de si e do poético. Ler Ana Paula é penetrar nos labirintos da história, repensando perdas, dores, tradições. É mergulhar no íntimo dos vocábulos que brilham com olhos de sabedoria e prazer.

As crônicas de Um rio preso nas mãos, de Ana Paula Tavares, questionam aspectos do presente angolano, ao mesmo tempo que reinventam tradições silenciadas de povos de Angola. Em sua escrita, sangram palavras, medos, silêncios, o livro do tempo em seus deveres e haveres. Desse modo, as pontas de vários contextos históricos vão-se enlaçando. Na crônica “As Mães”, por exemplo, a voz enunciadora, em diálogo intertextual com o poema do angolano Viriato da Cruz usado como epígrafe, lembra os sofrimentos das mães de ontem e de hoje em Angola.

A autora escava camadas de letras para encontrar uma “nova carta”, reveladora de outras lembranças e estórias. Fantasmas assombram a escrita, fazendo aflorarem do passado tradições esquecidas. Há a recordação de um tempo sem fronteiras, que excitava intercâmbios entre os povos, bem como a interpenetração de línguas e linguagens. Tudo isso, porém, ficou no outrora, na argila e na água com que se moldavam o barro e a vida. Hoje, “ao lado da fronteira alinhou-se a palavra ameaça (…). Cercaram o paraíso de muros altos e arame”.

Na crônica “O Livro do Deve e do Haver”, é elaborada, de modo crítico, uma contabilidade da história do colonialismo português, das dívidas cobradas à terra angolana. Aqui, é lançado um olhar questionador e defendida a urgente construção de uma solidariedade orgânica, capaz de romper com a contabilidade dos lucros que só beneficiava os algozes de uma terra que desejava hastear sua independência. Das contas, dos diários, a voz enunciadora passa aos poemas que prepararam e alimentaram a luta revolucionária. Bons tempos esses que não deveriam ser esquecidos! Contudo, mudanças ocorreram e a utopia da liberdade foi maculada por políticas e economias neocoloniais.

É melancólico esse balanço crítico, após tantos anos de guerras e sangue derramado! Esgarçam-se não apenas as economias e as sociedades africanas, mas, principalmente, as identidades. A contrapelo dessa história de estagnação, implosão e declínio econômico-cultural, as crônicas de Um rio preso nas mãos, muitas das quais originalmente publicadas, em 2014 e 2015, no Rede Angola[1], focalizam, em sua maioria, diversas tradições angolanas esquecidas, como, por exemplo, a das mulheres que vestiam panos, cumpriam rituais, cozinhavam com óleo de palma, bordavam colares de miçangas e modelavam o barro vermelho, ao mesmo tempo que recordavam os lemas revolucionários, quando eram ainda jovens e esperançosas da edificação de uma Angola livre e solidária. O diálogo com a liberdade, com a terra, com a comunhão entre os homens é rememorado, manifestando saudade dessa época.

Na crônica “Desafiar o Silêncio”, a cronista aborda a função social das mulheres no mundo atual e cobra das independências dos países africanos a urgência de “remover moléstias antigas, abrir escolas”. Defende que são as mulheres – tanto as dos espaços rurais, como as das cidades atuais – as conhecedoras da diversidade de seus papéis na família, no trabalho, no cotidiano das relações de vizinhança e na sociedade.

Ana Paula repensa o desempenho das mulheres em algumas tradições angolanas; acaba por refletir, também, metapoeticamente, sobre a função da palavra e da arte. Num corpóreo silêncio, sua escrita urde, crítica e poeticamente, sua trama com consciência e mel; estilhaça medos; “fala” pelo outro que toca a vida, muitas vezes, sem ter a real percepção dela. Medos, os mais variados, se repetem no mundo contemporâneo, em obras de poetas e romancistas. Por isso, é mister, cada vez mais, trabalhar a palavra, envolvê-la em tecidos finos, misturá-la a sons rústicos e estrepitosos, a vozes profundas que mergulhem no mistério das almas, como se estivessem sobre aveludados divãs de psicanalistas, magos ou visionários.

Na crônica “Humidade”, a voz poética enunciadora é a grande tecelã: a aranha do deserto a tecer a teia da vida, do tempo e da linguagem. Esse fluir, entretanto, se  encontra preso como o rio nas mãos gretadas e em sangue da mulher antiga. Mãos que, todavia, também guardam a gota preciosa do cacimbo, orvalho de esperança: água da palavra, poesia.

Em “O Medo”, a voz narradora, ao final, adverte: “Não tenho soluções, só pedidos: ajudem a parar esta dor de cacimbo, deixem passar as vozes para podermos ver claro no meio das sombras e partilhar agasalho neste cacimbo de frio”. Medo, cacimbo, sombras – recorrentes marcas metafóricas de uma escrita que persegue a luz para não se perder na névoa social e política que embaça a liberdade. Nas entrelinhas, fica uma probabilidade de que ainda seja tempo de escrever sonhos e cultivar desejos.

As crônicas de Ana Paula Tavares desenham paisagens e pessoas. “A Cor das Vozes” faz homenagem a Ivone Ralha, senhora das mãos de seda, da escrita das pedras, da areia, do amor. Há narrativas, como “A Voz da Avó” ou “As Formigas”,  que recriam provérbios nyanecas. Há outras que demonstram que a ideia de liberdade não se afigura de forma igual para todos. Há, ainda, as que relembram o fogo sagrado, a panela grande, a madeira que arde, o cheiro de flor, a máscara de Mwana Puó, a voz firme da avó a contar estórias encantadas. Tudo isso está presente na arqueologia da vida das crônicas de Ana Paula, cuja escrita vai acendendo, no avesso das palavras, pequenos lumes que funcionam como “avisos à navegação”, como alertas contra a violência e a ganância que destroem os sonhos.

[1] Rede Angola: Portal online de jornalismo independente, cujos objetivos eram a informação, o entretenimento, a divulgação não só da cultura e do pensamento angolano, mas também de acontecimentos sociais, políticos, econômicos, culturais do mundo. Idealizado em 2012 por Sérgio Guerra, Lara Longle, Saymon Nascimento, o Rede Angola foi gerido por esse trio, mas teve curta existência, sendo fechado no final de maio de 2017. Diversos artistas, músicos, poetas, escritores – Aline Frazão, José Eduardo Agualusa, Ana Paula Tavares, Ivone Ralha etc. – participaram desse portal, publicando, na seção “Cultura”, crônicas, ilustrações, etc. Disponível em: <http://www.redeangola.info/palavras-deserto/> Acesso em: 05 mar 2019.

Rio de Janeiro, 05 de março de 2019.

Carmen Lucia Tindó Secco
Profa. Titular de Literaturas Africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)

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O ARTIGO:
SECCO, Carmen L. T. “Avisos à navegação”. Prefácio. In: TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos – Crônicas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/avisos-a-navegacao-por-carmen-tindo-secco/>

O LIVRO:
TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos – Crônicas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

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Nós, os do Makulusu – a palavra e o outro, por Rita Chaves

De 1967, ano em que José Luandino Vieira escreveu essa extraordinária narrativa até o presente, muitos abalos têm sacudido Angola: o país conquistou sua independência em 1975, os conflitos armados se sucederam, em 2002 um acordo de paz foi assinado, a república tem agora o seu terceiro presidente, o projeto socialista foi abandonado, novos escritores fortaleceram o processo de formação da ficção angolana, outras formas de arte ganharam energia… A natureza e a intensidade de tantas mudanças nos levam certamente a levantar questões sobre a validade de uma nova edição no Brasil desta obra escrita no calor de uma hora tão particular na história do país e não só. Podemos começar por recordar, nesse sentido, que na década de 1960 o mundo à nossa volta vivia sob a luz de muitas utopias e olhava, com algum entusiasmo, as lutas de libertação que prometiam mais que a vitória sobre o colonialismo português e sua insistência em se prolongar na África. Mesmo no Brasil, imprensado sob mais um período ditatorial, havia réstias de esperança na resistência e na possibilidade de superar a truculência dos coturnos. Certamente pela primeira vez, do continente africano sempre visto como um espaço à parte no contexto mundial, alguns territórios emergem como focos de luz em um planeta que parecia sacudido por ideais de justiça e igualdade social.

Após quase meio século e as mudanças que ficaram a meio caminho do sonho, somos levados a pensar no significado de uma obra que nos fala da luta anticolonial e, sob o selo de uma inequívoca escolha ideológica, traz-nos as marcas de um pertencimento a um lado da cidade dividida tão bem descrita por Frantz Fanon em seus agudos tratados sobre o colonialismo. Como explicar a capacidade que a obra revela de se manter atual em um momento tão diverso daquele em que nasceu? Para nos aproximarmos da complexidade desses tempos (daquele passado e do nosso presente), e para examinarmos as relações da literatura com a experiência histórica que a linguagem de Luandino trabalha com maestria, é que podemos percorrer com um atormentado narrador as ruas e becos de uma cidade que é bem mais que uma paisagem, que é simultaneamente um espaço e um tempo, uma espécie de quadro vivo que, nas sensações que evoca, nos traz a dor e a perplexidade de uma geração.

Quando se fala de Angola e de seu caminho em direção ao fim do colonialismo, o conceito de geração se alarga. Não se trata de um grupo definido pela faixa etária, mas pelo compromisso com um projeto, o da libertação nacional. Desde o fim dos anos de 1940, o sonho de um país livre juntou angolanos de várias idades, raças e classes, empenhados na conquista da libertação política e social, entre os quais podemos identificar aqueles que, percebendo a escrita como uma arena, procuraram fazer da literatura mais um instrumento para a transformação. Aí encontramos José Luandino Vieira, um escritor cidadão movido desde cedo pelo compromisso de associar ao sentido ético de sua luta a dimensão estética de seus textos. Seu pacto, sempre e a um só tempo, com a ordem que desejava e com a beleza em seu sentido maior, manifesta-se nesse exercício de dupla lealdade a que ele devota seu trabalho e seu talento.

O primeiro título, A cidade e a infância, já apontava o caminho de dois temas caríssimos que serão visitados a partir de várias perspectivas, todas elas guardando a marca da complexidade que ele soube ver nas situações que aborda. Nesse conjunto de contos, uma funda familiaridade dos narradores com os espaços em que se armam os enredos, aponta para a sua capacidade de circular por áreas da cidade que permaneciam à margem e mantinham uma certa impermeabilidade à lógica imposta, a despeito das incursões nada amigáveis da violência policial, único braço do estado a se manifestar com frequência na cidade do colonizado. Poucos anos depois, em A vida verdadeira de Domingos Xavier e, principalmente, Luuanda, o processo de escrita de Luandino seria redimensionado na opção pela ruptura operada no domínio da linguagem. Será, todavia, nesse fabuloso Nós, os do Makulusu, escrito na aridez do Tarrafal (o terrível campo de concentração localizado em Cabo Verde, onde estavam presos nacionalistas que tinham ousado desafiar a opressão colonial), que as tintas da radicalidade darão nota ao projeto literário que, acompanhando as voltas e reviravoltas de Angola e do mundo, continua em curso. A condição do autor, detido e condenado a tantas formas de sujeição, torna ainda mais surpreendente o resultado de uma obra que renuncia à tentação do maniqueísmo e traz para o debate a humanização do inimigo. Não se trata de reduzir a tensão ou relativizar a dimensão do mal, mas de buscar uma reflexão mais densa sobre os embates que a História plantou naquele solo.

A morte, de que o tiro que dá início à narrativa é uma pungente metonímia, enraíza o problema da diferença de posições e dimensiona o drama, mas não dilui a necessidade de se ter em conta o lugar do angolano – esse outro invisível na sociedade colonial e na literatura produzida na metrópole, em cujas páginas ele não passaria de um elemento do cenário, como podemos observar em tantos títulos. Essa oclusão facilmente explicável no repertório mais afinado com as ideias do império, torna-se inquietante nos textos produzidos com o compromisso da denúncia social e coloca em debate a ausência do problema colonial e, consequentemente, dos africanos nas obras do Neorrealismo. Tal invisibilidade foi captada por Luandino que, contudo, não lança explicações superficiais, renunciando com firmeza o jogo da contraposição banal. Ao contrário, ao mergulhar nas águas fundas de um universo convulsionado deixa ver a contradição como traço dominante. Atento aos movimentos da História, ele põe em cena a dureza da experiência dos impasses da vida cortada pela guerra e pelos caminhos trilhados pelos quatro personagens que partilharam a infância nesse pedaço da cidade que o Makulusu inscreve.

Assim, os dilemas e a vivência algo surpreendente de personagens muito variados, coexistindo em mundos segmentados, não são apenas o tema, definindo-se como marcos da estrutura que nos coloca de frente para a profundidade da crise dinamicamente espelhada pela narrativa. O autor recusa-se a uma simples inversão de pontos de vista, conduzindo-nos, de modo muito produtivo, ao desafio de olhar a situação sob o signo da mobilidade, expondo, sem perder a medida do lado que é o seu, as hipóteses da diversidade que o maniqueísmo prefere banir. Nesse movimento, recorre à sobreposição temporal e potencializa a coexistência de tradições, línguas e códigos culturais para trazer à luz a fratura que define as relações sob a dominação colonial. O desejo de ruptura que o afasta deliberadamente da norma lusitana articula-se aos gestos de aproximação com o universo marginalizado pelo poder e o resultado é a construção de uma linguagem centrada no corte, nas elipses, no ritmo de uma sintaxe que evidencia o desconcerto do mundo à volta.

Na consciência do Mais-Velho, estilhaçada pela inviabilidade de um projeto de transformação imerso em tanto sangue, está interditada a sagração de uma mitomania nacionalista, como poderíamos esperar de um livro escrito no espaço do cárcere e na certeza de uma adesão. Aqui encontramos uma das grandes qualidades desse texto: a faculdade de perceber, para além das sombras do ressentimento, os mecanismos que acionam a incomunicabilidade e impedem qualquer hipótese de porosidade entre os seres e mundos marcados por alguma diferença. Converter a diferença em desigualdade era a tônica do sistema colonial, e pode nos parecer lógico que a resposta do combate atualize a proposta de apagar ou desumanizar o diferente. Em Nós, os do Makulusu, porém, a diversidade preenche a narrativa e nos ensina a exercitar outros olhares diante de uma realidade cortada pela perda e pelo irrevogável da morte inerentes à guerra. 

O confronto entre a década de 1960 e os nossos dias, sem dúvida, faz desfilar diante de nossos olhos um roteiro de mudanças. Se em Angola, também pela força de atores como Luandino, se pode notar a desnaturalização das barreiras raciais, que era um dos móveis da luta de libertação, sabemos que lá, como em todo o planeta, em nome de tantos deuses, sucedem-se as crises em que a recusa do Outro pode ser causa ou consequência. Os conflitos de natureza étnica em tantos países, o massacre dos refugiados na Europa, as agressões de base religiosa pelo mundo afora, os constantes ataques aos pobres no Brasil são manifestações dessa intolerância que, atentando contra a humanidade dos agredidos, exprimem a desumanidade do agressor. Diante desse panorama, somos tentados a repetir com Carlos Drummond de Andrade: “O mundo não vale o mundo, meu bem.” Como uma gota contra o desalento que daí nos vem, entretanto, vale a pena ler (e reler) Nós, os do Makulusu, e vislumbrar no jogo desgovernado de uma obra fabulosa algum sentido para a literatura. E para a vida. E, desse modo, poderemos compreender também a validade da reedição de um livro como esse.

Trouville / São Paulo, abril de 2019.

Rita Chaves
Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa do
Depto. de Letras Clássicas e Vernáculas (FFLCH-USP), e pesquisadora do
CELP-FFLCH-USP (Centro de Estudos das Literaturas e Culturas de Língua Portuguesa – FFLCH-USP)

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O ARTIGO:
CHAVES, Rita “Nós, os do Makulusu – a palavra e o outro”. In: VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/nos-os-do-makulusu-a-palavra-e-o-outro-por-rita-chaves/>

O LIVRO:
VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

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Na asa da escrita, por José dos Remédios

Um romancista não terá, forçosamente, que depender do êxito ou fracasso dos seus livros,
terá que continuar, sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir.
Eduardo Paixão

“Dazanana de Araújo Simplíssimo vivia uma estranha sensação de que estava morto. Durante muitos anos cultivava em demasia a crença de que a sua vida era a morte” (p. 9). Assim inicia a história de um personagem muito particular, obstinado e comprometido com as dimensões gigantescas do seu sonho: Dazanana, do rhonga, língua falada na capital moçambicana, idiota ou palerma. Pode ser que estes dois significados encaixem no perfil do protagonista de Cemitério dos pássaros, mas apenas se se considerar à sua entrega a um propósito claramente definido: o de construir um cemitério no qual os finados da sua família reencarnariam como pássaros, alcançando, por isso, outras dimensões da existência.

Colocando a narrativa neste prisma, Adelino Timóteo, logo no princípio da diegese, questiona sobre os limites da vida na mesma proporção que minimiza a morte, afinal, a acreditarmos como Dazanana defende, nunca deixamos de viver, quando morremos. O que ocorre é um trânsito para lugares quase inimagináveis, os quais, uma vez alcançados, conferem à alma uma espécie invulgar de transcendência. Então, diante do seu maior projecto de vida, o protagonista de Cemitério dos pássaros move-se num labirinto estranho, decidido a levantar o véu dum cenário jamais desmistificado: o além. No fundo, há nessa entrega uma continuidade, a de fazer do realismo mágico uma forma de escrita. Continuidade porque esta não é a primeira vez que Timóteo atribui à existência a capacidade de vencer a morte, revelando, nessa condição, as imprecisões características. 

Dazanana é o instrumento usado pelo escritor para representar a obsessão humana em prolongar a sobrevivência, não no além, que é incerto, mas neste mesmo mundo. Logo, o personagem funciona como cicerone de uma trajectória que termina em metamorfose. Não podendo permanecer eternamente no plano real, numa condição de partida, cheia de vigor juvenil, o herói timoteano, com uma fé religiosa, põe-se a sustentar a pretensão de transformar o seu cemitério num ninho, lugar predestinado para reinventar os conceitos de gestação. Na verdade, é mesmo de evolução que estamos a falar, como se a natureza fosse exageradamente generosa para permitir a humanidade permanecer num mundo que a destrói, de múltiplas maneiras.

Por via de Dazanana, o romance de Adelino Timóteo sustenta-se na susceptibilidade de mergulhar fundo nos aspectos folclóricos, se quisermos, tradicionais de uma cultura oral ainda bem enraizada no quotidiano dos moçambicanos, e, acreditamos, dos brasileiros também. Este livro inédito ora publicado pela editora Kapulana, fruto de uma imaginação absolutamente incrível, é um lugar de propagação de crenças, sem restringir-se a isso, mesclando uma ficção delicada com uma visão holística sobre o meio e as culturas. Quiçá, essa deve ser a razão de Cemitério dos pássaros ser um livro riquíssimo do ponto de vista temático. À semelhança dos títulos anteriores, por exemplo, Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz (romance) e Na aldeia dos crocodilos (infanto-juvenil considerado “Altamente recomendável” no Brasil, e, por isso, finalista do Prémio FNLIJ) este novo livro do poeta e romancista moçambicano, natural da Beira, cidade rebelde agora afamada devido aos danos do ciclone Idai, vai buscar ao Vale do Zambeze a fertilidade indispensável para uma boa narrativa, como quem reinventa as particularidades daquele espaço mitológico cheio de muitos encontros inaugurais entre povos de diversas culturas. Com o Zambeze resgata-se o passado (e a origem da miscigenação na Zambézia, província do Centro de Moçambique), eventualmente porque, como escreve Ungulani Ba Ka Khosa no seu Gungunhana, “esta terra [Moçambique] está sendo construída sem o passado. Tudo o que é passado é coisa morta”. Ou desvalorizada. Sendo que “morta” e “desvalorizada”, neste contexto, acabam sendo a mesma coisa.

A propósito, uma vez Adelino Timóteo prometeu-nos publicar três ou mais romances sobre o Zambeze. Pode ser que a promessa esteja já a ser cumprida, e, daí, um Moçambique diferente do actual esteja a ser apresentado ao mundo, na asa da escrita, onde cabe o imaginário, os hábitos e costumes no livro bem valorizados. Portanto, Cemitério dos pássaros é um romance filantrópico em que “Salvar a história, seja onde for, impõe a liberdade de escolher ser livre ou sujeitar-se ao sacrifício” (p. 56). Dazanana, tal como o seu criador, sempre escolhem a liberdade, mesmo quando o conforto está na covardia, mesmo quando a decisão de marchar em frente custa mais que suor. A liberdade de concretizar e assumir o risco disso está tão vincada em Dazanana que Maria de Lourdes Pintassilgo, a esposa, passa a ter um companheiro no lugar de um marido. Porque perseguindo o seu ideal, aquele protagonista reinventa-nos como leitores às vezes estáticos na ousadia de alcançarmos outros voos. Bem visto, esse tipo de relações amorosas que Maria de Lourdes deseja que sejam calorosas, cor-de-rosa, não têm proeminência em Adelino Timóteo. Os casais timoteanos, quase sempre desleixados às singularidades do afecto, deixam-se prender por outras obrigações. Em Cemitério dos pássaros acontece o mesmo, por exemplo, com Dona Ana, a lembrar-nos esse registo “ninfomaníaco” recorrente na narrativa do autor. Na verdade, Dona Ana é a continuidade do carácter que o romancista estampa numa outra personagem: Luíza Michaela, em Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz.

Quanto mais Adelino Timóteo vai escrevendo, traz propostas para a libertação das pessoas das amarras sociais, questionando preconceitos, tabus, e, em derradeira instância, os cânones civilizacionais, por exemplo, esses que oprimem a mulher em cada oportunidade cedida ao homem. Se Dazanana é um exemplo de coragem na luta pelo que acredita, Dona Ana pode ser entendida como esse pássaro decidido a aprender a voar na intimidade das suas sensações, desejos e fantasias. Com o sexo no centro de tudo.

À parte tudo isto, mais uma vez, a Kapulana publica – como nos lembra Eduardo Paixão no seu Tchova, tchova – um autor que não terá que depender do êxito ou fracasso dos seus romances, terá que continuar, e continua sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir. Da Beira, onde vive, Adelino Timóteo projecta-se sempre com a sua obra, predisposto a reinventar a história, inovando-a, e, por consequência, a tornar os seus leitores melhores pastores da vida.

José dos Remédios
Jornalista
Maputo, 11 de Maio de 2019.

Citar como:

O ARTIGO:
REMÉDIOS, José. “Na asa da escrita”. In: TIMÓTEO, Adelino. Cemitério dos pássaros. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/na-asa-da-escrita-cemiterio-dos-passaros-por-jose-dos-remedios/>

O LIVRO:
TIMÓTEO, Adelino. Cemitério dos pássaros. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

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Martinho, um artesão, por Tom Farias

Martinho da Vila é realmente um sujeito fora do comum. No curso dos seus implacáveis 80 anos, o bamba de Vila Isabel trabalhou como nunca em sua festejada existência. Além de dois CDs e do DVD – este a caminho, gravado no imponente e lotado Theatro Municipal do Rio de Janeiro – que colocou na rua, falo do histórico “Alô Vila Isabeeeel!!!”, que reúne os clássicos sambas da escola do bairro de Noel Rosa, e, mais para o finalzinho do ano, o bem bolado “Bandeira da fé”, uma experiência contagiante, inovadora na vida do músico e compositor, como foi o trabalho que o antecedeu, no caso o antológico “De bem com a vida”, que marcou uma mudança de atitude, única do ponto de vista do conceito, mas sem desafinar a trajetória cinquentenária de uma carreira repleta de sucessos e muitos merecidos prêmios, nacionais e internacionais.

Foi nessa pegada de grandes eventos e fortes emoções, com destaque para as homenagens, em especial da sua terra natal, a cidade de Duas Barras, onde Martinho foi tema de selo comemorativo e titular de um ano inteiro de festejos, as atividades das escolas públicas do estado do Rio de Janeiro em torno da sua história, as paparicadas da Vila Isabel, onde saiu em destaque no carnaval, desfilando no alto do carro no Sambódromo, exatamente no dia das suas oitenta primaveras, e da Unidos do Peruche, tradicional agremiação de São Paulo, que o levou como enredo para a avenida dos desfiles, volto a dizer, foi nessa pegada, que Martinho laborou, com sua indiscutível disciplina de trabalho, a escritura de um livro novo, que exigiu dele, além de tudo, tarefa quase diária de muita escrita e seguidas leituras.

Das mãos desse metódico trabalhador incansável das madrugadas silenciosas – Martinho não dorme, ele repousa -, é que nasceu a joia rara de sua artesania, na arte de artesanar, de ser artesão, que é este 2018 – Crônicas de um ano atípico.

Faz dois anos que lançou o excelente Conversas cariocas, uma antologia de textos trabalhados para atender a uma coluna de jornal popular, como é o jornal O Dia, na sua edição dominical. Já 2018 – Crônicas de um ano atípico marca um processo diferente do artista, que é, diga-se de passagem, romancista de mão cheia. São dele Memórias Póstumas de Tereza de Jesus, Lusófonos, Vermelho 17, Barras, vilas & amores, entre outros mais, como o Vamos brincar de política? ou A serra do rola-moça, num total de 15. Neste novo trabalho, Martinho se supera na tacada e no acerto, ao narrar, toda semana, assuntos os mais variados e relevantes, dando a cada um deles, obviamente, seu toque pessoal, seu ponto de vista crítico, sua opinião ida e vivida. É assim que fala das festas de fim de ano, dos festejos em sua homenagem, da expectativa da Copa do Mundo, da questão política, da prisão do Lula, a quem, com Chico Buarque, foi visitar em Curitiba e saiu impressionado com o alto astral do ex-presidente, da sua atual paixão, a Barra da Tijuca, do amor à numerosa família, das viagens, da dura vida de artista no Brasil, da paixão pelo futebol, sobretudo pelo Vasco, dos amigos e das amizades, das pescarias onde ninguém volta com o pescado, do seu “off Rio”, de Vila Isabel e do samba, com muitas histórias e a transcrição de letras memoráveis, muitas que dão gosto de lembrar e reviver. Uma dessas histórias saborosas, sobre música e gente, trata do nascimento do samba O pequeno burguês, ainda nos tempos do Exército, quando era sargenteano, como ele mesmo diz. A canção (“Felicidade, passei no vestibular/Mas a faculdade é particular”, quem não se lembra?) é referência do seu cancioneiro até hoje, desde que foi lançada, há 50 anos.

São divertidas e instrutivas as histórias contadas por Martinho da Vila. De janeiro a dezembro, vamos tomando ciência dos acontecimentos, nem sempre noticiados na grande mídia, e dos que nos passariam despercebidos, não fosse a percuciente ideia do grande bamba, através da sua escrita semanal, no passo e compasso do seu ritmo como escritor e intelectual, nos trazer à tona, nos revelar, interagir. O resultado saiu-se o melhor possível: com muita harmonia, com muito talento, esmerando e lapidando, eis a carpintaria da palavra perfeita, do verso sincopado, do partido-alto da rima, nessa engenharia artesã, que labora e explora o infinito da criação artista, sem se tornar enfadonho, e, igualmente, sem a tal da pressa, pois com ele, as coisas vão sempre no ritmo do devagar, devagarinho.

O clima é de encantamento, de viva alegria, de requintada realeza – Martinho é um diplomata da magia, é amigo de todos, é um camarada aguerrido, e é, acima de tudo, um criador. No silencioso sossego do seu lar, no convívio da rainha Cléo Ferreira, dos filhos Alegria e do Preto, elucubra consigo mesmo, confabula e urde pensamentos e questões, como exercício existencial diário para respirar e para ser.

Falando de esperança e pensando na paz, como verdadeiro embaixador que de fato é, Martinho da Vila pode ser considerado a mais viva história de superação e fé no futuro. Aquele menininho, preto e pobre, filho do Josué e da Dona Tereza, nascido no recanto de uma fazenda do interior e criado no Morro dos Pretos Forros, na Boca do Mato, faz parte hoje da rica cultura popular, como um bem, uma preciosidade. Ler os seus textos, tomar nas mãos o seu livro, como o fazemos agora, é uma forma de continuar o reverenciando e merecendo, e o prestigiando e admirando, acima de tudo.

Tom Farias – jornalista e escritor
11 de fevereiro de 2019.

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O ARTIGO:
FARIAS, Tom. “Martinho, um artesão”. In: VILA, Martinho da. 2018, Crônicas de um ano atípico. São Paulo: Kapulana, 2019. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/martinho-um-artesao-por-tom-farias>

O LIVRO:
VILA, Martinho da. 2018, Crônicas de um ano atípico. São Paulo: Kapulana, 2019.

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CineGrafias Moçambicanas – Memórias & Crônicas & Ensaios: Apresentação, por Carmen T. Secco, Ana Mafalda Leite e Luís Carlos Patraquim

Este livro resultou de trabalho conjunto, apoiado por tríplice parceria: entre Carmen Tindó Secco, Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Ana Mafalda Leite, Professora da Universidade de Lisboa; e Luís Carlos Patraquim, um dos fundadores do cinema moçambicano, cuja participação foi fundamental pelo amplo (re)conhecimento da(na) área.

É decorrência, também, de trocas e diálogos entre os projetos “Literatura, Cinema e Afeto: figurações e tramas da história em escritas literárias e fílmicas de Moçambique e Guiné-Bissau” (coordenado por Carmen Lucia Tindó Secco, apoiado pelo CNPq e FAPERJ) e “NEVIS – Narrativas Escritas e Visuais da Nação Pós-Colonial” e “NILUS – Narrativas do Oceano Índico no Espaço Lusófono” (coordenados por Ana Mafalda Leite, com apoio da FCT), cujas ações têm possibilitado produtivo intercâmbio cultural entre Brasil, Portugal e Moçambique.

A ideia da publicação de entrevistas com realizadores de Moçambique surgiu em razão de ser ainda escassa a bibliografia a respeito do cinema moçambicano e, também, por não haver mais, atualmente, em Moçambique, uma política cultural de valorização de festivais cinematográficos, como ocorria, há alguns anos, com o Dockanema que, durante várias edições, promoveu a divulgação de filmes, debates e oficinas.

Como o cinema, no período logo após a independência, foi fundamental à construção da nação moçambicana, e, ainda hoje, continua a ser um dos meios importantes de preservar a memória do país e pensar Moçambique e o mundo, consideramos ser um significativo contributo a recolha de opiniões não só de antigos e reconhecidos realizadores moçambicanos, como também de representantes das jovens gerações. Decidimos, então, reunir, no livro, entrevistas, ensaios, crônicas[1] de realizadores e de estudiosos da área, com o intuito de registrar não só a trajetória passada do cinema moçambicano, mas também reflexões acerca das condições e do papel deste no presente.

Cada vez mais, entrevistas são utilizadas, metodologicamente, como rico instrumento de pesquisa, capaz de propiciar entrelaces interdisciplinares e interartísticos. Em literatura e história, é comum entrevistar poetas, escritores. Também no âmbito cinematográfico, entrevistas a cineastas e realizadores são usadas como fontes que permitem a criação de “arquivos vivos” que captam visões pessoais e memórias subjetivas dos entrevistados acerca de seus filmes, de seus posicionamentos ideológicos sobre contextos históricos, políticos e sociais vivenciados. A relevância das entrevistas reside em possibilitar a exteriorização de pontos de vista diferentes, assim como questionamentos e interpretações críticas a respeito de momentos controversos da história.

A entrevista, nas suas diferentes aplicações, é uma técnica de interação social, de interpretação informativa (…); pode também servir à pluralização de vozes e à distribuição democrática da informação. Em todos estes ou outros usos das Ciências Humanas, constitui sempre um meio, cujo fim é o inter-relacionamento humano.[2]

Quatro das entrevistas que compõem este livro – as de Licínio Azevedo, Sol de Carvalho, João Ribeiro e Yara Costa – foram respondidas, livremente, por escrito, a partir de perguntas formuladas pelos organizadores. A de Ruy Guerra foi realizada pessoalmente por Olivier Hadouchi e Vavy Pacheco Borges, em Paris, em 2012; já as de Isabel Noronha e Camilo de Sousa foram gravadas, durante uma conversa informal, por Ana Mafalda Leite, em Lisboa, em 2017.

A escolha dos realizadores entrevistados deveu-se, por uma lado, à representatividade de cada um e, por outro, ao fato de terem aceitado nosso convite. Alguns nomes importantes relacionados ao cinema moçambicano – como o de Pedro Pimenta, Gabriel Mondlane, José Luís Cabaço, Ungulani Ba Ka Khosa, entre outros – e o de Diana Manhiça – atual presidente do projeto do Museu do Cinema Moçambicano – também foram contatados, mas, infelizmente, por motivos vários, não responderam às entrevistas.

CineGrafias Moçambicanas: Memórias & Crônicas & Ensaios se estrutura em quatro partes, antes das quais, com a intenção de despertar a curiosidade dos leitores e instigar a leitura, foram inseridas imagens sugestivas: uma foto do velho prédio do cinema Império localizado em Maputo, fotografias de Camilo de Sousa e Isabel Noronha em antigas gravações e cenas representativas de filmes produzidos pelos realizadores entrevistados neste livro.

A primeira parte é constituída por dois ensaios: o de Guido Convents, que traça um panorama do cinema colonial moçambicano, evidenciando como este encontrava-se a serviço da propaganda do império português, e o de Luís Carlos Patraquim que reflete sobre o cinema moçambicano da pós-independência.

A segunda congrega entrevistas de realizadores incontornáveis, entre os quais: Ruy Guerra, Camilo de Sousa, Licínio Azevedo, Isabel Noronha, Sol de Carvalho, João Ribeiro, Yara Costa.

A terceira é constituída por crônicas de Ruy Guerra, Licínio Azevedo, Luís Carlos Patraquim, Sol de Carvalho e Isabel Noronha. Esta parte, a nosso ver, é de grande originalidade, uma vez que desvela os bastidores das filmagens, ou seja, o avesso das aventuras vivenciadas durante as gravações dos filmes por alguns dos realizadores.

Fechando o livro, a quarta parte contém dois ensaios: o de Júlio Machado, que analisa o filme Mueda, memória e massacre, de Ruy Guerra, marco do cinema moçambicano, e o de Ute Fendler, que investiga a presença do “fantástico” como uma das tendências existentes na filmografia moçambicana. Esta última seção é breve, contudo enriquecedora, na medida em que descortina um viés crítico, sugerindo a importância de estudos acerca de temáticas e filmes representativos do cinema moçambicano.

Das entrevistas obtidas depreende-se, de modo geral, que o cinema cumpriu a urgência de narrar a nação moçambicana, chamando atenção para questões de poder que marcaram profundamente a história de Moçambique – o colonialismo, a guerra, a miséria, a violência –, mas também apontando para a necessidade de revisitação de valores e traços africanos silenciados e para as múltiplas diversidades culturais, sociais, religiosas presentes em Moçambique e no continente africano.

Na entrevista de Ruy Guerra, desponta seu olhar de cineasta sempre atento às relações de poder, um olhar que põe em cena contradições sociais internas a serem repensadas criticamente. Em sua entrevista, Ruy enfatiza que são fortes as relações entre cinema e política; relembra, com seu humor crítico, algumas vivências relacionadas a filmagens por ele realizadas, entre as quais se encontram passagens especiais de sua parceria com Gabriel García Márquez, Chico Buarque, entre outros.

Camilo de Sousa, por sua vez, relembra sua infância na Mafalala; denuncia, nessa época, a ostensiva opressão colonial e o racismo; recorda sua tia Noémia de Sousa, sua relação com Ruy Guerra; fala sobre seus filmes. Isabel Noronha, em sua entrevista, narra suas experiências e aventuras de filmagem, relata a importância do surgimento do cinema moçambicano, a fundação e o fechamento do Instituto Nacional do Cinema em Moçambique. Com uma visão bastante lúcida e sensível, comenta que em seus filmes busca narrar histórias de pessoas que foram silenciadas. Mas observa que, para filmar “essas histórias privadas, é preciso encontrar o dispositivo certo para contornar ou quebrar a questão do silêncio político, que foi sendo e ainda é imposto”.

Licínio Azevedo, com respostas curtas e objetivas, criticamente, sintetiza a significação do cinema moçambicano, que, em sua opinião, representa “o próprio país, pois Moçambique é hoje a nação que o cinema ajudou a construir”. Sol de Carvalho, detalhadamente, avalia o importante papel do “Kuxa Kanema” em Moçambique; narra suas experiências de filmagem; fala da criação da produtora PROMARTE e comenta suas adaptações de textos literários para o cinema.

João Ribeiro também relaciona o nascimento do cinema moçambicano à construção da nação, observando que a descolonização do olhar tem sido uma espécie de clichê que persegue, em geral, o cineasta africano. Porém, enfatiza que, quando faz um filme, procura criar algo novo ou suficientemente forte para manter o suspense e surpreender o espectador. Para ele, fundamentais são as histórias contadas, as mensagens passadas, construídas de forma estética inovadora.

Já a realizadora Yara Costa critica a falta de investimentos em cinema atualmente em Moçambique e afirma ser muito difícil a realização de filmes moçambicanos, pois os apoios financeiros são quase inexistentes. Explana a respeito de seus filmes, entre os quais Entre Eu e Deus, que versa sobre a escolha radical de uma religião feita por uma jovem, num contexto de violência e intolerância religiosa.

Se as entrevistas deste livro são elementos fundamentais para a história do cinema moçambicano, as crônicas vêm acrescentar uma dimensão criativa e espetacular ao ofício dos realizadores, bem como uma tensão de reenquadramento da memória, entre outros aspectos. Com efeito, a noção de crônica, como lembra David Arrigucci[3], pressupõe a noção de tempo, presente no próprio termo, que procede do grego, chronos. É uma escrita que tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo, que implica lembrar e escrever, relato em permanente relação com a temporalidade de onde retira a memória, enquanto sua matéria principal.

No caso dos dois textos de Sol de Carvalho, que situam alguns episódios na rodagem do seu último filme Mabata Mbata, deparamo-nos em especial com uma reflexão sobre o cinema africano e algumas das contradições existentes entre cinema pedagógico e dimensão estética, em que o realizador evoca palavras de Godard, quando o cineasta francês esteve em Moçambique, lembrando como ele considerava África como um mundo imaginário carregado de símbolos, imagens e representações, que constituem o enorme reservatório de criação de cinema inovador e, ao mesmo tempo, próximo dos seus destinatários.

Já as crônicas de Luís Carlos Patraquim retomam a posição instável e lúdica da crônica, entre jornalismo e literatura. O tempo dos leopardos situa criticamente uma época da história e do engajamento ideológico do cinema em Moçambique e narra o trabalho conjunto com Licínio de Azevedo, enquanto guionistas. A crônica “A Revolução dos Outros” evoca o encontro com a figura do realizador francês Jean-Luc Godard no Hotel Tivoli num sábado de 1978, perfazendo uma narrativa de memória pessoal e simultaneamente histórica, com a evocação das peregrinações utópicas e revolucionárias de várias figuras do cinema internacional, que por essa época passaram em Moçambique. É o caso de Florestano Vancini que esteve no Instituto Nacional de Cinema para falar da cinematografia italiana, ou de Med Hondo, da Mauritânia, que realizou um filme sobre o Sahara Ocidental – Teremos a morte para dormir – com produção moçambicana e estreia mundial em Maputo, ou ainda de Ruy Guerra com o projeto para o cinema móvel e com a realização do filme Mueda, memória e massacre. As crônicas de Patraquim, num estilo lírico-coloquial, reconfiguram historicamente a importância destes vários encontros com personalidades internacionais no quadro do cinema moçambicano, dimensão que veio também a ser documentada no filme de Margarida Cardoso, Kuxa Kanema: o nascimento do cinema (2003).

As cinco crônicas de Isabel Noronha e de Licínio de Azevedo percorrem também uma dimensão autobiográfica, mas enquanto ligação umbilical ao início dos seus percursos pessoais na entrada do mundo do cinema em Moçambique, aliando um registro histórico ao estórico, criando uma ponte de excelência entre a literatura e a história.

A primeira crônica de Isabel Noronha, “Quadro perdido, quadro partido, quadro reenquadrado – Uma das infinitas estórias do Cinema Moçambicano”, bem como “A Chegada”, de Licínio de Azevedo fazem essa travessia das estórias pessoais, quase em jeito de autoficção, para uma outra história, um outro quadro maior, agora reconfigurado, reenquadrado. A escrita dos dois realizadores confirma uma das características da crônica enquanto gênero compósito, capaz de gerir múltiplas componentes do relato: dimensão dramática, lírica, cômica. Como o próprio Licínio explica: “Mais do que uma reportagem objetiva, nós, também, procurávamos contar uma história, com personagens e ação. Falo disto porque é algo que depois foi importante para mim quando transitei para o cinema, e do documentário para a ficção, criando uma ponte entre ambos os gêneros.” E o realizador vai contando como a experiência de jornalista se reformulou no guionismo e foi, aos poucos, caminhando para a realização, passando do Instituto de Cinema para o Instituto de Comunicação Social, numa época com poucos recursos humanos e técnicos existentes em Moçambique, em que a opção de gênero cinematográfico a ser desenvolvido foi necessariamente o documentário.

No caso de Licínio de Azevedo a sua escrita é quase um exercício brechtiano, em que a reduplicação do sujeito enquanto espectador crítico e rememorativo de si próprio procura expor de forma simples, e por vezes bem-humorada, alguns aspectos da estrutura técnica do seu próprio processo compositivo. As suas crônicas mostram também a sua vertente de escritor, o gosto pelo enredo, pelas pequenas estórias ocorridas na realização dos seus documentários e filmes, em anotação quase diarística. Licínio respeita a relação com o mundo das crenças e espiritualidades, e nele mergulha para escrever e filmar, criando uma tensão criativa entre o mundo real e o mundo imaginário. Como ele afirma:

Para mim um documentário pode nascer de uma pequena notícia publicada na imprensa. Ler jornais diariamente é um hábito que adquiri lá atrás e não abandonei: um “fait divers”, a mulher agredida pelo marido, uma disputa entre vizinhos… Qualquer notícia, por mais banal que seja, pode transformar-se num bom documentário, se tratarmos o assunto da maneira correta, com respeito pelos seus protagonistas, pelas tragédias vividas pelos outros. Por vezes, um fragmento de um documentário inspira e dá lugar, anos mais tarde, a uma longa-metragem de ficção.

As crônicas de Licínio de Azevedo complementam de forma iluminante o estudo de filmes como Desobediência, A árvore dos antepassados, Virgem Margarida, Comboio de sal e açúcar, ou dos documentários Tchuma Tchato, Mariana e a Lua. Trazem as estórias e trilhos do processo, desvendam as peripécias dos vários momentos que acompanham a realização, à maneira de intermediações entre ator e plateia, como o coro do teatro grego, mostrando o processo que levou ao produto final dos seus filmes e docuficções.

Isabel Noronha perfaz também ao longo das cinco crônicas, aqui publicadas, uma cronologia de vida, desde o momento em que entra para o Instituto de Cinema, à sua experiência de trabalho e aprendizagem (“Caminhos do Ser”, “Sagrada Arrufada”), e saliento aqui, no quadro da guerra civil, muito especialmente a crônica “Satanhoco” que evoca, em termos de uma escrita dramática, a vivência de risco de todos aqueles que participavam nas filmagens de Kuxa Kanema. Nota-se na escrita de Isabel Noronha uma inflexão lírico-pessoal, uma subjetividade crítica muito intensa e simultaneamente tensa. A escritora, que Isabel Noronha também é, além de realizadora, revela-se muito especialmente com sua última crônica “O Pintor”, em que a crônica assume o esplendor da poesia, ao mesmo tempo que acompanha de forma muito sutil a origem e a realização do seu filme Ngwenya, o crocodilo (2007):

Toda a manhã, os olhares, guardados atrás das paredes de caniço, espreitariam ansiosos o cessar da chuva que, inclemente, devolvia à terra cada gesto desse estranho homem que dedicara a sua vida a colecionar pedaços vivos de luz para costurar com eles a camisa de retalhos com que cobria o seu peito, onde precocemente se tinham alojado todas as sombras da floresta.

Recuando no tempo, as crônicas de Ruy Guerra organizam-se em duas partes, as três primeiras publicadas em 1949, em Lourenço Marques, mostram o despontar do gosto do realizador pelo cinema e pela escrita, fazendo uma espécie de visitação do passado do artista enquanto jovem aprendiz. A primeira crônica “Foi assim que morreu o Bobby, o cãozinho de pelos de arame” é uma narrativa fabular, que faz lembrar, ainda que desfocadamente, Nós matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana, e de imediato nos apela para o sentido de dependência e de liberdade e para as diferenças sociais e de sofrimento dos seres vagabundos e abandonados. Um cão da rua, sem raça, nem dono, sem nome, sobre quem Ruy escreve e se demora a caracterizar, mostrando talvez, de forma indireta, as conflitualidades latentes da sociedade colonial. Uma outra crônica “Utilidades e perigos do Cinema na formação do caráter da juventude” reflete sobre a importância do cinema e da literatura e os prejuízos do cinema comercial na formação intelectual dos jovens. Por outro lado, as duas últimas crônicas de 1997, escritas no Brasil, quase meio século depois, tratam da experiência cinéfila do realizador:

(…) ao longo da vida fui devorando vorazmente filme após filme, me alimentando de imagens, em preto e branco, coloridas, mudas, sonoras. E o meu conhecimento do mundo deve muito a essas vidas que passei nas salas escuras, os olhos fixos na tela, onde pessoas e coisas desfilavam diante de mim emoções que me foram moldando naquilo que sou.

Em “A imagem e o horror”, Ruy Guerra questiona o poder da imagem numa época em que a tecnologia nos leva para a virtualização e “em que o espetáculo toma frequentemente o lugar da realidade e se confunde com ela”. Por último, relata a sua experiência de conhecimento de Max Ophuls, quando ainda era estudante de cinema em Paris, deixando-nos mais um traço da memória do seu percurso de vida, em que a diversidade de contatos e internacionalização certamente vieram a contribuir para o transformar, no futuro, no marco do cinema, que ele é.

No último momento deste livro, fazemos a transição das crônicas dos realizadores para uma pequena seção de estudo crítico, em que se apresentam dois ensaios sobre cinema moçambicano, em que o leitor poderá aprofundar uma dimensão teórico-crítica sobre o cinema deste país. O primeiro ensaio, mais monográfico, intitula-se “Da fotografia ao teatro, da retórica à poética: reflexões sobre Mueda, memória e massacre, de Ruy Guerra”, de Júlio Cesar Machado de Paula, e mostra o caráter simultaneamente documental e ficcional do filme, ao mesmo tempo que discute a interpenetração entre as dimensões histórica e estética, considerando que o filme seja visto e debatido como parte da memória viva de Moçambique.

O segundo ensaio da autoria de Ute Fendler, “O Cinema Moçambicano – Um Cinema Fantástico?”, é mais abrangente e analisa a importante e comum dimensão do fantástico na filmografia moçambicana, considerando que o “fantástico” faz parte integral da própria visão de mundo africana. Neste sentido, a especialista afirma que, quando os cineastas utilizam elementos “sobrenaturais” ou “maravilhosos”, estes fazem parte do processo narrativo, criando um mundo imaginado, simultaneamente fictício e verdadeiro, levando os espectadores “a sonhar a realidade, em versões e variações intermináveis”.

18 de abril de 2019.

Os organizadores

  • Carmen Tindó Secco – Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ensaísta e pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).
  • Ana Mafalda Leite – Docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com Mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa e Doutora em Literaturas Africanas. Professora Associada com Agregação na Universidade de Lisboa, pesquisadora do ISEG do Cesa, com bolsa da FCT.
  • Luís Carlos Patraquim – Jornalista, roteirista, pesquisador sobre cinema moçambicano. Autor de vasta obra publicada em prosa, poesia e teatro.

[1] Todas as informações contidas nas entrevistas, ensaios e crônicas são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.
[2] MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: O diálogo possível. São Paulo: Ática, 2002, p. 8.
[3] ARRIGUCCI, David. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.51. Rio de Janeiro, 18 de junho de 2018.

Citar como:

O ARTIGO:
SECCO, C. T.; LEITE, A. M.; PATRAQUIM, L. C. “Apresentação”. CineGrafias Moçambicanas: Memórias & Crônicas & Ensaios. São Paulo: Kapulana, 2019. [Ciências e Artes]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/cinegrafias-mocambicanas-memorias-cronicas-ensaios-apresentacao-por-carmen-t-secco-ana-mafalda-leite-e-luis-carlos-patraquim/>

O LIVRO:
CineGrafias Moçambicanas: Memórias & Crônicas & Ensaios. São Paulo: Kapulana, 2019. [Ciências e Artes]

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O Brasil e a poesia africana de língua portuguesa: perspectivas de leitura, por Anita M. R. de Moraes e Vima L. R. Martin

O interesse pelas literaturas africanas no Brasil tem sido crescente neste século XXI. Nas universidades e escolas, a pesquisa e o ensino se incrementaram. O meio editorial abriu-se para a publicação de obras africanas e a imprensa tem dado destaque aos autores do continente. Tais fatos certamente estão relacionados com a sanção da Lei 10.639, de janeiro de 2003, responsável por garantir o estudo de história e culturas africanas e afro-brasileira em nossas instituições de ensino. Especialmente nas áreas de artes, letras e história, observa-se, assim, a necessária abordagem de aspectos históricos e culturais dos diversos povos que participaram da formação de nosso país.

Tendo em vista esse cenário, e a partir de nossa área de atuação, preparamos este livro buscando contribuir para o acesso do público brasileiro à produção poética dos países africanos de língua oficial portuguesa. Trata-se do resultado de uma pesquisa desenvolvida desde 2009 que, felizmente, encontra agora espaço para maior divulgação. Para sua realização, agradecemos o apoio das pesquisadoras Simone Caputo Gomes e Tania Macêdo e dos poetas e familiares que gentilmente cederam os direitos autorais dos poemas selecionados.

O ponto de partida do trabalho é o reconhecimento das trocas culturais associadas ao processo de colonização, responsável por aproximar América e África. No campo dos estudos literários, as marcas da presença brasileira na formação das literaturas produzidas nos países africanos colonizados por Portugal foram identificadas já nos anos de 1980, em artigos pioneiros de Maria Aparecida Santilli que apontam para a criação de um patrimônio cultural forjado a partir de um intenso diálogo estabelecido entre brasileiros e africanos.

Esta antologia traz a público poemas que, de alguma maneira, fazem referência ao Brasil ou à cultura brasileira. Desse modo, o conjunto de textos aqui reunidos, organizados por país de origem, permite que sejam conhecidas diferentes dimensões de um diálogo intercultural, favorecendo a visibilidade de algo do Brasil que se fez e se faz presente na África. Ao longo de nossa pesquisa, voltamo-nos para antologias consagradas (como No reino de Caliban, de Manuel Ferreira), antologias recentes (como Poesia africana de língua portuguesa, organizada por Lívia Apa, Arlindo Barbeitos e Maria Alexandre Dáskalos, e  Antologia da nova poesia angolana, organizada por Francisco Soares) e livros de autoria individual (no caso de poetas que consideramos manter uma relação de intensa proximidade com o Brasil). Apesar de termos consultado fontes diversificadas, temos consciência de que nosso estudo pode – e deve – ser ampliado, uma vez que não esgotamos as fontes e que o diálogo com o Brasil ainda se mantém vigoroso nos países africanos de língua oficial portuguesa. 

Este livro conta com um glossário, contendo tanto termos relacionados ao universo africano e da diáspora africana, como também nomes próprios citados nos poemas. Ao final do volume, uma lista de poemas veicula os resultados mais gerais de nosso estudo, configurando um mapeamento, ainda que parcial, da presença do Brasil na poesia africana de língua portuguesa.

***

Ao longo dos cinco últimos séculos, os laços históricos que aproximaram o Brasil e a África foram, como se sabe, muito fortes. Desde o século XVI, a formação social brasileira foi determinada por relações coloniais e escravistas, que se materializaram a partir da circulação de um grande contingente de pessoas através do Atlântico. Como esclarece Alberto da Costa e Silva,

Há toda uma história do Atlântico. Uma história de disputas comerciais e políticas, de desenvolvimento da navegação e de migrações consentidas e forçadas. Mas há também uma longa e importante história que se vai tornando, aos poucos, menos discreta. A dos africanos libertos e seus filhos, a dos mulatos, cafuzos e brancos que foram ter ao continente africano, retornaram ao Brasil, voltaram à África ou se gastaram a flutuar entre as duas praias. (COSTA e SILVA, 2003, p. 236)

O trânsito intenso estabelecido entre as duas margens do Atlântico favoreceu a constituição de ideias e ideais e a construção de um forte imaginário ancorado em experiências concretas. Alguns dos poemas levantados em nosso mapeamento focalizam justamente o legado brutal, em terras africanas e americanas, das migrações forçadas – o tráfico de pessoas sequestradas para serem escravizadas. Trata-se, então, de lidar com a memória do horror, com o trauma da escravidão. Em poemas como “Epopeia”, do santomense Francisco José Tenreiro, escrito nos anos de 1950, por exemplo, o Brasil é sobretudo o trágico destino dos escravizados.

Já no soneto oitocentista que integra esta antologia, intitulado “O sonho dantesco”, do também santomense Caetano da Costa Alegre, é numa situação amena de leitura que emerge, incompreensível, o evento da escravidão: trata-se da leitura, feita por uma jovem, de “O navio negreiro”, de Castro Alves.

Observamos, assim, dois aspectos do relacionamento da poesia africana de língua portuguesa com o nosso país: 1) temos visibilizada uma história colonial comum, marcada pela escravidão e pelo sofrimento dela decorrente; 2) e encontramos um diálogo literário efetivado por autores que frequentemente encontraram em nossa realidade cultural fonte de inspiração.

Parte da poesia do angolano José da Silva Maia Ferreira marca-se por tais relações literárias.  Maia Ferreira estudou no Brasil de 1834 a 1844 e aqui entrou em contato com nossos textos românticos, muitos deles reivindicativos de uma identidade nacional. De volta a Angola, publica em 1849 Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Dessa obra, pelo menos dois poemas apresentam relações intertextuais com um texto de Gonçalves Dias, o notório “Canção do exílio” (1843), que ficou célebre na tradição literária brasileira. Trata-se de “À minha terra” e “A minha terra”, que apresentam, além do tema da valorização da terra natal, a métrica e o vocabulário muito próximos do poema de Gonçalves Dias. Vejamos algumas passagens de “À minha terra”, que integra esta antologia:

De leite o mar – lá desponta
Entre as vagas sussurrando
A terra em que cismando
Vejo ao longe branquejar!
É baça e proeminente,
Tem da África o sol ardente,
Que sobre a areia fervente
Vem-me a mente acalentar.
(…)
 
Bem-vinda sejas ó terra,
Minha terra primorosa,
Despe as galas – que vaidosa
Ante mim queres mostrar:
Mesmo simples teus fulgores,
Os teus montes têm primores,
Que às vezes falam de amores
A quem os sabe adorar!
 
(…)

Como se vê, o poeta caracteriza a sua terra natal com um entusiasmo relativo, admitindo a simplicidade de seus “fulgores”. Entretanto, já se nota no texto um sentimento nativista, de identificação com o espaço angolano. Nas palavras de Tania Macêdo:

(…) a leitura de “Canção do exílio” realizada pelo autor angolano, que se pode depreender, focalizará sobretudo o “cá”, da terra angolana, deixando na penumbra o “lá”, de onde ele chega [Brasil]. Sob esse particular, o poeta afirma a “singeleza” de sua terra, mas faz questão de apontar que ela tem primores “a quem os sabe adorar”, indicando uma explicitação de sua “pertença”, o que indica a presença de um nativismo nascente. (MACÊDO, 2002, p. 43)

Também no longo poema “A minha terra”, igualmente presente nesta antologia, a ambiguidade se instala, estando o poeta mais uma vez entre a valorização emocionada de sua terra natal e a avaliação de que se trata de um espaço sem os encantos das terras portuguesas e brasileiras e carente de seus grandes vates. Vemos, inclusive, que o sentimento de participação no “mundo português” é forte, cantando-se e louvando-se a valentia dos heróis do império. É interessante perceber que, ao lado de Portugal, o Brasil avulta como um espaço privilegiado, capaz também de causar inveja ao poeta. Trata-se de uma referência explícita ao Brasil independente, de estatuto elevado, confirmando a admiração pelo território já naquela altura liberto do domínio político português.

Décadas mais tarde, já em meados do século XX, chama a atenção a força com que a produção literária brasileira funcionou como uma espécie de estímulo para a produção literária das então colônias portuguesas, constituindo-se como uma referência cultural alternativa às imposições metropolitanas. É certo que a nossa literatura não foi a única a marcar as produções do período. Ecos da poesia escrita pelo norte-americano Langston Hughes, pelo haitiano Jacques Roumain e pelo cubano Nicolás Guillén, por exemplo, estão presentes nos poemas africanos, cujos autores intentavam romper com o cânone oficial. Numa atmosfera intelectual marcada pela Négritude, difundida sobretudo por Aimé Césaire e Senghor, um número importante de escritores africanos de língua portuguesa buscavam – também eles – consolidar uma noção de identidade negra.

Entretanto, ainda que essas referências sejam determinantes, é fato que as experiências e realizações do primeiro modernismo brasileiro e a literatura produzida na década de 1930 deixaram marcas profundas na formação das modernas literaturas africanas de língua portuguesa. Nos espaços então colonizados, a busca pela autonomia literária se deu paralelamente à organização e à luta pela autonomia política. Daí a relevância das propostas do nosso modernismo e da chamada literatura “regionalista”, com sua forte opção pelos excluídos, como modelos inspiradores das transformações que se buscavam no momento da afirmação das identidades nacionais.

A revista angolana Mensagem (1951), cujo lema era “Vamos descobrir Angola!”, a pioneira revista Claridade (1936), em Cabo Verde, e a revista Msaho (1952), em Moçambique, foram espaços de expressão de movimentos literários que, como já havia ocorrido no Brasil, reclamavam uma cultura “autêntica”, enfatizando as realidades locais e as aspirações de liberdade popular. Sobre a forte presença das letras brasileiras em Angola, declara o crítico angolano Costa Andrade em 1963:

Entre a nossa literatura e a vossa, amigos brasileiros, os elos são muito fortes. Experiências semelhantes e influências simultâneas se verificaram. É fácil, ao observador corrente, encontrar Jorge Amado e os seus capitães de areia nos nossos melhores escritores. Drummond de Andrade, Graciliano, Jorge de Lima, Cruz e Sousa, Mário de Andrade e Solano Trindade, Guimarães Rosa, têm uma presença grata e amiga, uma presença de mestres das novas gerações de escritores angolanos. E por isso mesmo, pelo impacto que têm junto do nosso povo, são vetados pelos colonialistas. Eles estão presentes, porém, nas preocupações literárias dos que lutam pela liberdade. (ANDRADE, 1980, p. 26)

Para termos uma dimensão mais exata desse interesse, que toma a forma de um encantamento cultivado por parcela significativa de intelectuais e escritores dos países africanos, evoquemos as enfáticas palavras de outro angolano, Ernesto Lara Filho, presentes em crônica publicada no periódico Notícia (entre 1960 e 1962):

Rubem Braga, o “sabiá” da crônica do Brasil, anda nos nossos recortes literários. Henrique Pongetti é lido por nós, também, Raquel de Queiroz e Nelson Rodrigues, esses tratamo-los por tu. São-nos familiares. Todo o angolano, do Dirico a Cabinda, do Luso ao Lobito, lê o “Cruzeiro”, ri com as piadas de Millôr Fernandes e chora com as reportagens de David Nasser sobre Aida Curi.
Esses são afinal os nossos ídolos. Se pudéssemos votar, muitos de nós, angolanos de nascença, havíamos de ir às urnas depor o nosso voto nas próximas eleições brasileiras, pelo espetacular Jânio Quadros, o Jânio da “Vassoura”. Sabemos quem é Leandro Maciel, Carlos Lacerda, Pascoal Carlos Magno. Sabemos de cor frases como esta: “O petróleo é nosso”. (LARA FILHO, 1990, p. 58)

Em um texto bem mais recente, intitulado “O sertão brasileiro na savana moçambicana” (2005), Mia Couto também reconhece a importância capital do Brasil na formação da literatura moçambicana. Aliás, logo no início de sua reflexão, o escritor narra, de maneira idealizada, numa chave romântica, aquele que teria sido o momento inaugural da poesia em seu país: a união da moçambicana Juliana e do poeta brasileiro desterrado Tomás Antônio Gonzaga e os inúmeros serões ocorridos em sua casa, na Ilha de Moçambique, espaço onde teria florescido o primeiro núcleo de poetas e escritores da então colônia. Depois de evocar esse casamento, espécie de “presságio” de um “entrosamento maior”, continua Mia Couto:

O nascimento da poesia moçambicana está marcado por um encontro que seria bem mais do que um casamento entre duas pessoas. Havia ali uma espécie de presságio daquilo que seria um entrosamento maior que iria prevalecer.
Mais de um século depois, nascia em Moçambique uma corrente de intelectuais ocupados em procurar a moçambicanidade. Já era, então, clara a necessidade de ruptura com Portugal e os modelos europeus. Escritores como Rui de Noronha, Noémia de Souza, Orlando Mendes, Rui Nogar, ensaiavam uma escrita que fosse mais ligada à terra e à gente moçambicana.
Necessitava-se de uma literatura que ajudasse a descoberta e a revelação da terra. Uma vez mais, a poesia brasileira veio em socorro dos moçambicanos (…) os moçambicanos descobriram nesses escritores e poetas a possibilidade de escrever de um outro modo, mais próximo do sotaque da terra, sem cair na tentação do exotismo. (COUTO, 2005, p. 103)

No que diz respeito às relações entre as literaturas do Brasil e de Cabo Verde, é necessário sublinhar o papel decisivo exercido pela literatura social de 1930 na produção de escritores como Baltazar Lopes e Manuel Lopes, ambos vinculados à já referida revista Claridade. A similaridade climática entre o nordeste brasileiro e as ilhas de Cabo Verde favoreceu ainda mais as ressonâncias dos romances regionalistas em textos, de prosa e poesia, que buscavam afirmar a “cabo-verdianidade”. As palavras do poeta Gabriel Mariano, recolhidas por Michel Laban, atestam essa relação:

(…) Foi um alumbramento porque eu lia um Jorge Amado e estava a ver Cabo Verde. De Jorge Amado, o Quincas Berro d’Água, quando eu o li pela primeira vez, a personagem, as características psicológicas da personagem, a reação das pessoas, quando souberam da morte de Quincas Berro d’Água, eu li isso tudo e eu estava a ver a Ilha de São Vicente, Cabo Verde… Estava a ver a Rua de Passá Sabe… (In: LABAN, 1992, p. 331)

Também é bastante significativa a leitura que os autores cabo-verdianos fizeram da poesia de Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Ribeiro Couto. Desse conjunto de poetas, Manuel Bandeira se destaca como um interlocutor privilegiado, fazendo-se presente em vários poemas, e não apenas de autores de Cabo Verde. Sua dicção pretensamente simples, a intensa valorização da oralidade e o lirismo de seus poemas certamente seduziram os poetas africanos que lhe dedicaram versos e estabeleceram pontes com a sua poesia.

Exemplar dessas relações é a intertextualidade verificada no conjunto de poemas escritos em diálogo explícito com “Vou-me embora pra Pasárgada” (1930). Como observamos a partir de nosso mapeamento, na série “Itinerário de Pasárgada”, que consta de cinco poemas escritos em 1946 pelo cabo-verdiano Osvaldo Alcântara (pseudônimo de Baltazar Lopes para sua produção poética), o tom oscila do nostálgico ao contestatório, mas afinal o poeta afirma – como no poema brasileiro – a utopia de um futuro desejado. Mais tarde, outro poeta, Ovídio Martins, retomará o tema em seu poema “Anti-evasão” (1974), dessa vez rejeitando a “viagem para Pasárgada” e afirmando a necessidade de permanecer em Cabo Verde para construir um futuro qualitativamente diferente para o país. Na presente antologia, a referência a Manuel Bandeira surge em outro poema cabo-verdiano, bem mais recente, atestando a continuidade desse diálogo intertextual: trata-se de “Os meninos”, da escritora Vera Duarte. Nesse poema em prosa, a interlocução com a poesia de Manuel Bandeira dá-se pela menção, não de sua utópica Pasárgada, mas da sua também muito conhecida “Estrela da Manhã”, igualmente signo de inconformidade.

Podemos notar que a produção africana de língua portuguesa aponta para a permanência da ligação estabelecida entre africanos e brasileiros. De fato, referências a escritores, livros e espaços geográficos e ficcionais do Brasil ainda estão presentes em produções contemporâneas de diferentes autores de ficção e poesia. Em publicações das últimas décadas, além de Manuel Bandeira, escritores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Raduan Nassar e Adélia Prado têm acolhida marcante. Por exemplo, nos poemas “Drummondiana” e “Metamorfose”, publicados nesta antologia, o poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim trava diálogo explícito com a poesia de Carlos Drummond de Andrade. No primeiro, o título é convite para que se persigam sutis alusões a poemas como “A máquina do mundo” e “A flor e a náusea”; já no impressivo “Metamorfose”, a leitura de Drummond é referida como marco temporal, desdobrando-se a relação intertextual com a alusão ao famoso poema “O sentimento do mundo”. Por fim, em “Poesia verde”, do poeta angolano José Luís Mendonça, também presente nesta antologia, é pela referência ao conhecido verso “no meio do caminho tinha uma pedra” que a intertextualidade com Carlos Drummond de Andrade se estabelece.

Um dos poemas do angolano Ondjaki presente neste livro intitula-se “Chão” e apresenta uma dedicatória que merece destaque: “palavras para manoel de barros”. O nome do poeta brasileiro está grafado em letra minúscula, assim como todas as palavras que compõem o poema. O efeito dessa escolha parece ser o de desautomatizar o uso da língua portuguesa, efeito reforçado pelos neologismos, pelas inversões sintáticas e pelo uso não convencional da pontuação. De viés filosófico, o poema se vale de imagens lúdicas e desconcertantes para expressar o desejo de autoconhecimento, em busca de uma identidade primordial. Trata-se de empreender um inusitado processo de retorno ao reino mineral (areia, barro, chão), numa metamorfose voltada sempre para dentro e para baixo, como se essa involução à terra fosse capaz de revelar uma verdade essencial. Ao “chãonhe-ser-se”, amalgamando-se ao mundo natural, o poeta simultaneamente se mineraliza e se humaniza, num gesto forte e delicado que parece abdicar da artificialidade que, de certo modo, pauta o mundo social. Como se vê, a relação do poema angolano com a poética de Manoel de Barros ultrapassa a singela dedicatória e manifesta-se no próprio fazer poético que atualiza as linhas de força do projeto literário do escritor cuiabano.

Referências à música brasileira também são recorrentes na poesia africana de língua portuguesa. Lembremos do poema “Samba”, datado de 1949, em que a poetisa moçambicana Noémia de Sousa toma esse gênero musical como atestado da presença cultural africana no Brasil, aludindo a um ritmo de histórias entrelaçadas e lutas partilhadas. Referências mais recentes a Tom Jobim, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Roberto Carlos e Milton Nascimento evidenciam a continuidade do interesse pela música brasileira em terras africanas. Destaca-se, nesse sentido, o poema “Setenta e seis”, aqui publicado, do poeta e letrista angolano Carlos Ferreira, em que a familiaridade com “a canção de roberto” é sugerida (numa alusão certa ao cantor Roberto Carlos e ao famoso verso da canção “Baby”, de Caetano Veloso).

O poema “Canção para Milton Nascimento”, do angolano João Melo, é outro exemplo  do diálogo da poesia africana com a nossa música. Nos primeiros versos, marcados por assonâncias e aliterações, o poeta evoca as origens africanas do compositor e cantor da nossa Música Popular Brasileira, que se notabilizou por abordar temas como liberdade e solidariedade.

Canção para Milton Nascimento

A lonjura da tua voz não é apenas dos amplos vales de Minas Gerais:
abarca a negra imensidão do oceano azul que em galeras te levou
das praias invadidas do Congo, Ndongo e Benguela,
alcança os planaltos ancestrais
de onde te arrancaram ao coração da terra,
sem suspeitar que na tua voz
ia a alma de todos os homens do mundo.

Na sequência, o texto afirma que na voz de Milton ressoam não apenas instrumentos musicais africanos (ngomas), mas também instrumentos ibéricos e ameríndios, capazes de iluminar “os dilacerados quadris da memória reconstruída”. Trata-se, aqui, não apenas de celebrar a riqueza da heterogeneidade cultural brasileira, que ganha materialidade no trabalho do compositor, mas, sobretudo, de sublinhar a dimensão trágica de uma história, assentada no colonialismo e na escravidão, cuja memória se encontra em processo de reconstrução. Por isso, como bem revelam os versos finais, a voz de Milton nem sempre é alegre e ele precisa de coragem para “cantar sozinho no meio da escuridão”.

É importante considerar que não apenas a poesia, mas também a prosa africana de língua portuguesa tem mantido diálogo fecundo com o Brasil. Alguns ficcionistas destacam, em entrevistas e ensaios, a importância do contato com, por exemplo, a escrita de João Guimarães Rosa, como os angolanos Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho (este, também importante poeta) e o já mencionado escritor moçambicano Mia Couto. Ruy Duarte de Carvalho, em seu livro Desmedida, de 2006, relata:

Quando aí por 1965, numa tabacaria da Gabela, interior do Kwanza-Sul, dei encontro com o Grande sertão: veredas em edição, a 5ª parece-me, da Livraria José Olympio, o facto foi, de fato e de várias maneiras, muito importante na minha vida. Foi um daqueles livros que vêm, literalmente, ao nosso encontro (…). (…) Defrontei-me então muito arduamente com as primeiras páginas do Grande sertão e deixei-me depois entrar naquilo para tornar-me, a partir daí e até agora, um leitor compulsivo, permanente e perpétuo, de Guimarães Rosa. (…)
Mas para o que talvez possa interessar agora, eu estava a encontrar ali, finalmente, um tipo de escrita e de ficção adequadas à geografia e à substância humana que eu andava então, técnico da Junta do Café, a frequentar e a fazer-me delas por Angola afora. (…) E nas paisagens que Guimarães Rosa me descrevia, eu estava a reconhecer aquelas que tinha por familiares. Já porque de natureza a mesma que muitas paisagens de Angola – e em algumas das paisagens de Angola eu reconhecia aquelas, enquanto o lia – já porque a gente que ele tratava, gente de matos e de grotas, de roças e capinzais, era também em Angola aquela com quem durante muitos anos andei a lidar pela via do ofício de viver. (CARVALHO, 2006, p. 85-86)

A leitura de Grande sertão: veredas, na década de 1960, chamou a atenção de Ruy Duarte de Carvalho, gerando uma sensação de familiaridade. E as semelhanças entre as paisagens e as gentes do Brasil e Angola são aspectos que ele viria a explorar em obras futuras, como no próprio livro Desmedida, aqui citado.

Nesta antologia, contudo, dedicada apenas à poesia, o diálogo entre prosadores, tão intenso, não é explorado. Por essa razão, do conjunto da obra escrita por Ruy Duarte de Carvalho, o texto que está presente em nosso levantamento é o poema intitulado “Fala de um brasileiro ao capitão-mor Lopo Soares de Lasso”, de 1974, que traz justamente a fala (ficcional) de um brasileiro do século XVII em terras angolanas. Esse poema evidencia antigos laços entre Angola e Brasil, dando voz a um brasileiro que abandona projetos de conquista e escolhe seguir novo – e próprio – rumo na nova terra (Angola), tendo, agora, conhecido “as muitas coisas boas”, “sabida outra maneira de aqui estar”. Para os leitores da prosa de Ruy Duarte de Carvalho, o destino desse brasileiro ecoa o de alguns de seus personagens, como o inglês Archibald Perkings (protagonista de Os papéis do inglês), Severo (protagonista de As paisagens propícias) e o próprio autor ficcionalizado (narrador-personagem dos romances da trilogia Os filhos de Próspero, cujo primeiro volume, o já mencionado Os papéis do inglês, está publicado no Brasil).

Podemos perceber diferentes formas de impacto da prosa sobre a poesia, e mesmo encontrar a homenagem, na forma de poema, a prosadores brasileiros. No conjunto desta antologia, chama especial atenção, nesse sentido, o “Poema a Jorge Amado”, de Noémia de Sousa. Vejamos sua estrofe inicial:

O cais…

O cais é um cais como muitos cais do mundo…
As estrelas também são iguais
às que se acendem nas noites baianas
de mistério e macumba…
(Que importa, afinal, que as gentes sejam moçambicanas
ou brasileiras, brancas ou negras?)
Jorge Amado, vem!
Aqui, nesta povoação africana
o povo é o mesmo também
é irmão do povo marinheiro da Baía,
companheiro de Jorge Amado,
amigo do povo, da justiça e da liberdade!
(…)

Os versos de Noémia de Sousa, de 1949, estabelecem uma identificação plena entre Moçambique e Brasil (Bahia), sublinhando elementos que aproximariam os dois espaços (cais, estrelas, povo). Numa perspectiva humanista, que se constrói para além da nacionalidade e cor da pele “(Que importa, afinal, que as gentes sejam moçambicanas/ ou brasileiras, brancas ou negras?)”, o texto propõe o estabelecimento de uma rede solidária entre “as gentes”, pautada em valores como justiça e liberdade, dos quais Jorge Amado seria o porta-voz. Ao convocar a presença companheira do escritor baiano em terras moçambicanas, a poetisa expressa uma utopia libertária, enraizada na cultura popular, que naquele contexto funcionava simultaneamente como crítica à presença colonialista e aspiração de independência política.

O veemente combate à brutal configuração de um sujeito racial nos processos coloniais é traço marcante da poesia de Noémia de Sousa. A luta que se propõe é de todos, sem discriminação, uma luta contra qualquer forma de racialização – em sintonia, assim, com proposições recentes, como as do filósofo camaronês Achille Mbembe (pensamos especialmente em Crítica da razão negra, publicado no Brasil em 2018). A questão racial nos leva, contudo, a lidar com uma referência bem mais antiga: a do lusotropicalismo defendido pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que celebrava no Brasil uma espécie de espaço exemplar de liberdade e democracia racial. Lembremos que sua obra magna, Casa Grande e senzala, publicada em 1933, impactou fortemente não apenas a intelectualidade brasileira, mas também intelectuais portugueses e africanos dos países que então eram colônias de Portugal. Outros livros, como O mundo que o português criou (1940) e Aventura e rotina (1953), serão centrais para a difusão do lusotropicalismo. Para Fernando Arenas,

As bases teóricas do que seria o lusotropicalismo estender-se-ão eventualmente a praticamente todo o império colonial português a partir de uma série de conferências proferidas [por Gilberto Freyre] na Europa em 1937 e reunidas na obra O mundo que o português criou (1940), onde se exalta a miscigenação e a mestiçagem, sobretudo relativamente ao Brasil, embora projetando-se para o resto do império. (ARENAS, 2010)

Entre 1951 e 1952, Gilberto Freyre foi convidado pelo governo português para viajar pelas terras do império. É preciso lembrar que após a Segunda Grande Guerra tornou-se internacionalmente mais difundida a condenação de regimes de natureza colonial. O governo de Salazar – ditador português de 1928 a 1968 – recorre, então, ao lusotropicalismo freyriano para reformular sua ideologia colonial, apelando para a ideia do “bom colono português”. Com a apropriação salazarista do pensamento do sociólogo brasileiro na década de 1950, nota-se o afastamento, por parte de muitos escritores e intelectuais africanos, das teses lusotropicalistas de Freyre. O poema “Presença de Gilberto Freyre”, do caboverdiano Guilherme Rocheteau, publicado em 1951, evidencia, contudo, a força do lusotropicalismo nos países africanos de língua oficial portuguesa ainda no início da década de 1950, especialmente em Cabo Verde.

É importante destacar que, em nossa perspectiva, na poesia de Noémia de Sousa não há, de modo algum, negação ou suavização da violência colonial portuguesa. O “Poema de João”, presente nesta antologia, denuncia justamente sua brutalidade, afirmando também a força da resistência. Mais uma vez, Achille Mbembe vem a nosso auxílio. No já citado Crítica da razão negra, Mbembe sugere haver traços de um imaginário cristão em discursos e práticas de combate à escravidão e ao colonialismo. No poema de Noémia de Sousa, a morte violenta é vencida pela ressurreição simbólica: ao invés de morto, João ressurge vivo no seio do povo, tornando-se uma espécie de mártir. O “Poema de João” pode, nesse sentido, ser comparado ao romance A vida verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira, cujo protagonista constrói-se sob o signo do sacrifício (de 1961, este livro foi censurado e só veio a ser publicado em 1974).

A questão racial recoloca-se, com contundência, nos textos “Poema preto de fome” e “A cor da Humanidade”, de José Luís Mendonça, também aqui publicados. No primeiro, talvez algo do devir-negro proposto por Mbembe se delineie. Para o filósofo, a exploração capitalista, que remonta à escravidão nas plantations das Américas, implica a invenção do “negro” como destituído de humanidade plena. Contudo, Mbembe afirma também que aqueles que assim se viram brutalmente tratados reafirmaram sua condição humana invertendo o rótulo “negro” em chave afirmativa. Sinais de tal duplicidade aparecem no poema de José Luís Mendonça, em que o signo “preto” remete tanto à condição de vítima histórica como à força da resistência daqueles que lutaram e lutam contra a violência e a exploração.

No poema “A cor da Humanidade” é a própria farsa do rótulo racial que se vê denunciada. Como em “A viagem profana”, do moçambicano Nelson Saúte, estamos diante de um sujeito em deslocamento, uma espécie de sujeito global ou globalizado. Contudo, no poema de Saúte, tal sujeito se configura numa chave subjetiva, trata-se de um viajante apaixonado que traça suas afinidades eletivas, suas preferências tanto literárias como espaciais (ocupando, o Brasil, lugar afetivo privilegiado). Já no poema de Mendonça, configura-se um sujeito coletivo que parece implicar todo aquele que possa ser estigmatizado, apanhado na armadilha da racialização. Se o mundo se oferece com generosidade ao poeta em “A viagem profana”, no poema angolano toma a forma do impedimento, arma-se contra o sujeito. Assim, em “A cor da Humanidade”, a onipresença das categorias raciais é problematizada, afirmando-se, com Martin Luther King e Nelson Mandela, a inalienável condição humana de toda pessoa.

***

Como apontamos inicialmente, este trabalho busca visibilizar as trocas culturais que aproximaram – e ainda aproximam – o Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa, ao longo de séculos de uma história de entrelaçamentos. No diálogo poético estabelecido desde o século XIX até a contemporaneidade, capaz de aproximar as duas margens do Atlântico, a solidariedade e a criatividade emergem como marcas efetivas da aproximação estabelecida.

O conjunto de poemas reunidos em nosso mapeamento, ponto de partida da presente antologia, aponta para representações diversas: há poemas que apenas mencionam o Brasil, entre outros países do continente americano, como destino de africanos escravizados; há poemas que estabelecem alguma relação intertextual com obras da literatura brasileira; outros enaltecem o Brasil, desde uma perspectiva idealizada, por vezes até mesmo exotizante ou turística; há aqueles que se referem com admiração a personalidades brasileiras (escritores, compositores, intelectuais etc.); há, ainda, poemas que mencionam a opressão – e a resistência a formas de opressão – dos negros no Brasil. Como se vê, de maneira múltipla, o Brasil se faz presente.

Dessa maneira, como conclusão parcial, podemos reter que, por vezes, o Brasil é rememorado na poesia africana como destino de brutal tráfico humano (com destaque para poemas do período colonial); e, outras, imaginado como espaço utópico de liberdade política e harmonia racial (imbuindo-se, então, de traços do lusotropicalismo freyriano); de modo geral, nosso país emerge como um território cúmplice, de onde emanam vozes capazes de compreender e se irmanar com realidades sociais e culturais percebidas a partir de uma óptica comparatista.

Entendemos que os textos levantados sugerem que, seja no profícuo diálogo literário, seja na menção a traços da cultura brasileira veiculada em terras africanas, seja ainda no recurso a uma memória colonial comum de assombrosa violência e na afirmação de resistência (o negro que luta, na África e nas Américas, contra o racismo, por exemplo), o Brasil está fortemente presente no repertório poético africano de língua portuguesa.

Trata-se de uma presença viva, de um diálogo em curso, como atestam os textos de escritores que, em publicações recentes, continuam a mencionar nosso país. Nos poemas selecionados de autores contemporâneos, as referências ao Brasil, sua paisagem e sua cultura – nomeadamente nos campos da literatura e da música – demonstram que o país ainda ocupa um espaço privilegiado no imaginário dos autores africanos. Há certamente muito ainda a descobrir. Os poemas reunidos por nós não esgotam a questão dos trânsitos culturais entre o Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa. Ao contrário, esta seleção pretende abrir caminhos e instigar o estudo de aspectos da presença do Brasil nas literaturas africanas de língua portuguesa, inclusive a investigação de novas formas e possibilidades de diálogo.

Referências:
ANDRADE, Costa. Literatura angolana (opiniões). Lisboa: Edições 70, 1980.
ARENAS, Fernando. “Reverberações lusotropicais: Gilberto Freyre em África”. In: Buala – Cultura Contemporânea Africana, 2010. Acessível em: http://www.buala.org/pt/a-ler/reverberacoes-lusotropicais-gilberto-freyre-em-africa-1-cabo-verde
CARVALHO, Ruy Duarte de. Desmedida: crônicas do Brasil (Luanda – São Paulo – São Francisco e volta). Lisboa: Cotovia, 2006.
COSTA e SILVA, Alberto da. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Editora UFRJ, 2003.
COUTO, Mia. Pensatempos: textos de opinião. Lisboa/Maputo: Editorial Ndjira, 2005.
LABAN, Michel. Cabo Verde. Encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1992.
LARA Filho, Ernesto. Crônicas da roda gigante. Porto: Afrontamento, 1990.
MACÊDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Editora Arte e Ciência, 2002.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: Edições N-1, 2018.

 São Paulo, janeiro de 2019.

Anita M. R. de Moraes é Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado pela Universidade de São Paulo e Professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Vima Lia de Rossi Martin é Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na mesma instituição (FFLCH-USP).

Citar como:

O ARTIGO:
MORAES, Anita M. R.; MARTIN, Vima L. R. “O Brasil e a poesia africana de língua portuguesa: perspectivas de leitura “. Posfácio. In. MORAES, Anita M. R.; MARTIN, Vima L. R. O Brasil na poesia africana de língua portuguesa: antologia. São Paulo: Kapulana, 2019.[Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/o-brasil-e-a-poesia-africana-de-lingua-portuguesa-perspectivas-de-leitura/>

O LIVRO:
MORAES, Anita M. R.; MARTIN, Vima L. R. O Brasil na poesia africana de língua portuguesa: antologia. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

Publicado em

A crítica de Pepetela, por Tania Macêdo

Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, é um dos marcos incontornáveis da literatura angolana contemporânea. Nascido em Benguela, sua trajetória política liga-se intimamente ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), quer pela participação ativa na guerra pela independência de seu país – em que chegou ao posto de Comandante – quer pelas funções que no jovem Estado passou a assumir, dentre as quais a de Vice-Ministro da Educação.

Com uma experiência vinculada aos caminhos de Angola e ao partido que assumiu o poder logo após a independência a 11 de novembro de 1975, Pepetela, entretanto, não deixa à margem as críticas ao Partido e aos (des)caminhos da administração de seu país. Desde os seus primeiros romances, como As aventuras de Ngunga (1979) ou Mayombe (1980), percebe-se que  os deslizes e falhas das autoridades e do governo como um todo são revelados e discutidos, fazendo com que o leitor  possa situar-se frente ao texto e à realidade por ele narrada.

O pequeno livro de Pepetela, O cão e os caluandas (calus), traz uma grande história e remete a Luanda, na medida em que “caluanda” é como os habitantes de Luanda são chamados. Composto de pequenos quadros da cidade capital no pós-independência, é a partir da figura de um cão pastor alemão, que ninguém sabe a quem pertence, que os vários estratos da sociedade angolana dos anos pós 1975 são focalizados. Se o cachorro é o ponto de ligação entre as várias personagens, que por um breve tempo pretendem-se seus donos, chama a atenção que as informações sobre ele são dadas por personagens de várias camadas sociais, em depoimentos a um narrador.

Entre os vários depoimentos em primeira pessoa, temos desde um jovem que se pretende poeta, mas na verdade é um indolente e aprendeu o vocabulário da luta de classes a partir de citações de textos de Marx lidos no jornal, representante daqueles que somente recitam o que o partido afirmava nos meios de comunicação, mas não colaboravam de fato para a construção da jovem nação, até o funcionário público corrupto ou o “tribalista” que fomentava as diferenças entre as várias etnias de Angola. A partir de diversos depoimentos ao romancista que deseja saber mais sobre o cão, desenha-se um retrato bastante crítico da Angola dos primeiros tempos da independência, na medida em que Luanda é uma espécie de metonímia de todo o país. Dessa forma, é possível verificar como a postura socialista adotada pelo governo é apenas superficial nas pessoas, que vivem e propõem “esquemas”, ou seja, “jeitinhos” que, afinal, são formas diversas, mais ou menos, brandas de corrupção.

Tendo em vista que o livro apresenta maneiras diferentes de contar a história do cão cujo nome varia de dono para dono, utilizando discursos como o da Ata de reunião de uma fábrica, uma peça de teatro ou ainda um artigo de jornal, percebe-se que o narrado vai além das peripécias de um cão e suas andanças, pois vão surgindo as vidas de várias camadas sociais logo depois da independência de Angola, além dos dramas pessoais, como o adultério ou os ciúmes. E, assim, aguça-se ainda mais a curiosidade do leitor: o que e a quem pertenceria de fato o Cão?

Além das diversas formas de narrar, surgem ainda uma árvore e um animal marinho, respectivamente a buganvília (Bougainvilleas) – árvore conhecida entre nós como primavera, três-marias ou flor-de-papel, que não para de crescer e se fortalecer – e a doninha.

Sobre a árvore, vemos que ela se relaciona com o cão, na medida em que o seu crescimento é cada vez mais inquietante para ele, que passa a odiá-la. Ao pensarmos que o animal não se liga a personagens corruptas ou venais, podemos pensar que a árvore poderia remeter a tudo de mal que o corpo social daquele período apresentava, ao contrário do cão que procurava por valores autênticos.

Quanto à doninha, é melhor deixar ao leitor uma reflexão a respeito, lembrando como ela pode remeter à beleza, à extensão do mar e ao amor.

Como afirmamos,  O cão e os caluandas é um pequeno livro que conta uma grande história: a história de um país heroico que fez a sua independência, resistiu a uma guerra, mas também a história menos nobre do mesmo país assolado pela corrupção, pelas assimetrias internas, inclusive de gênero. Dessa forma, O cão e os caluandas é um texto indispensável para quem quiser conhecer boa literatura e a Angola contemporânea.

São Paulo, 14 de dezembro de 2018.

Tania Macêdo é Professora Titular de Literaturas Africanas da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo)

Citar como:

O ARTIGO:
MACÊDO, Tania. “A crítica de Pepetela”, Prefácio. In. PEPETELA. O cão e os caluandas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/a-critica-de-pepetela-tania-macedo/>

O LIVRO:
PEPETELA. O cão e os caluandas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

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[Sobre] Um dia vou escrever sobre este lugar, de Binyavanga Wainaina – por Ellen Oléria

imagens feitas de sonhos.

palavras que nos conduzem ao mundo dos sonhos. 

nesta obra autobiográfica de binyavanga wainaina saboreamos a viagem como uma garfada inteligentemente mista num prato colorido, nutritivo, bem montado e saboroso. 

atravessamos o atlântico mais uma vez e, como nunca antes, pra sentir o calor do sol do quênia aquecendo nossa pele. outras décadas costuradas à essa nossa pela condição humana e pela morosidade de toda gente. 

em um dia vou escrever sobre esse lugar pregamos e liberamos cada passo numa teia diversa de povos, costumes, idiomas de uma áfrica múltipla em visões e memórias que falam com a verdade da autonomia, da conexão ancestral, da força de laços e rompimentos.

violência e solidariedade, governo e tribo com texturas de cultura pop afro-estadunidense. miragens de tradições em nakuru universalizadas nesse espelho capitalizado virado pro mundo inteiro. revivemos o choque da diferença numa terra entrecortada por fronteiras estreitas. 

bravio, sensível, perspicaz e agudo, wainaina, corta nossa carne e transfunde nosso sangue nesse livro que é um convite pra libertar o olhar do imperialismo colonial e expandir em muitas cores nossas noções de pertencimento.

São Paulo, 13 de outubro de 2018.

Ellen Oléria, brasileira, é compositora, cantora, atriz, apresentadora e ativista política voltada para questões da negritude.

Citar como: OLÉRIA, Ellen.  In: WAINAINA, Binyavanga. Um dia vou escrever sobre este lugar (orelha) São Paulo: Kapulana, 2018.

 

 

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Ualalapi: a narrativa e os ciclos – por Rita Chaves

Publicado pela primeira vez em 1987, Ualalapi permanece mobilizando corações e mentes à volta de debates que, entre outros aspectos, exprimem a dinâmica histórica de Moçambique, um país atravessado por muita instabilidade e uma grande capacidade de resistir. A longa noite colonial, a difícil luta pela independência, os sucessivos conflitos que vêm atravessando décadas e a intensa pobreza que quase inviabiliza a vida de seus habitantes têm como contraface uma notável pluralidade cultural e uma imensa vocação para se reinventar.  Ungulani Ba Ka Khosa, o autor dessa narrativa e muitos outros títulos, inscreve-se nesse contexto, procurando de diversas maneiras balançar qualquer cordão de isolamento erguido para separar as tintas e disciplinar as cores. Sua opção ao longo dos anos tem sido o caminho da insubmissão no exercício de uma escrita que se demarca de versões cristalizadas pelo discurso hegemônico.

Reeditado entre nós em muito boa hora pela Kapulana, Ualalapi é um bom exemplo desse desassossego que marca o itinerário do autor em sua circulação pelos gêneros literários e em seu compromisso com os modos de ler a História enfrentando  com energia os perigos de sua petrificação. Mesmo a afirmação que escolhe como epígrafe “A História é uma ficção controlada”, colhida à romancista portuguesa Agustina Bessa Luís, em sua narrativa convida à discussão. Em um momento pulsante da vida do recém-fundado país, Ungulani vai buscar uma figura histórica escolhida pelo novo poder para ser uma espécie de mito fundador da nacionalidade e investe no desvendamento das contradições dessa hipótese que o discurso político elegia. Nas páginas em que desfilam passagens decisivas da vida de Gungunhana, o sentido da resistência desse imperador que lutou bravamente contra a invasão colonial é emoldurado pelas cenas que nos trazem as invasões protagonizadas pelo próprio na expansão de seu império.

Uma espécie de convulsão percorre o tempo captado, levando-nos logo à desmitificação da ideia de harmonia que ainda frequenta o imaginário sobre o período pré-colonial e exporta uma equivocada ideia do continente. Contaminada pela violência dos fatos, a escrita se apoia em expressões fortes, reveladoras da dimensão dos conflitos que estavam no cotidiano daquele espaço. Se, por um lado, dilui-se o mito da paz harmônica entre os africanos antes da chegada dos invasores, por outro lado, as ações revelam o africano como sujeito ativo, desfazendo a noção de passividade que a literatura colonial desejou perpetuar. Aqui, não nos vemos diante de elementos do cenário  – como podemos encontrar até mesmo em textos paradigmáticos do cânone ocidental – mas de homens em confronto com adversários. E, ao perderem, pagam o alto preço da derrota. São de qualquer forma, homens inteiros, empenhados em suas lutas, agentes de sua própria história.

As notas da originalidade que tocam o enredo são amplificadas na estrutura da obra que se nutre de elementos variados, que vão da incorporação de passagens bíblicas ao aproveitamento de provérbios africanos, propondo um diálogo refratário à rigidez de limites entre os vários patrimônios culturais que constroem Moçambique no presente. A montagem dos fragmentos aponta para um desenho peculiar que barra, à partida, a rápida identificação de um gênero literário. Assim, em sua interdependência, as partes que compõem o todo, combinam-se em sua autonomia e nos fazem indagar se o que nos apresenta é  um romance ou um conjunto de contos, questão que não precisa ser respondida e aguça o interesse da obra, pois nos coloca de frente para a reinvenção de modelos estéticos, compromisso com que os escritores africanos têm lidado e do qual desdobram-se diferentes soluções. A presença de matrizes da oralidade é apenas uma das chaves para esse processo que resulta na mesclagem entre bens de raiz e valores trazidos com a colonização.

A desmitificação de um dos heróis sagrados pela História que a voz dominante da independência quer disseminar exprime-se na força de uma escrita hiperbólica, que, em certa medida, reforça a função conativa e espelha um desejo de convencimento. Desse modo, insinua-se a disputa de versões presentes na construção da narrativa histórica que dá corpo ao discurso da nacionalidade. A pluralidade etno-linguística, por um lado, a ocupação recente do território colonial e, consequentemente, a tardia definição do mapa moçambicano explicam a instabilidade do terreno, no plano físico e no domínio cultural, tudo  a projetar-se em uma linguagem carregada de energias. Na voz do narrador e nas falas das personagens se fazem notar sinais de uma inegável aspereza refletida na escrita por uma adjetivação empenhada em banir qualquer hipótese de estabilidade.

Ao trazer as pontas de uma história constituída sobre abalos, o escritor busca demonstrar os limites de medidas que não considerem a profundidade das fendas que os tempos impuseram ao espaço que hoje é Moçambique.  Em 1985, após uma longa negociação com instituições portuguesas, o governo do país independente recupera o que seriam as cinzas de Gungunhana e, ao transportá-las solenemente de volta à terra da qual ele foi levado como símbolo da conquista colonial, pretende consagrá-lo entre os heróis da libertação. A reorganização da memória coletiva centrada na revisão de verdades plantadas pela dominação estrangeira integrava o programa da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, em evidente coerência com o projeto de nacionalidade que a independência animava. Ao escrever Ualalapi, seu autor, sem dúvida, mostra-se atento a uma das funções da literatura: a de colocar em causa a horizontalidade das narrativas políticas e, assim, manter aceso o debate que atesta a vivacidade das questões éticas e a necessidade de projetos estéticos capazes de acusar a transitoriedade de pensamentos que se querem únicos e definitivos. Penetrando na linguagem, a noção de descontrole parece dominar a atmosfera para sugerir a iminência de novos ciclos, afinal, como evocaria outro escritor africano, o angolano Pepetela em A geração da utopia: “só os ciclos são eternos”. Se é verdade que a nação precisa de monumentos, e a história de todos os países não nos brinda com exemplos contrastantes, Ungulani Ba Ka Khosa nos recorda que a literatura só faz sentido como movimento, compromisso que ele tem abraçado ao longo de uma já extensa travessia.

Maputo, 23 de julho de 2018.

Rita Chaves é Professora Doutora do Depto. de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (FFLCH-USP) e pesquisadora do CELP-FFLCH-USP (Centro de Estudos das Literaturas e Culturas de Língua Portuguesa – FFLCH-USP). É colaboradora da Editora Kapulana. 

Citar como:

O ARTIGO:
CHAVES, Rita. “Ualalapi: a narrativa e os ciclos”. In: KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do Imperador. São Paulo: Kapulana. 2018. [Série Vozes da África]. Disponível em:<https://www.kapulana.com.br/ualalapi-a-narrativa-e-os-ciclos-por-rita-chaves/>

O LIVRO:
KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do Imperador. São Paulo: Kapulana. 2018. [Série Vozes da África] 

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As Mulheres do Imperador: Entrelaces de Histórias e Estórias, por Carmen L. Tindó Secco

Ao reunir em um só volume, sob o título Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do imperador, dois romances em torno de Ngungunhane, o imperador de Gaza, o escritor Ungulani Ba Ka Khosa propõe uma desconstrução crítica da controvertida figura do imperador, tão contestada pelo colonialismo, quanto louvada pelos que lutaram pela independência de Moçambique. Trinta anos separam a publicação dessas duas narrativas – Ualalapi (1987) e As Mulheres do Imperador (2017) –, o que possibilita um distanciamento capaz de propiciar uma leitura questionadora de dois significativos momentos históricos moçambicanos: o do poder e queda, em 1895, de Ngungunhane – abordados em Ualalapi – e o da história de Moçambique colonial do início do século XX, ficcionalmente narrada pelo romance mais recente, a partir das vidas das viúvas do imperador, após o retorno delas do exílio, em 1911.

Ungulani, ao principiar As Mulheres do Imperador com instigantes epígrafes sobre a memória, traz à discussão a polivalência do conceito de “verdade histórica”, ratificando quão ambivalentes são tais “verdades”, uma vez deslizarem, constantemente, entre o real e o ficcional. Deixa evidente que muito depende dos olhares dos leitores, de sua capacidade hermenêutica, a construção das “verdades históricas”, levando-se em consideração inexistirem pontos de vista únicos. Memória e esquecimento fazem parte da “oficina da história” e de sua relação com a literatura, a geografia, a etnografia e com outras ciências e artes.

As histórias e estórias do imperador de Gaza e de suas mulheres, com compassados movimentos, são tecidas por um discurso literário aberto a múltiplas “verdades”. As sete mulheres de Ngungunhane – Phatina, Malhalha, Namatuco, Lhésipe, Fussi, Muzamussi e Dabondi –, aquando da queda do imperador, foram, em 1896, exiladas junto com este para Lisboa e, depois, para os Açores. Diferentemente de Ngungunhane que aí foi mantido até sua morte em 1906, as mulheres, forçadas a deixarem os Açores, seguiram para novo exílio em São Tomé, onde viveram até 1911, ocasião em que conseguiram regressar a Lourenço Marques. Entretanto, das sete mulheres só quatro – Phatina, Malhalha, Namatuco, Lhésipe – voltaram a Moçambique, acompanhadas de Oxaca e Debeza, estas mulheres de Zilhalha, súdito de Ngungunhane.

A narrativa de As Mulheres do Imperador começa, justamente, com esse retorno das quatro mulheres de Ngungunhane a Lourenço Marques. Decorridos quinze anos fora de terras moçambicanas, regressaram a bordo do paquete África a um Moçambique colonial, pressionado, ao mesmo tempo, por interesses portugueses e capitais ingleses. Essas mulheres, segundo entrevista do próprio escritor Ungulani Ba Ka Khosa, “queriam regressar à terra, mas não sabiam que a terra se chamava Moçambique. Para elas, Moçambique nunca existiu, existia apenas o império de Gaza em que tinham vivido[1]”. 

O narrador vai delineando a cartografia da cidade de Lourenço Marques, nas primeiras décadas do século XX, sob o jugo do colonialismo português. Ele vai mostrando como os espaços eram demarcados: o dos brancos, o dos negros, o dos orientais – indianos e chineses – com suas especiarias e cheiros, o da prostituição – a Rua Araújo, conhecida como “Rua do Pecado”, onde, no início do colonialismo, só brancas e mestiças podiam oferecer seus corpos a marujos de diferentes nacionalidades. À medida em que narra, vai apreendendo, também, referências culturais da época, ressaltando, entre outras, a importância do bilinguismo do jornal O Africano, dos irmãos Albasini.

Tais cartografias expressam contradições não só espaciais, como de classe, gênero e poder. Cartografias que nos dizem de margens, de mulheres que, embora rainhas, se encontravam, em suas culturas, nas franjas do domínio masculino, mas que conseguiram fugir dos limites e, pelas fronteiras do poder, provocaram, de alguma forma, rupturas em relação às cristalizações sociais impostas.

O regresso das mulheres do imperador a Lourenço Marques leva o olhar atento do narrador a descrever o cenário que elas encontraram: uma cidade cindida, conforme observa o escritor Ungulani na entrevista já mencionada:

Havia, na altura, a estrada da Circunvalação, que dividia a parte branca da negra – parte branca, é como quem diz, porque existia uma grande comunidade chinesa e indiana que ocupava uma grande parte da cidade. E aqueles conflitos, no primeiro ano da República [portuguesa], em 1911, retratam um pouco isso. E depois havia a parte negra, que era do outro lado, onde elas sentem que estão de regresso à terra que é o espaço delas modificado[2]

Chamando atenção para a pujança da cidade colonial, com seu desenvolvimento, suas diversidades, sua economia, seus usos, costumes e, também, para muitos preconceitos e estereótipos, a instância narracional vai, criticamente, evidenciando a oposição existente entre o passado de poder do imperador – denominado o “Leão de Gaza” –, entendido como tempo da barbárie, e a colonização lusitana, compreendida como engenho e acesso à civilização.

Também são assinaladas no romance contradições percebidas a partir de atitudes e práticas exercidas pelas mulheres de Ngungunhane, principalmente, após sua morte. Nos comportamentos destas são depreendidos jogos de poder, questões étnicas, desejos, novos interesses. Phatina, Malhalha, Namatuco, Lhésipe choram e recordam Ngungunhane. Debatem e se perguntam: que futuro teriam sem seu rei, elas que foram rainhas de um vasto império? Recorrendo às tradições, Namatuco, por meio de adivinhações dos espíritos ao redor do canhoeiro, vaticina acerca dos papéis e da vida de outras mulheres do imperador. O narrador, por meio de referências a documentos históricos, vai mencionando, com olhar crítico, a África dos colonizadores; a do governador-geral Mouzinho de Albuquerque, responsável pela prisão e exílio de Ngungunhane; a de Ayres d’Ornellas, militar português que empreendeu campanhas contra o imperador de Gaza e escreveu Cartas de África; a África dos relatórios e decisões dos que dominam. Mostra, não obstante, a partir do ponto de vista das viúvas do imperador, que existia uma outra África, misteriosa e profunda, a África de Namatuco, com suas crenças e profecias animistas.

O poder, emanado da figura autoritária e tirana de Ngungunhane, vai sendo, desse modo, subvertido pelos discursos e atitudes de suas mulheres. A instância narradora assinala a soberania masculina, porém, ao mesmo tempo, insinua como o feminino, por vezes, foi capaz de burlar o domínio másculo: “A palavra está para os homens, como o olhar, a linguagem das luzes e das sombras, para as mulheres”— comenta o narrador, na parte 6 do romance, referindo-se à Debeza que soube esconder seu adultério com o príncipe Godide. Essa cartografia do olhar, da memória e da imaginação traz lembranças que escrevem uma história no feminino, uma história que dá voz às mulheres de Ngungunhane, até então esquecidas sob a poeira dos tempos. O romance As Mulheres do Imperador comprova que, mesmo em um universo predominantemente masculino, essas mulheres conseguiram desvelar outras versões possíveis da história.

Ba Ka Khosa, em seu percurso literário, efetua uma reescrita de Moçambique pelo jogo entre história e ficção, entre tradição e modernidade, entre narrativas imaginadas e episódios históricos ocorridos, entre versões da oralidade e da história oficial. Optando, no título  Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do imperador, pela grafia portuguesa da época – Gungunhana –, e usando, na escrita dos romances, Ngungunhane – que, graficamente, reproduz a forma oral, ou seja, a pronúncia própria da língua nguni –, Ungulani, intencionalmente, expressa a dualidade de pontos de vista, demonstrando que não existe uma única versão histórica. Entrelaçando literatura e história, repensa Moçambique pela voz dos que estão à margem do poder, joga com a sedução e o fascínio que o domínio da escrita literária pode oferecer tanto ao escritor como ao leitor. Este, com certeza, irá se encantar não só pelo prazer de decifrar a polêmica figura do imperador, mas também as vidas e as histórias de suas mulheres.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2018.

[1] KHOSA. “A memória é sempre costurada. É preciso escangalhá-la para abrir caminhos”. Entrevista a Nuno Ramos de Almeida. Lisboa, 03/04/2018. Disponível em: https://ionline.sapo.pt/606664. Acesso em 14/06/2018. 
[2] idem, ibidem.

Carmen Lucia Tindó Secco é Profa. Titular de Literaturas Africanas, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). É colaboradora da Editora Kapulana. 

Citar como:

O ARTIGO:
SECCO, Carmen L. T. “As Mulheres do Imperador: Entrelaces de Histórias e Estórias”. In: KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do Imperador. São Paulo: Kapulana, 2018. [Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/as-mulheres-do-imperador-entrelaces-de-historias-e-estorias-por-carmen-l-tindo-secco/>

O LIVRO:
KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do Imperador. São Paulo: Kapulana, 2018. [Vozes da África]

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A degradação da personagem em Gungunhana, por José dos Remédios

O ser humano não morre quando o seu coração deixa de bater.
O ser humano morre quando, de alguma forma, deixa de se sentir importante.
in O vendedor de sonhos, Jayme Monjardim

Há 31 anos, Ungulani Ba Ka Khosa estreou-se em livro, num período em que a literatura moçambicana passava, eventualmente, por um dos melhores momentos até aqui. Na década de 80, foi lançado o primeiro concurso literário do país, foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), e, enfim, foi lançada a primeira revista literária moçambicana pós-independência, a Charrua, de que o nosso escritor é co-fundador. Este foi um momento de ouro, que, inclusive, contribuiu para a afirmação de uma escrita comprometida com a estética, por nela existir, quiçá, os (des)equilíbrios cruciais à literatura.  É neste contexto de reinvenção de uma arte, num país recém-nascido, que Ba Ka Khosa ousa apresentar-se em obra, depois de muito publicar na imprensa. Nessa altura, tinha 30 anos de idade e havia vivido em todas as regiões de Moçambique.

E então, o livro escolhido para a primeira aparição foi Ualalapi, colectânea de contos, para uns, romance, para muitos, e novela, para os mais centristas. Neste livro, um dos dois que constitui Gungunhana, obra ora lançada pela editora Kapulana, Ungulani percorre os labirintos da história, e, fugaz, aldraba a morte, retirando nela um personagem controverso (ora herói, por ter travado toda uma luta contra o regime colonial português, ora vilão, por tanto ter liderado ofensivas contra os chopes, uma etnia do Sul de Moçambique): Gungunhana/ Ngungunhane. Ao ficcionar a vida do imperador de Gaza, homem extremamente violento, Khosa constrói um cenário maquiavélico, que ao tirano permite atingir o poder sem ameaças de o perder, delegando, por isso, a morte do seu irmão, Mafemane, a Ualalapi.

A partir dos conflitos, da ganância e dos jogos de interesse instituídos na narrativa, Ungulani introduz-nos no raciocínio de um ditador que, à imagem de tantos outros de terno e gravata, não medem consequências no longo percurso ao trono. Por isso, esta é uma história actual e com muitos anos de vida.

O segundo livro que compõe a obra Gungunhana é intitulado As mulheres do imperador, na qual temos um narrador didático como cicerone no prosseguimento dos caminhos trilhados pelas rainhas de Gaza, na desnecessária viagem que termina com um exílio delas na sua terra, mas longe da sua gente. Se Ualalapi, essencialmente, ergue e derroca um império nguni, essa etnia de Ngungunhane, As mulheres do imperador é mais uma história além das peripécias que ditaram o fim de um reinado. Esta história produz-se na viagem pelo Sul de Moçambique, por Portugal, São Tomé e, mais profundo, pelas crenças, dores, desassossegos e sentimentos dessas rainhas pretas, desabitadas de si mesmas por terem conquistado a preferência de Ngungunhane. Também por isso, dá-se nesta ficção a grave degradação da personagem. Mas comecemos pelo primeiro livro.

Em Ualalapi, temos pelo menos dois momentos em que a degradação da personagem acontece. No primeiro, é Damboia, tia do imperador, quem está no centro das atenções, quando morre ainda viva, vítima de uma menstruação de três meses. Devido ao cheiro nauseabundo aí causado, Damboia perde poder e influência, quando os seus movimentos ficam condicionados ao átrio domiciliar. A linguaruda, que chama cães aos súbditos, enferma, perde a capacidade de falar e é invadida por loucura: “Começou a andar de gatas e a trepar as paredes da casa como um réptil em desespero. Durante a noite uivava como os cães” (p. 48).

Num segundo momento, a degradação da personagem, em Ualalapi, acontece quando o imperador, já nas mãos dos portugueses, profere o seu último discurso ao seu povo. Sem poder nenhum, Ngungunhane transforma-se numa entidade banal, ridícula, deprimida e cheia de fel. Destarte, o outrora poderoso imperador vira um objecto falante, prémio de guerra, conduzido, na verdade, não para um exílio, mas para um museu em que ele é a síntese do passado.

Em As mulheres do imperador essa degradação continua, quer em Ngungunhane quer nas suas esposas. No caso do “leão de Gaza”, a situação é agravada porque, arrancado da sua terra com as sete das tantas mulheres que possui, em Portugal, não fica nem com uma sequer, um verdadeiro ultraje e castigo para quem tanto preza o calor feminino. Além disso, mesmo tendo-se recusado a converter-se à religião dos brancos, já dominado, o imperador é baptizado, passando a ter um nome português. Morre triste e humilhado.

Não obstante, separadas do homem, as rainhas de Gaza, igualmente, experimentam a derradeira condição do marido. Logo, com a excepção de Namatuco, tornam-se vulneráveis, passando a comer peixe e a desejarem ser amarfanhadas pelos braços dos homens. E o facto de Namatuco ser a mais sisuda, não a impede de se tornar uma personagem amarga, pois, desterrada de Moçambique, perde o contacto com os seus espíritos, daí a incapacidade de enxergar o futuro.

Portanto, este Gungunhana encerra nas suas linhas uma preocupação estética alicerçada a uma história que se vai diluindo. Esta é uma porta de entrada para quem se preocupa com o passado e com o presente de Moçambique. E faz sentido o livro ser publicado no Brasil, afinal em causa está o conhecimento sobre a humanidade, que não se esgota na fronteira dos nossos pés, que nos faz proprietários da nossa própria voz. A degradação da personagem manifesta em Gungunhana também é nossa, por aceitarmos ser parte de uma história cujos protagonistas são os narradores do esquecimento, esses que nos afastam da nossa terra e das nossas particularidades.

Maputo, 20 de outubro de 2018.

José dos Remédios é jornalista, pesquisador, resenhista e colaborador em veículos de comunicação em Moçambique como o jornal O país e a emissora de televisão STV. É colaborador da Editora Kapulana. 

Citar como:

REMÉDIOS, José dos. “A degradação da personagem em Gungunhana”. In: https://www.kapulana.com.br/artigos/

O livro: KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do Imperador. São Paulo: Kapulana, 2018. [Vozes da África]

 

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Pensa Kanema – escritos sobre o cinema moçambicano, por Carmen Lucia Tindó Secco

A palavra kanema – que, na língua macua do norte de Moçambique, quer dizer “imagem”, “cinema” – foi bastante empregada após a independência moçambicana, quando Samora Machel, em 1975, incentivou a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) e promoveu intensa ação cultural por intermédio de unidades móveis que percorriam aldeias, levando ao interior do país o Kuxa Karema, cinejornal, cujo nome significa “o nascimento do cinema”.

O presidente Samora, conhecedor do poder da imagem, buscou construir a nova nação indepentente, incentivando o cinema em Moçambique. Seu lema era filmar imagens do povo para devolvê-las ao próprio povo.

Luís Carlos Patraquim, um dos cineastas moçambicanos que participou das edições do Kuxa Kanema, defende que

[…] o cinema moçambicano é parte do acervo histórico nacional e uma ferramenta poética para perceber o presente e perspectivar futuros; é patrimônio cultural, a par da nossa literatura, da pintura, da escultura, do teatro, do canto e da dança, podendo espelhá-las todas, essas belas e malasartes, mais a intensa riqueza linguística e diversidade de que é feita a invenção real e utópica da nossa plural identidade. (PATRAQUIM, 2011).

No caso particular de Moçambique, as produções cinematográficas tiveram o importante papel de pensar e representar, por intermédio de imagens, a nação recém-libertada, propiciando reflexões diversas acerca das culturas de várias etnias que habitavam o território antes da colonização portuguesa, acerca do colonialismo, acerca da guerra de libertação, acerca de problemas que afeta(va)m o povo moçambicano.

Considerado “a sétima arte”, o cinema funda um modo de pensamento que opera com imagens, sons, cores, luzes, movimentos, tempo, espaço. E, na medida em que pode gerar reflexões críticas, questionamentos, encontra-se em íntima correlação com a Filosofia, cuja principal característica é “fazer pensar”.

Para Gilles Deleuze, há dois tipos de cinema: o clássico e o moderno. No primeiro, há o predomínio da ação; a montagem segue uma lógica de causa e efeito, concatenando as imagens por intermédio de uma linearidade narrativa que se direciona para a resolução dos conflitos. Esse tipo de cinema é designado por Deleuze como “imagem-movimento”, distinguindo-se por apresentar um esquema sensório-motor que trabalha com enredos e mensagens, até certo ponto, previsíveis. Já o cinema moderno opera com a “imagem-tempo”, rompendo com conexões sensório-motoras esperadas e com ações sucessivas e sequenciadas. Essa segunda forma de cinema explora o espaço-tempo, não se preocupando com a narrativa, mas, sim, com uma constante produção crítica de reflexões, pensamentos. Essa modalidade de cinema é mais cerebral; nela não ocorre um encadeamento linear de imagens: “Em vez de uma imagem depois da outra, há uma imagem mais outra e cada plano é desenquadrado em relação ao enquadramento do plano seguinte” (DELEUZE, 2007, p. 255).

Para Mahomed Bamba, a África tem uma produção cinematográfica ainda incipiente; por isso, o cinema africano, de modo geral, ainda se encontra preocupado com processos de construção e consolidação das nações africanas, uma vez que, historicamente, muitas destas são recentes, tendo sido criadas com suas independências, na segunda metade do século XX. Por tais razões, há, nos filmes africanos, em geral, uma recorrente temática de procura e definição do nacional.  Diversos cineastas africanos, entre os quais o premiado Cheick Oumar Sissoko, natural do Mali, são adeptos do “cinema da verdade”, considerando função das narrativas cinematográficas

portar para a tela as imagens da África, as maneiras de  viver, as maneiras de amar, de sentir prazer, de sofrer, de lutar; a maneira de viver das sociedades africanas é um desafio. Isso porque hoje as imagens da África são quase ausentes do universo das imagens. Nós não as vemos. É importante essa missão porque a África não está inclusa. A África é apresentada como o continente de todas as calamidades, de conflitos, de guerra, de epidemias, da falta, da seca. O continente da pobreza. É isso que os países do norte mostram ao seu povo. A África é marginalizada, excluída. Nem ao menos se sabe que a África é o berço da humanidade ou que a África produziu inúmeros impérios ou então que, em certo momento da história da humanidade, a África estava muito mais avançada do que os países europeus. (SISSOKO, 2015).

Bamba adverte, ainda, que, apesar da insistência em buscar o nacional presente na filmografia africana, nesta “a representação da nação é, em grande parte, mais ideológica e política, que cultural” (BAMBA. In: FRANÇA e LOPES, 2010, p. 269); “na falta de nações no sentido pleno” (idem, p. 279), alguns cineastas africanos criam, “no plano simbólico e imaginário, uma espécie de pan-africanismo” (idem, ibidem), que focaliza a África como um todo harmônico, como se todas as nações africanas fossem homogêneas; geram, desse modo, concepções idealizadas de nação que não correspondem, inteiramente, à atual realidade sociopolítica e cultural dos multifacetados e multiétnicos países africanos.

De acordo com Marc Ferro, que investiga as relações entre cinema e história, “a câmera desvela segredo[s], apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos” (FERRO, 2010, p. 31).  Os ensaios, reunidos no livro Pensando o cinema moçambicano, buscam apreender e interpretar sentidos ocultos da história de Moçambique em narrativas fílmicas – algumas delas postas em diálogo com obras literárias moçambicanas –, refletindo sobre o modo como tais relatos problematizam os contextos históricos por eles representados. Seguindo a orientação política de Marc Ferro, diversos dos estudos aqui publicados procuram relacionar e discutir diferentes temporalidades históricas e sociais suscitadas pelos filmes, documentários e romances analisados, uma vez que “o objeto da história não é apenas o conhecimento dos fenômenos passados, mas igualmente a análise dos elos que unem o passado ao presente, a busca de continuidades, de rupturas” (FERRO, 2010, quarta capa).

A proposta do livro Pensando o cinema moçambicano é, portanto, a partir da análise de filmes, documentários, romances, demonstrar como narrativas literárias e fílmicas podem gerar afetos capazes de levarem a questionamentos profundos acerca da história e da dimensão humana tanto em uma perspectiva existencial, como social.  Segundo Spinoza, os afetos denotam não apenas atitudes existenciais face à potência de viver, mas atitudes políticas que podem externar alegóricas manifestações de crítica e indignação. Deleuze, por sua vez, afirma que o pensamento necessita escapar aos clichês, sair da imobilidade do senso comum. O cinema, afetado por imagens descentradas, pode desempenhar um papel estimulador da potência de pensar.

Composto por uma coletânea de onze ensaios que analisam filmes e obras literárias de Moçambique, o presente livro é resultado do Encontro com Luis Carlos Patraquim, durante a III Mostra de Cinema Africano – organizada, sob minha coordenação, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, de 5 a 9 de junho de 2017 –, e do curso “Afeto, Literatura e Cinema: representações da História em obras literárias e filmes de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau” – disciplina por mim ministrada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, na Faculdade de Letras/UFRJ, no primeiro semestre de 2017. Procede, ainda, de nossa pesquisa, “Literatura, cinema e afeto: representações da História em romances e filmes de Moçambique e Guiné-Bissau”, que dialoga e mantém parceria com os projetos “NEVIS – Narrativas escritas e visuais da nação pós-colonial”, CESA/FCT, PTDC/CPC-ELT/4939/2012, e “NILUS – Narrativas do Oceano Índico no espaço lusófono”, coordenados pela Doutora Ana Mafalda Leite.

O primeiro e o segundo ensaios de Pensando o cinema moçambicano, da autoria, respectivamente, de Vanessa Ribeiro Teixeira e Marlon Augusto Barbosa, se ocupam do curta-metragem O búzio (2009), de Sol de Carvalho, cuja mensagem principal é colocar em questão as contradições de uma guerra que talvez já não sirva mais ao seu propósito. Vanessa aborda os “intervalos” dessa guerra focalizados pelo filme e se interroga sobre o espaço da fábrica abandonada que, considerada como metáfora de múltiplas possibilidades – esconderijo? abrigo? solidão? extermínio? reflexão? lúdico? criação? –, faz o protagonista Vicente emergir como um sujeito diferente e questionador. Marlon, por sua vez, partindo de três eixos presentes no filme – a amizade, a lei da escolha e o perdão –, com base em considerações de Jacques Derrida sobre a amizade e sobre o perdão, pensa como tais elementos podem se entrelaçar e se relacionar poeticamente em prol de um questionamento político do projeto revolucionário.

O terceiro ensaio, de Maria Geralda de Miranda, centrando-se em A árvore dos antepassados, de Licínio Azevedo, chega à conclusão de que o filme é uma contribuição para a afirmação das raízes identitárias e culturais moçambicanas, pois, de maneira profunda, se insere em uma política cultural mais ampla, valorizando a paz e as tradições que devem ser respeitadas.

Viviane Mendes de Moraes, no ensaio seguinte – o quarto –, faz uma leitura do filme Fogata, de João Ribeiro, que é uma adaptação cinematográfica do conto “A Fogueira”, do escritor Mia Couto. Discute a “desdramatização da morte” – ponto de tensão entre as duas obras –, avaliando a forma como as comunidades rurais de Moçambique entendem a finitude da existência humana e a relação entre morte, vida e sepultamento vivenciada pelo casal protagonista do conto e do filme. Conclui que, apesar da sensação distópica em relação ao social, tanto o filme quanto o conto, embora apresentem uma evidente dicção irônica, deixam em aberto, no final, um desejo de que o amanhã seja menos amargo e a vida, junto à família e aos mortos, possa se reestabelecer e fluir menos solitária e um pouco mais harmoniosa.

Os quinto, sexto e sétimo ensaios se debruçam sobre Ngwenya, o crocodilo, de Isabel Noronha, documentário que realiza uma biografia do pintor Malangatana Valente e da própria cineasta. A narrativa fílmica se aproxima do cinema-poesia, na medida em que põe em diálogo diversas artes – cinema, pintura, literatura – e também a história e a cultura moçambicanas. O ensaio de Beatriz de Jesus Santos Lanziero, com base nos estudos de Deleuze sobre cinema, observa no filme a construção de imagens óticas e sonoras características do regime imagem-tempo. Demonstra como Isabel Noronha, afastando-se do clichê, do previsível, descolonizando a imagem, conjuga, de forma dialética, tradição e modernidade. Lucca Tartaglia, por seu turno, procura evidenciar, em sua leitura do referido documentário, os indícios de “uma espécie de iniciação”, de uma viagem iniciática ao universo ronga e, mais especificamente, à cosmovisão do pintor, através das escolhas de Noronha – posicionamento e movimento das câmeras, escolha das personagens, profundidade de campo, etc. –, levando sempre em consideração a via íntima e pessoal, a experiência da própria Isabel no que se refere ao relato do artista. Ana Lidia da Silva Afonso, também voltada para esse mesmo documentário, estuda, com base em Deleuze, Marcel Martin e Louis Delluc, a linguagem cinematográfica de Isabel Noronha, evidenciando como a cineasta, neste filme, opta por uma dicção afetiva, dinamizadora de imagens produzidas através da fotogenia, com o objetivo de ressaltar o aspecto poético extremo dos seres e das coisas.

O oitavo ensaio, de Carla Tais dos Santos, compara o filme Virgem Margarida, de Licínio Azevedo, com o romance Entre as memórias silenciadas, de Ungulani Ba Ka Khosa, a partir de um tema comum às duas narrativas: os campos de reeducação em Moçambique. Para tanto, utiliza categorias literárias, tais como espaço, personagem, tempo e narrativa, além de elementos da história e do estudo da linguagem cinematográfica, entre outras artes, amparando-se teoricamente em Frantz Fanon, Hugo Achugar, Ismail Xavier, Márcio Seligmann-Silva, entre outros.

O nono e o décimo ensaios também abordam o filme Virgem Margarida, de Licínio Azevedo, mas o fazem a partir do tema da prostituição em Moçambique. Marlene dos Anjos efetua uma leitura comparativa entre a Margarida de Licínio Azevedo e a “Mulata Margarida”, do poema de José Craveirinha. A história moçambicana é repensada, tendo por base as histórias das duas Margaridas. Cristine Alves da Silva, por sua vez, elege o romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, para dialogar com o filme Virgem Margarida, de Licínio Azevedo, examinando nessas obras situações de opressão a que o corpo negro feminino foi submetido enquanto objeto da afirmação da sexualidade masculina, tanto no regime colonial, como no governo pós-independente da FRELIMO. Discute a imagem da mulher prostituta em Moçambique, levantando questões históricas e sociais que determinaram sua inserção nesse universo de prostituição.

O último ensaio – o décimo primeiro –, da autoria de Danyelle Marques Freire da Silva, analisa a adaptação do romance Terra sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, para o formato cinematográfico desenvolvido pela realizadora Teresa Prata. Chama atenção para o fato de que a cineasta optou por não fazer uma obra fiel ao romance, concluindo que, no processo de adaptação, o diretor tem liberdade para transpor para a linguagem fílmica sua leitura da obra literária.

Com o propósito de contribuir não apenas com a divulgação de filmes e cineastas moçambicanos, mas também com discussões teóricas sobre cinema e sobre a relação deste com a literatura, faço votos de que os ensaios aqui reunidos possibilitem um conhecimento mais profundo do assunto e um olhar mais amplo acerca do cinema moçambicano, sendo estímulo para novas edições que tratem do cinema e da literatura de outros países africanos.

Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2018.

Carmen Lucia Tindó Secco é Profa. Titular de Literaturas Africanas, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). É colaboradora da Editora Kapulana. 

Citar como:

SECCO, Carmen L. R. T. (org.) “Pensa Kanema – escritos sobre o cinema moçambicano”. In: Pensando o cinema moçambicano. [Série Ciências e Artes]. São Paulo: Kapulana, 2018.

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[Sobre] O pátio das sombras, por Mia Couto

“Este conto maconde foi a história escolhida por mim como base do conto que intitulei “O Pátio das Sombras” por ser um conto muito sugestivo. Através dele podemos ver que os mortos, quando lembrados, não chegam nunca a morrer. Contudo, pareceu-me que esta história se enquadra na crença generalizada nas sociedades rurais que as mulheres viúvas e velhas se convertem em feiticeiras. É esta a razão que leva a mulher idosa a ser morta, no final da história. Estes valores devem ser questionados hoje e senti ser necessário reconverter esta história alterando o seu desfecho.

Do ponto de vista formal, pensei que seria bom criar um clima de mistério e introduzir um núcleo de conflito que se adensaria para, no final, se resolver de forma positiva.”

Mia Couto nasceu em 1955, na cidade da Beira, em Moçambique. Em 1972 foi para Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique, para estudar Medicina, mas não terminou o curso. Nos anos 70 dedicou-se ao trabalho de jornalista em diversos órgãos de informação. Voltou aos estudos universitários e formou-se em Biologia, passando, então a exercer atividades como biólogo e escritor. Está traduzido em mais de 30 idiomas e recebeu importantes prêmios, nacionais e internacionais, como o Prémio Camões, que recebeu em 2013. Desde 1987, colabora com grupos de teatro, havendo múltiplas adaptações de contos e romances para teatro e cinema, tanto em Moçambique como no estrangeiro. Da sua vasta e rica obra destaca-se o romance Terra sonâmbula que foi considerado um dos 12 melhores romances africanos do século XX.

Citar como:

COUTO, Mia. O pátio das sombras. Ilustrações de Malangatana. São Paulo: Kapulana, 2018 [Contos de Moçambique, v. 10]

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Nanquim – As ilustrações de Malangatana em “O pátio das sombras”, de Mia Couto

O Nanquim é uma técnica antiga, que se originou na China, na região da cidade de Nanjing, que já foi a capital chinesa. Essa tinta também foi muito utilizada na Índia, mas ganhou popularidade pelo seu uso no Japão. O nanquim é um material muito usado para a escrita, a pintura e também para o desenho.

Documentos de cerca de 2 mil a. C. comprovam que, na China, o nanquim já era utilizado em manuscritos. Geralmente, a tinta era utilizada em papel, pergaminho ou telas de seda, com pincéis e canetas de bambu (o que originou artes tradicionais como a Caligrafia e o Sumiê). Na Europa, o nanquim era utilizado com canetas bico-de-pena, que, no início, eram feitas de penas de corvos com a extremidade apontada; depois, evoluiu para penas de aço e canetas recarregáveis.

Por muito tempo, o nanquim foi obtido a partir da tinta preta liberada por moluscos marinhos da família dos octópodes. Atualmente, as tintas são fabricadas a partir de uma combinação de cânfora, gelatina e um pó de cor escura conhecido como pó de sapato (fuligem ou negro de fumo), muito usado na pigmentação de outros produtos de cor negra. Ele é uma das variedades mais puras de carvão.

O nanquim é uma tinta que dá ao artista a possibilidade de criar texturas lineares e dar um aspecto detalhista às obras. A tinta tem uma cor saturada e intensa, dando nitidez e clareza aos desenhos.

O livro “O pátio das sombras”, escrito por Mia Couto, e décimo volume da série “Contos de Moçambique”, é composto com as deslumbrantes ilustrações do artista moçambicano Malangatana. Utilizando da técnica de pintura nanquim, os desenhos dialogam com o texto de forma fluída e fascinante. Com talento reconhecido em diversas vertentes da arte, Malangatana foi também poeta, cantor, dramaturgo, músico e dançarino. Durante sua carreira artística, foi premiado e celebrado no mundo, seu nome está ligado à criação de várias instituições culturais, como o Museu Nacional de Arte, Centro de Estudos Culturais, atual Escola Nacional de Artes Visuais, Centro Cultural de Matalana, e outras organizações artísticas. Malangatana faleceu em 2011, em Portugal.

Citar como:

COUTO, Mia. O pátio das sombras. Ilustrações de Malangatana. São Paulo: Kapulana, 2018 [Contos de Moçambique, v. 10]

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Aquarela – Ilustrações de Luís Cardoso em “Leona, a filha do silêncio”, de Marcelo Panguana

Aquarela é uma técnica de pintura criada há cerca de 2000 anos na China. Esta tinta é famosa e inigualável por ser extremamente translúcida. Por trás das pinceladas, o papel branco é revelado e a pintura parece brilhar de dentro para fora, o que permite que a luz seja representada de forma única, diferente de outros materiais.

Nas pinturas em aquarela, os pigmentos coloridos são diluídos em água ou suspensos sobre o suporte. As tintas fluem sobre a água de maneira bastante livre, o que pode criar manchas e texturas muito expressivas, sejam ela planejadas ou acidentais. Os papéis de qualidade mais usados são os de fibras de algodão, linho e cascas de árvore, com uma gramatura alta para que não enruguem com a grande quantidade de água usada.

Artistas europeus popularizaram esta técnica, que foi utilizada por grandes pintores, como o alemão Albert Dürer, o inglês William Turner – que produziu mais de 19 mil telas utilizando a aquarela e influenciou pintores impressionistas -, o francês Paul Cézanne e o suíço Paul Klee. No Brasil, o renomado artista Carybé pintava usando a aquarela, assim como a pintora Anita Malfatti.

Citar como: Panguana, Marcelo. Leona, a filha do silêncio. Ilustrações de Luís Cardoso. São Paulo: Kapulana, 2018. [Contos de Moçambique, v. 9]

Luís Cardoso, artista moçambicano, é ilustrador de vários livros da Editora Kapulana, dentre 

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[Sobre] O que acontece quando um homem cai do céu, de Lesley N. Arimah, por Roberta Estrela D’Alva

O povo negro sempre teve suas contadoras de histórias. Lembro-me de Dona Rosa, minha saudosa e enérgica avó, tecendo suas narrativas para uma plateia de netos um tanto atônita, um tanto maravilhada. Boas contadoras de história têm a capacidade de mover nossos sentidos com suas vozes. Foi exatamente assim que me senti ao ouvir Lesley Nneka Arimah. Sim, porque ainda que escrita, é uma voz que se escuta, e que faz com que muitas outras sejam escutadas, e às quais não há como se passar incólume. Vozes negras de um feminino diaspórico, que sempre chegando ou partindo de algo (uma pessoa, uma lembrança, um país, um medo) criam territórios imaginários, emocionais, familiares que nos transportam para o centro da ação. Uma negritude não- maniqueísta, onde não só a poesia e a virtude, mas também a crueldade de mulheres que se encontram dentro de sistemas com os quais tem que contracenar, e dos quais não conseguem escapar, estão expostas. Sombras de passados, luzes do presente, adestramento de cabelos e caráteres aos quais desde muito cedo mulheres negras são submetidas. Sem ranço, com ironia, humor e um tanto de imaginação fantástica que nos faz tirar os pés do chão (e cá pra nós, estamos precisando).

São Paulo, 4 de junho de 2018.

Roberta Estrela D’Alva é atriz, Mc, diretora, diretora musical, ativista, apresentadora e slammer. Formada em Artes Cênicas pela USP (Universidade de São Paulo), Roberta também fez mestrado em Semiótica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde atualmente cursa o doutorado.

Citar como: ESTRELA D’ALVA, Roberta.  In: ARIMAH, Lesley Nneka. O que acontece quando um homem cai do céu. (orelha) São Paulo: Kapulana, 2018.

 

 

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Esperança para voar: um livro envolvente e emocionante, por Luciana Bento

Sabe quando você começa a ler um livro e ele automaticamente transporta você para outro lugar? Esperança para voar é um desses livros. Ele conta a história de duas adolescentes, Shamiso e Tanyaradzwa, que fazem da perda – concreta ou iminente – um caminho para o florescimento de uma amizade e para o amadurecimento pessoal.

Shamiso é uma jovem que retorna ao Zimbábue com sua família após crescer no exterior. Seu pai, um famoso jornalista investigativo e contrário ao governo, é morto em circunstâncias suspeitas e ela precisa se adaptar ao novo rumo de sua vida.  A ausência do pai, o novo colégio interno e a distância das amigas da Europa… tanta coisa acontecendo! Shamiso sente dificuldades em se adaptar à nova rotina e estabelecer vínculos com seu país de origem e as pessoas ao seu redor.

Tanyaradzwa é uma garota feliz. Nem a terrível doença que enfrenta é capaz de afetar a sua paixão pela música e sua vontade de viver. Mas os sintomas da doença são cada vez mais marcantes e sua fraqueza aparente pode impedi-la de fazer o que mais ama: cantar.

Esperança para voar narra o encontro dessas duas jovens que amadurecem juntas a partir das dificuldades e que lutam contra as vozes que gritam para que elas desistam de tudo. Em meio à uma situação política delicada e um caos social, as duas precisam descobrir uma forma de lidar com as transformações em suas vidas.

Ao mesmo tempo que o encontro das amigas poderia se dar em qualquer lugar do mundo sem perder o sentido, a autora reforça a importância da territorialidade na narrativa, situando seu livro em um importante momento da história recente do país. De forma leve e cuidadosa, Rutendo traz para a literatura o contexto político do Zimbábue a partir dos relacionamentos humanos e nos apresenta os impactos das escolhas políticas no cotidiano da população.

Em seu romance de estreia, Rutendo Tavengerwei mostra que sua juventude não é sinônimo de imaturidade na escrita. Sua obra traz uma nova perspectiva sobre realidade africana, em especial a do Zimbábue, que também é o país de origem da autora.  Aborda questões universais como a morte e a política sem perder a essência africana. A musicalidade é o pano de fundo perfeito, conferindo ritmo ao enredo e uma melodia que amarra todo a história.

A edição do livro reforça o compromisso da editora Kapulana em apresentar ao público brasileiro narrativas africanas contextualizadas. Termos tradicionais são mantidos na tradução, e essa decisão editorial é fundamental para que os leitores permaneçam atentos à riqueza cultural e étnica do universo narrado.

Um livro envolvente e emocionante que trata de temas áridos sem ser piegas e nos mostra o valor da coragem de lutar pelo que se acredita. A autora diz na nota introdutória ao livro que seu objetivo era contar uma história que trouxesse uma mensagem ao leitor sem subestimar o quão difícil a vida pode ser. Ao final da leitura, suspirei com aquele sorriso satisfeito por conhecer essa história. Rutendo, creio que a sua mensagem foi recebida.

São Paulo, 1 de abril de 2018.

Luciana Bento – A mãe preta

 

Citar como: BENTO, Luciana. “Esperança para voar: um livro envolvente e emocionante.” In: Tavengervei, Rutendo. Esperança para voar. Trad. Carolina Kuhn Facchin. São Paulo: Kapulana, 2018.

 

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Literatura colonial: a presença moçambicana, por Rosana M. Weg

“Contudo, apesar da atitude de desconfiança ou de rejeição que gerou, a literatura colonial é um fato consumado.” (NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015, p. 39.)

Francisco Noa, moçambicano, é Doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, de Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane (Maputo, Moçambique), é atualmente Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), também em Moçambique. Estuda colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. É autor de artigos e livros de análise e crítica literária[i]. Dentre eles, Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, livro que ora destacamos.

A obra no espaço e no tempo

Sua tese de Doutoramento “Literatura Colonial. Representação e Legitimação – Moçambique como invenção literária, defendida em 2001, deu origem à edição portuguesa de Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002).  Em 2015, a Editora Kapulana publicou a primeira edição brasileira. A grafia foi adaptada para a versão brasileira da língua portuguesa em conformidade com o acordo ortográfico em vigor, com exceção das citações, que tiveram sua grafia original preservada.

O todo e as partes

Na Introdução, o leitor é apresentado ao foco da análise que encontrará pela frente. O autor destaca o caráter multifacetado e problemático do tema que escolheu tratar: a literatura colonial em Moçambique.  No capítulo I, “Literatura colonial: enquadramento teórico e periodológico”, o escritor expõe os conceitos que norteiam sua pesquisa, o contexto em que ela se insere e o objeto de seu trabalho. Nos capítulos seguintes, o grande tema Representação é analisado a partir dos romances elencados, segundo aspectos como a verossimilhança, a representação do espaço, a representação do tempo, figuras, papéis e vozes, culminando com a legitimação do texto frente à crítica.

[…]

Leia o artigo na íntegra em:

Revista de Estudos Avançados. v. 31, no. 89. São Paulo, jan./abr. 2017. p. 465-468.

versão impressa ISSN 0103-4014

versão On-line ISSN 1806-9592: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000100465&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

versão em pdf: http://www.scielo.br/pdf/ea/v31n89/0103-4014-ea-31-89-0465.pdf

Saiba mais sobre Francisco Noa: https://www.kapulana.com.br/francisco-noa/

 

Conheça as obras do autor publicadas pela Kapulana

Perto do fragmento, a totalidade: https://www.kapulana.com.br/produto/perto-do-fragmento-a-totalidade-olhares-sobre-a-literatura-e-o-mundo/

Império, mito e miopia, Moçambique como invenção literáriahttps://www.kapulana.com.br/produto/imperio-mito-e-o-miopia-mocambique-como-invencao-literaria/ 

Uns e outros na literatura moçambicana: https://www.kapulana.com.br/produto/uns-e-outros-na-literatura-mocambicana/

Assista abaixo uma entrevista com o escritor:

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Um clássico moçambicano de volta ao Brasil – por Jorge Vicente Valentim

É sempre com alegria e satisfação, quando me deparo com edições brasileiras de autores de língua portuguesa de outros países, sobretudo, se estes se encontram praticamente fora de alcance das mãos e do alcance dos leitores. Por isso, falar desta nova edição da Editora Kapulana de um dos textos mais paradigmáticos da literatura moçambicana, para mim, constitui um prazer inestimável.

Obra de visita obrigatória para aqueles que se dedicam ao estudo das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (e faço, aqui, uma ressalva importante, talvez a única à presente edição, porque estamos lidando com sistemas literários distintos e, por isso, é urgente que o plural seja respeitado e usado: literaturas africanas), o texto de Luís Bernardo Honwana possui uma riqueza tão singular, que ele pode também ser acessado por leitores menos acostumados aos universos culturais dos países do continente sem qualquer tipo de prejuízo à mensagem e à compreensão dos elementos essenciais para sua absorção.

Publicado pela primeira vez em 1964, sob a chancela da Sociedade de Imprensa de Moçambique, Nós matamos o Cão Tinhoso! constitui um daqueles autênticos casos de um texto clássico, naquele mesmo sentido empregado pelo ensaísta italiano Ítalo Calvino. E se chamo a obra de Honwana assim é porque compreendo, agora, a sua releitura como uma “leitura de descoberta como a primeira”, exatamente porque se trata de um “livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2004, p. 11). E já chego a este ponto para justificar a minha afirmação.

Ao lado de outros textos contemporâneos seus – como Luuanda (1963), do angolano Luandino Vieira, e O galo que cantou na baía (1959), do cabo-verdiano Manuel Lopes –, a coletânea do escritor moçambicano faz parte de um elenco ficcional de toda uma geração singular e sensível de escritores que conseguiram representar os aspectos culturais mais distintos dos seus países, sem perder de vista uma intensa e crítica (e diria até, em alguns momentos, ácida) visão do cenário político, econômico e social dos seus espaços de origem e pertença. Vale lembrar, neste sentido, que o título de Honwana, anos depois de sua publicação em Moçambique, ganhou, em 1969, uma tradução inglesa (de Dorothy Guedes), sob a chancela da renomada editora Heinneman, num momento em que a guerra de libertação recrudescia no território moçambicano e a luta contra o domínio colonial aumentava o clima de tensão nos espaços ocupados por Portugal. Não à toa, portanto, que esta mesma obra ganha, em 2017, uma merecida reedição brasileira, com novas cores, novos desenhos e nova configuração.

Mas em que esta nova publicação se diferencia de sua primeira versão brasileira, de 1980, na antiga (e saudosa!) coleção “Autores Africanos”, da Editora Ática? Com um projeto gráfico e uma capa, assinados por Amanda de Azevedo e Mariana Fujisawa, a obra de Honwana rapidamente cativa o leitor pelo seu primeiro impacto visual, repetido, aliás, num singelo marcador de livros, com as mesmas imagens. E, ainda, importante é a composição bem estruturada desta nova publicação, com os textos originais da 1ª edição mais a inclusão de um inédito do autor (“Rosita, até morrer”) num índice muito bem distribuído, não deixando o leitor, portanto, sem saber o conteúdo formador da obra (como ocorre, por exemplo, com aquela versão anterior acima referida), além de mostrar que o autor ainda se encontra em plena produtividade.

Para além destes pormenores, há uma rica informação editorial do histórico da obra de Honwana, acompanhada de uma esclarecedora nota biobibliográfica e um posfácio muito didático e ilustrativo (“A visão do colonialismo pelos olhos de Luís Bernardo Honwana”), assinado por Vima Lima Rossi Martin, Professora Doutora da FFLCH/USP.

Muitos, porém, devem estar se perguntando, já aqui, por quais razões chamei eu a obra de “clássico”? Certamente pelos dados acima, claro, mas também porque se trata de uma coletânea de contos onde assuntos variados, flagrantes naquele Moçambique dos anos de 1960, são oferecidos abertamente ao leitor. Sem querer roubar o prazer da descoberta para aqueles que vão se debruçar pela primeira vez (até porque o lúcido prefácio de Vima Lia esclarece alguns pormenores, conto a conto), menciono, muito sucintamente, alguns destes eixos temáticos privilegiados na obra em questão: as experiências infantis e familiares narradas pela perspectiva de jovens personagens, as injustiças e as fraturas sociais, políticas e econômicas do universo colonial e as dimensões multifacetadas da violência sobre sujeitos subalternizados, são alguns dos elementos recorrentes em Nós matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana.

Mas, se chamei, no início desta resenha, de “clássico” das literaturas africanas e, muito particularmente, da literatura moçambicana, não será demasiado relembrar as recomendações de Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos?, ao sublinhar que estes “são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram” (CALVINO, 2004, p. 11).

Assim também se sucede com Nós matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana. Se a edição atual da Kapulana retoma (e, em muitos sentidos, revigora de forma mais positiva e acessível) aquela primeira versão brasileira, o texto per se também opera este procedimento. Objeto de estudo de nomes consagrados dos estudos literários africanos, o escritor moçambicano possui leitores competentes, todos eles, é claro, muito anteriores a esta minha breve e despretensiosa leitura. Mas, de todas, quero destacar aqui, talvez, aquela que considero uma das melhores (se não a melhor) e mais refinadas leituras do texto de Honwana (sem querer, é claro desmerecer qualquer um dos nomes da fortuna crítica, em virtude do importante trabalho de recuperação da obra do escritor moçambicano, pois se trata de uma opinião puramente pessoal e particular!). Refiro-me ao “clássico” ensaio da Profa. Dra. Inocência Mata, num texto seu de 1985, republicado em 1992 e 1994, intitulado “O espaço social e o intertexto do imaginário em Nós matamos o cão tinhoso”.

E a minha escolha dá-se por uma razão muito simples. Foi o ensaio que li, logo após o impacto da leitura dos contos de Luís Bernardo Honwana. Nele, Inocência Mata supera as observações recorrentes, que sempre esbarram nas questões de lutas de classe no contexto colonial, e observa de maneira muito sensível e pontual os embates do regime da intolerância, bem como a pertinência da função social dos espaços, o tema do olhar, os estigmas da cor e do gênero, a “eficácia simbólica das constelações míticas” e, sobretudo, aquilo que singulariza o conto que dá nome à coletânea de Honwana, a “consciencialização das diferenças” e “o discurso reiterativo dessa diferença (a cor dos olhos azuis, como a pedir qualquer coisa sem querer dizer, a pele velha e cheia de cicatrizes, a loucura)” (MATA, 1994, p. 111).

Esta, talvez, seja uma das lições deixadas pela obra do escritor moçambicano, que supera qualquer barreira do tempo e de localização espacial, e, nunca cessa de dizer aquilo que nela está registrado. Agora, essa possibilidade de ler e reler o texto encontra-se ao alcance do leitor brasileiro, graças à feliz iniciativa da Editora Kapulana. Num momento em que cresce uma onda de intolerância e de discursos violentos contra as diferenças (de cor, raça, religião e sexualidades), Nós matamos o Cão Tinhoso! não poderia chegar em hora melhor para sensibilizar o leitor, justamente, para aquela “consciencialização das diferenças”. Afinal, não são estas que enriquecem o nosso cotidiano e que, inegavelmente, também fazem parte das raízes de nossa formação identitária?

Por essas razões, no meu entender, o texto de Luís Bernardo Honwana pode, sim, ser considerado um “clássico”. Afinal, ele não nos deixa lições inestimáveis, tão adequadas àquele contexto de um Moçambique dos anos de 1960, mas também igualmente indispensáveis para nós, sujeitos pensantes do/no século XXI? Recebamos, pois, com alegria, satisfação e sensibilidade, esta nova edição deste “clássico”, Nós matamos o Cão Tinhoso! (1964-2017), sob a chancela da Kapulana. E que venham mais. O leitor brasileiro, com certeza, agradece.

São Carlos, fevereiro de 2018.

Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim
Professor Associado de Literaturas de Língua Portuguesa (Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literatura Portuguesa) / Departamento de Letras da UFSCar
Coordenador do GELPA (Grupo de Estudos Literários Portugueses e Africanos) / UFSCar http://lattes.cnpq.br/4427303771174064

Referências bibliográficas:

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o cão tinhoso!. São Paulo: Kapulana, 2017.

MATA, Inocência. “O espaço social e o intertexto do imaginário em Nós matamos o cão tinhoso”. In: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

Citar como:
VALENTIM, Jorge Vicente. “
Um clássico moçambicano de volta ao Brasil”. Disponível em: https://www.kapulana.com.br/artigos/

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Esculturas maconde – Ilustrações de “O caçador de ossos”, de Carlos dos Santos

A escultura maconde é uma das artes tradicionais do povo maconde (ou makonde), pertencente ao grupo étnico bantu da região de Cabo Delgado, nordeste de Moçambique e sudeste da Tanzânia, na África.

A arte maconde é representada pela música, pela dança e por objetos produzidos em palha entrelaçada, com que são feitos cestos e esteiras. No entanto, a arte maconde mais conhecida é a escultura, em que o material utilizado é o pau preto, madeira extraída de uma árvore do continente africano.

O pau preto também é conhecido como ébano africano ou ébano moçambicano. Com o uso de serrotes, catanas, machados e outras ferramentas menores, o artesão esculpe em pau preto adereços pessoais, utensílios domésticos, instrumentos e ferramentas para uso doméstico e agrícola, móveis e objetos de arte.

 As esculturas artísticas têm vários estilos, em que a presença de figuras humanas, animais e seres sobrenaturais é frequente.  Grupos de pessoas ou famílias, às vezes com seus instrumentos de trabalho, são esculpidos em uma só peça de pau preto.  Também há conjuntos maiores de esculturas em que cenários inteiros, como aldeias, são representados em detalhes, peça por peça.

 A escultura maconde é uma das artes moçambicanas de maior reconhecimento nacional e internacional por representar com arte os costumes de um povo através dos tempos.

Citar como:
SANTOS, Carlos do. O caçador de ossos. Ilustrações de Emanuel Lipanga. São Paulo: Kapulana, 2018 [Contos de Moçambique, v. 8].

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Pintura a óleo – Ilustrações de Silva Dunduro, em “Na aldeia dos crocodilos”, de Adelino Timóteo.

A técnica de pintura a óleo é uma das técnicas mais antigas e tradicionais das artes plásticas.

Quase todos os documentos de história da arte dizem que essa técnica de pintura surgiu na Europa no século XV. Porém, quando em 2001, no Afeganistão, foram destruídas estátuas gigantes de Buda, pesquisadores encontraram cavernas com milhares de imagens decoradas com pinturas de Buda e seres mitológicos, feitas entre os séculos V e IX. As surpreendentes imagens tinham sido feitas com tinta a óleo, o que significa que essa técnica já era utilizada na Ásia antes de chegar à Europa. Naquela época, as tintas eram feitas à base de nozes e sementes de plantas.

A pintura a óleo, apesar de antiga, ainda é muito utilizada. As tintas são aplicadas em superfícies de madeira ou tela de algodão cru, ou sobre outros materiais, com pincéis ou espátulas. A espessura da tinta depende do efeito buscado pelo pintor. A tinta seca lentamente, o que permite ao artista alterar seu trabalho durante muito tempo, se ele quiser.

Algumas das obras de arte mais famosas do mundo, como a “Mona Lisa” (1503), do italiano Leonardo da Vinci, “A noite estrelada” (1889), do holandês Vincent van Gogh, e o “Abaporu” (1928), da brasileira Tarsila do Amaral, foram pintadas com o uso dessa técnica.

Citar como:
TIMÓTEO, Adelino. Na aldeia dos crocodilos. Ilustrações de Silva Dunduro. São Paulo: Kapulana, 2018 [Contos de Moçambique, v. 7].

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Outras fronteiras: o brilho dos pirilampos e os fragmentos da memória, por Carmen Lucia Tindó Secco

O livro Outras fronteiras: fragmentos de narrativas divide-se em quatro grandes partes. A primeira tem como título “Como se a manhã do tempo despertasse”. O eu lírico peregrina dentro de si para se buscar; examina suas fronteiras; navega com um país dentro da língua, fazendo do coração paisagem antiga, mas sempre presente no olhar, no álbum de suas vivências, como se pudesse despertar. A escrita se apresenta como pena de um amor infinito, como um feitiço querendo escapar do eterno. Seria isso possível?

O eu lírico conversa com quem escreve. Ana no espelho. E os pirilampos na noite, com sua luz, enfeitam lembranças. Como os vaga-lumes de Didi-Huberman, resistem, revelando-se metáforas da poesia em meio a um mundo-espetáculo de luzes ofuscantes: “Há [hoje] sem dúvidas motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga–lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 14)

 A segunda parte é constituída pelos poemas de Moatize, nos quais se encontram as fronteiras híbridas dos afetos ali vivenciados em relação à infância, ao amado, a Moçambique. Passam pela memória lírica as primeiras cores da terra, o fluir das águas do Zambeze; depois, as paisagens da negra azul cantada por Virgílio de Lemos e todos os tons de anil que tingem a imaginação. Também está presente Camões, cujo fogo do amor acende o lirismo amoroso no azul do Oriente e do Índico, oceano de inspiração criadora.

A terceira parte de Outras fronteiras: fragmentos de narrativas aborda o tema de viajantes e suas narrativas escritas em diários que registram viagens por cidades moçambicanas: Tete, por exemplo. Nesses escritos, são muitas as fronteiras percorridas, muitos os cruzamentos culturais encontrados. A pena narrativa aponta a presença de goeses, indianos, portugueses, além dos africanos. Apreende sons de batuque à distância, máscaras de espíritos antepassados.

Outras fronteiras: fragmentos de narrativas é perpassado por pensamentos e fragmentos de poemas de Camões, Eduardo White e outros poetas; por diários de antropólogos, como Lacerda e Almeida. Real e imaginação se entrelaçam. Os versos de Camões e White se mesclam a fragmentos de narrativas de Lacerda e Almeida, que viajara a Moçambique em 1797 para mapear minas de ouro na África Oriental. Há poemas também, nessa parte, sobre as donas dos prazos, ao sul do Zambeze, que possuíam escravos e ajudaram a expedição de Lacerda e Almeida. Uma dessas senhoras é Dona Francisca Josefa de Moura e Meneses, cuja sobrinha se casara com o mencionado antropólogo.

Poesia e história dialogam, lançando luzes sobre momentos problemáticos do passado moçambicano. Fragmentos narrativos e biográficos cruzam os poemas, trazendo informações sobre o contexto historiográfico de Moçambique, em especial sobre os prazos da coroa no vale do Zambeze, onde houve um sistema escravocrata interno que beneficiava as senhoras prazeiras e suas respectivas famílias.

Na quarta e última parte do livro de Ana Mafalda, há uma exaltação das belezas do Índico, como, por exemplo, no poema intitulado “O Índico em Marrakesh”. O Índico aqui não se restringe ao litoral de Moçambique. Multicultural, é um traçado azul, um oásis no caminho, traz a imagem de alguém nos olhos da poetisa. Assim, devagar, a poesia vai alcançando múltiplas portas, cidades, jardins, templos com minaretes dedicados a  Alah. Muitos são os encantadores de serpentes, suas flautas e tranças mágicas.

 Metáforas, como água, azul, amor, fronteiras, estão presentes nessas “narrativas poéticas” de Ana Mafalda. Funcionam como pequenos labirintos e fontes de água, enamoramentos do Índico, envolto em chás de menta e gengibre. Corpos dançando cheios de luz através de escritas enigmáticas, decifrações, sortilégios. Entre Ocidente e Oriente, Moçambique só é possível pelo cruzamento de “acasos conjurados”, voz do passado rente ao Índico e às diversas etnias africanas que habitam a terra moçambicana.

[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

São Paulo, junho de 2017.

Citar como:
SECCO, Carmen L. Tindó. “Outras fronteiras: o brilho dos pirilampos e os fragmentos da memória”. Posfácio in: LEITE, Ana Mafalda. Outras fronteiras: fragmentos de narrativas. São Paulo: Kapulana, 2017.

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Nanquim – As ilustrações de Celestino Mudaulane em “Wazi”, de Rogério Manjate

O Nanquim é uma técnica antiga, que se originou na China, na região da cidade de Nanjing, que já foi a capital chinesa. Essa tinta também foi muito utilizada na Índia, mas ganhou popularidade pelo seu uso no Japão. O nanquim é um material muito usado para a escrita, a pintura e também para o desenho.

Documentos de cerca de 2 mil a. C. comprovam que, na China, o nanquim já era utilizado em manuscritos. Geralmente, a tinta era utilizada em papel, pergaminho ou telas de seda, com pincéis e canetas de bambu (o que originou artes tradicionais como a Caligrafia e o Sumiê). Na Europa, o nanquim era utilizado com canetas bico-de-pena, que, no início, eram feitas de penas de corvos com a extremidade apontada; depois, evoluiu para penas de aço e canetas recarregáveis.

Por muito tempo, o nanquim foi obtido a partir da tinta preta liberada por moluscos marinhos da família dos octópodes. Atualmente, as tintas são fabricadas a partir de uma combinação de cânfora, gelatina e um pó de cor escura conhecido como pó de sapato (fuligem ou negro de fumo), muito usado na pigmentação de outros produtos de cor negra. Ele é uma das variedades mais puras de carvão.

O nanquim é uma tinta que dá ao artista a possibilidade de criar texturas lineares e dar um aspecto detalhista às obras. A tinta tem uma cor saturada e intensa, dando nitidez e clareza aos desenhos.

Citar como:
MANJATE, Rogério. Wazi. Ilustrações de Celestino Mudaulane. São Paulo: Kapulana, 2017 [Contos de Moçambique, v. 6].

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A violência do colonialismo pelo olhar de Luís Bernardo Honwana, por Vima Lia de Rossi Martin

A origem de Nós matamos o Cão Tinhoso! De autoria de Luís Bernardo Honwana, o volume de contos Nós matamos o Cão Tinhoso! é um marco da literatura moçambicana. Publicado em Moçambique em 1964, em uma edição do próprio autor, que na altura tinha apenas 22 anos, a obra foi alvo de polêmica, sendo criticada por parte daqueles que defendiam o colonialismo e simpatizavam com o regime do ditador português António de Oliveira Salazar, e aclamada por aqueles que, portadores de ideias nacionalistas, defendiam a liberdade e a autonomia do país.
Assim, no mesmo ano em que tem início a luta pela independência, conquistada apenas em 1975, a coletânea de Honwana – que ficou preso de 1964 a 1967 devido à sua militância junto à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) – agita o panorama literário moçambicano. Seu livro é celebrado por poetas importantes, como José Craveirinha e Rui Knopfli, que reconheceram de imediato seu caráter questionador das estruturas de poder vigentes e saudaram o fato de que a obra punha em movimento a produção em prosa no país, estagnada desde a publicação de Godido e outros contos, de João Dias, em 1952.

Aspectos das narrativas

O volume é composto por sete contos que, de modo geral, recriam a atmosfera asfixiante vivida pelos trabalhadores colonizados e suas famílias e acabam por operar uma denúncia da violência material e simbólica, do racismo e de toda a sorte de injustiças a que era submetida a população moçambicana pobre em meados do século passado. Alguns textos, como “Inventário de móveis e jacentes”, que pode ser lido como alegoria da imobilidade social, e “Dina”, são narrados desde uma perspectiva mais distanciada, que capta a realidade de maneira análoga a de uma câmera, capaz de registrar com agudeza e precisão os detalhes significativos de uma cena. Outros, como “Nós matamos o Cão Tinhoso!”, que dá título ao livro, o belíssimo “As mãos dos pretos”, e “Papá, cobra e eu”, dão destaque às experiências infantis – são as crianças que, ao tentarem entender a sua realidade e a de seus pais, irmãos e amigos, acabam por revelar as tensões e as contradições do universo colonial, rigidamente dividido entre patrões e empregados, colonos brancos e trabalhadores negros.
Os textos, protagonizados por personagens que frequentemente se veem sem saída diante das arbitrariedades do sistema colonial, mostram como o silenciamento diante das humilhações e dos abusos era sobretudo uma estratégia de sobrevivência, uma vez que a tirania do colonizador não deixava brechas para a contestação ou as revoltas pessoais. Na caraterização do doloroso cotidiano dos colonizados, ligado diretamente à terra trabalhada exaustivamente para o enriquecimento dos patrões, articulam-se elementos plenos de significado: animais como cachorros, aves e cobras; alimentos como o milho, o arroz, o caril de amendoim, a farinha e o vinho; profissões como a do administrador, do capataz, da professora, do veterinário, do enfermeiro e do chefe dos correios; e línguas como o changana, o ronga e o swazi são referidos como índices do dia a dia vivido pelos colonizados, estabelecendo um território de significados múltiplos e intricados, que dão vida própria à matéria narrada.

O Português africanizado

Outro aspecto fundamental da elaboração das histórias diz respeito ao modo como o escritor trabalha a língua portuguesa. Falante do ronga e do português, Honwana optou por representar o contexto sociocultural a partir da incorporação de palavras, expressões e modos de fala tipicamente moçambicanos. Termos como “chiça”, “maguerre”, “machamba” e “kuka”, por exemplo, aparecem nos textos como marcas de uma língua literária que se quer distinta da norma portuguesa. O autor nomeia, inclusive, duas das narrativas com termos africanos: “Dina” deriva do inglês dinner (marcando a influência dos contatos com o inglês falado na África do Sul, através sobretudo do trabalho nas minas); e “Nhinguitimo” significa tempestade, na língua ronga. Essa africanização do português europeu afirma uma identidade cultural e nacional, gesto fundamental no momento de luta pela emancipação do país.

Relações e intersecções

Interessante é notar, ainda, a circulação e a recepção da obra no contexto das literaturas africanas de língua portuguesa. Em 2007, o escritor angolano Ondjaki publica o livro de contos Os da minha rua. Nele, um conto faz referência explícita ao texto de Honwana: “Nós choramos pelo cão tinhoso”, título do conto de Ondjaki, narra a experiência de leitura do conto do autor moçambicano por um grupo de alunos da oitava série, numa aula de português em uma escola de Luanda. O contato com a história da morte do cachorro, levada a cabo por um grupo de crianças moçambicanas que, de certo modo, haviam introjetado toda a brutalidade do sistema colonial, deixa o grupo de estudantes angolanos perplexo e emocionado, atestando simultaneamente o potencial humanizador da literatura e um diálogo solidário entre as gentes e as literaturas de Moçambique e Angola.

A publicação no Brasil

No Brasil, o livro de Honwana recebeu apenas uma edição, em 1980, no âmbito da extinta coleção Autores Africanos, da Editora Ática, que foi um marco para o estudo das literaturas africanas no país. Por isso, para nós, leitores brasileiros, esta nova edição brasileira da Kapulana de Nós matamos o Cão Tinhoso! é mais do que oportuna. De um lado, trata-se de obra fundamental do campo literário moçambicano que, ao se tornar acessível, amplia nosso repertório e favorece o cumprimento da lei 11.645/08, responsável pela legitimação do estudo da história, das culturas e das literaturas africanas e indígenas em nosso país. De outro, as questões presentes no livro, tão reveladoras da opressão e da exploração caraterísticas do colonialismo português, ganham especial relevo no contexto de crise em que vivemos, no qual se faz necessário reinventar formas de luta pela garantia dos direitos humanos.

São Paulo, setembro de 2017.

Obra consultada: 
AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.

Citar como:
MARTIN, Vima Lia de Rossi. “A violência do colonialismo pelo olhar de Luís Bernardo Honwana”. Posfácio in: HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso! São Paulo: Kapulana, 2017. [Série Vozes da África]

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Posfácio do livro “Roda das encarnações” – por Francisco Noa

Este é o quarto livro de poesia de Sónia Sultuane – Sonhos (2001), Imaginar o Poetizado (2006) e No Colo da Lua (2008) – e que se inscreve numa singular trajetória de uma escalada em que o acento na sensação se afirma como inapagável imagem de marca. Marca que adquire agora novos contornos, já insinuados em No Colo da Lua, onde claramente o misticismo se posiciona para funcionar como expressão apoteótica (ou superação?) da volúpia sensorial que define o estilo criativo desta voz que se insinua nesta e noutras margens do Índico.

            E é logo o título que nos prepara não para uma ruptura, ou inversão, mas para uma espécie de aliança estruturante entre o pendor sensorial e o apelo místico. A roda das encarnações convoca necessariamente as doutrinas sobre a transmigração da alma ao longo de tempos imemoriais, de vidas anteriores, de emoções não resolvidas nessas mesmas vidas. Isto é, aquilo a que vulgarmente se chama karma ou destino e que teria a ver com o ciclo de intenções, ações e consequências que precisa ser quebrado para ultrapassar e resolver uma espécie de bloqueio encerrado… na roda das encarnações.

            E a poesia parece funcionar, neste caso, como tentativa de purificação, de redenção e de sublimação dos desequilíbrios e das cargas negativas acumuladas nas diferentes vidas passadas. Obviamente, tudo isto só fará sentido para quem acredita na encarnação. Falo, entre outros, dos praticantes do hinduísmo, do budismo, ou das doutrinas místicas do Egito antigo. O espiritismo, entretanto, entende que essa transmigração não pode ser aleatória, mas deve representar uma progressão.

            Outra possibilidade, para quem não entende ou se distancia destas doutrinas, a decisão mais razoável, porque pragmática, é a do leitor fazer um pacto tácito e comunicativo com os poemas que esta obra nos proporciona e que oscilam entre a materialidade algumas vezes crua das sensações e a espiritualização das mesmas.

            No poema a abrir, “Roda das Encarnações”, título homônimo da obra, os dados ficam lançados:

 

            Sou os olhos do Universo,

                a boca molhada dos oceanos,

                as mãos da terra,

                sou os dedos das florestas,

                o amor que brota do nada,

                sou a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o

                mundo,

                sou o que sinto sem pudor,

                […]

                sou o cosmos

                vivendo na harmonia da roda das encarnações.

 

            Surpreendemos, aqui, aquela que vai ser a nota dominante, contraditória por um lado, mas ao mesmo tempo conciliatória entre uma dimensão transcendente, cósmica (Sou os olhos do Universo/ sou o cosmos/ vivendo na harmonia da roda das encarnações) e uma dimensão sensualista, com um caráter transgressivo e lúbrico (sou o que sinto sem pudor). Neste particular, é como se assistíssemos a uma deriva pessoana de sentir tudo de todas as maneiras ou de então viver tudo de todos os lados, como se o sentir fosse, para todos os efeitos, uma espécie de centro existencial. Veja-se “Alma Inquieta”:

 

            fazendo calar o tropel sonoro

                da minha alma inquieta, sensorial,

                num recanto qualquer

                do jardim dos meus sentimentos.

 

            E num poema como “O teu nome é paixão”, a sensação emerge como a vertigem de uma onda, em que a conexão com o outro que se deseja e com quem se estabelece um diálogo íntimo faz com que tudo tenha sentido na voz que entretanto se agiganta:

 

            sinto que toda eu sou um poema dos sentidos, exuberante,

                cheia de viço e força, como se o meu corpo fosse um tronco

                onde o látex rebenta em belas lágrimas de âmbar.

                sinto-me analfabeta do amor, face à grandeza do teu amor

                sim o teu amor!!! …e que amor!!!….

 

            Não admira, pois, que seja a sinestesia a figura retórica que sobressai em porções generosas no lirismo poético de Sónia Sultuane. Exuberante rapsódia de sensações e emoções, a sinestesia acaba por instituir-se como reinvenção da própria sensação, seja ela tátil, visual, olfativa ou mesmo sonora:

 

            Um poema de descontentamento

                que enrola os meus sentimentos

                num xaile negro e na voz desconhecida

                que canta a minha dor.

 

            Seria ilusório, no entanto, acreditar que a peregrinação poética e sensorial de que o leitor é testemunha e cúmplice, nesta obra, assenta em exercícios gratuitos de irracionalidade lírica. A comprová-lo estão, entre outras, as demonstrações reiteradas de uma consciência do próprio fazer poético, de que poesia, afinal, são palavras: “As palavras são a exterioridade que reveste o meu coração” (Palavras); “Caminho com meus pés sem medo das palavras” (Vocabulário); “Só tu conheces o texto onde me reescrevo” (Pontuação); “Por ti/ dou todos os verbos autênticos que conheço” (Gramática).

            Será, porém, na espiritualização das sensações, no misticismo que atravessa grande parte dos poemas de Roda das Encarnações, onde uma espécie de aprofundamento e questionamento da existência individual, numa perspectiva atemporal, nos transporta para uma dimensão outra, diríamos mesmo inapreensível. Isto é, a mesma voz poética que, em algum momento, e assume como “uma vagabunda/ no mundo dos sentimentos”, procura, agora, levar-nos mais longe.

            Tal é o caso de uma viagem imaginária, difusa e onde o próprio limite é o Universo:

 

            nessa viagem de sonho sem norte nem sul

                procurando dentro de mim os desconhecidos

                oceanos que me purificarão,

                procurando dentro de mim a essência

                que mate a minha imensa sede de saber

                com a certeza de apenas servir a verdade

                do que sou

                nesta nova missão espiritual.

 

            E a poesia vai-se derramando numa religiosidade sem religião, onde Deus, Natureza, Universo, Tempo, Lugar, Cosmos, karma se entrelaçam num círculo mais de busca de transcendência do que propriamente da sua afirmação ou realização.

            E na intensa e envolvente dicotomia vida-morte, emerge um sentido de mortalidade da qual se renasce quase que indefinidamente, numa aparente negação dessa mesma dualidade. E aí percebemos que, sair da roda das encarnações, quando se sai, mais do que redenção, significa sobretudo abraçar a eternidade, superação das prisões que o corpo, isto é, as sensações foram engendrando na travessia do tempo e da memória.

Setembro de 2016.

Francisco Noa – Ensaísta, pesquisador de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), Moçambique.

Citar como:
NOA, Francisco. “Posfácio do livro Roda das encarnações”. Posfácio in: NOA, Francisco. Roda das encarnações. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)

Prefácio da 1ª edição moçambicana de Roda das Encarnações, de Sónia Sultuane, 2016 (Fundação Fernando Leite Couto). A ortografia foi atualizada em conformidade com o Acordo Ortográfico de 1990.

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O meu encontro com Jorge Amado – por Francisco Noa

Já há muito ouvia falar do autor e das suas histórias, quando em finais da década de 70, li, pela primeira vez, uma obra sua e que iria ampliar e aprofundar o meu conhecimento, mesmo a distância, sobre o Brasil. Sobretudo sobre um certo Brasil, até aí para mim uma autêntica incógnita que, de certo modo, se prolonga até hoje. A minha primeira aproximação a esse Brasil profundo e enigmático tinha sido em meados da década de 70, com o filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, de 1959, filmado nas favelas do Rio de Janeiro, em pleno Carnaval, e que deixou arregalados, pela descoberta que então fazia, os meus olhos então adolescentes.

O romance Jubiabá foi, pois, uma revelação de uma realidade que teve o condão de me deixar ligado a um mundo que ao mesmo tempo que me era profundamente desconhecido e desconcertante, me era tão próximo e tão familiar. O fato de os protagonistas serem dominantemente negros, com a sua origem africana bem vincada no desembaraço, na liberdade interior, no despojamento material, na espontaneidade, na alegria, na fraternidade e num misticismo entranhado concorria para que todo aquele mundo, de repente, fizesse parte de mim e eu dele.

O Morro do Capa Negro, onde o moleque Antônio Balduíno brincou e cresceu, era a Mafalala que me surgia inteira e palpitante na minha infância, no colorido das suas gentes, na animação do cotidiano, tranquilo e rotineiro, no fascínio de viver cada dia como se fosse o primeiro e o último, no jogo imprevisível de um destino que a todos irmanava, mesmo tendo em conta as nossas diferenças de cor, de origem e de formação.

A educação de Baldo, feita de histórias e de lendas, fazia dele um irmão mais velho, campeão das malandragens suburbanas, protetor dos fracos, desafiador de todos os tabus, exemplo a imitar no sucesso junto das meninas que desabrochavam para a vida e para o amor.

E a Bahia de Todos os Santos, feito Moçambique, colonial e ancestral, de oprimidos e de pessoas livres, de dominados e de privilegiados, dos rituais ditos pagãos, cristãos, muçulmanos, animistas, da miséria de muitos que davam sentido à vida de poucos, dos sons musicais que enchiam e faziam bailar as nossas existências, dos silêncios sábios dos mais velhos, das transgressões vigiadas e imediatamente punidas…

E o que mais me surpreendia em Jubiabá era perceber que os que normalmente não tinham direito a ter voz nem consciência passaram, pelo menos naquela ficção tão poderosamente real, a ter uma e outra, na galeria inesquecível e simbolicamente apelativa de personagens tão próximas, mas tão distantes como Zé Camarão, Mestre Manuel, Tia Luísa, Lindinalva…

Através de Jubiabá, redescobri as minhas próprias origens, reinterpretei meu lugar no mundo e no tempo. Enfim, foi uma leitura que se traduziu num ritual de passagem significativo e que me ajudou a amadurecer a minha relação com a literatura e com a vida.

Fevereiro de 2012.

Francisco Noa – Ensaísta, pesquisador de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), Moçambique.

Citar como:
NOA, Francisco. “O meu encontro com Jorge Amado”. Prólogo in: NOA, Francisco. Uns e outros na literatura moçambicanaEnsaios. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Ciências e Artes)

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Pintura digital – Ilustrações de “Kanova e o segredo da caveira”, de Pedro Pereira Lopes

Pintura digital é uma técnica de ilustração utilizada por artistas para a criação de suas pinturas no computador. O ilustrador tem acesso a uma tela virtual e a ferramentas digitais, como pincéis que simulam diversos tipos de texturas de tintas como óleo, aquarela e acrílica. Além disso, alguns instrumentos, somente presentes no computador, possibilitam efeitos diferentes das pinturas tradicionais feitas à mão, como o “conta-gotas” e ferramentas que possibilitam alterar nitidez, brilho e contraste. É uma técnica muito prática para os momentos de criação.

Em 1972, surgiu o software SuperPaint, marco importante para a evolução da técnica de pintura digital, pois foi o primeiro programa capaz de criar traços mais limpos, eliminando o serrilhamento, que é produzido quando se cria uma linha inclinada no computador. Por ser bastante versátil, a pintura digital passou a ser utilizada em diversas áreas da comunicação e das artes, como publicidade, jogos virtuais e ilustração de livros e revistas.

Uma das vantagens da pintura digital é poder corrigir um erro, acrescentar ou alterar algum traço durante qualquer etapa do processo artístico. Além disso, a variedade de texturas e ferramentas disponíveis provocou o surgimento de novas combinações de materiais e diferentes estilos de trabalho.

A pintura digital não substitui o tradicional desenho feito à mão. Trata-se de uma técnica inovadora de ilustração que convive com a prática do desenho feito à mão. Em ambos os casos, o valor do artista é o que garante a beleza e a qualidade da obra.

Citar como:
LOPES, Pedro Pereira. Kanova e o segredo da caveira. Ilustrações de Walter Zand. São Paulo: Kapulana, 2017 [Contos de Moçambique, v. 5].

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Canções do caos, vozes brasileiras – Apresentação

Tivemos o prazer de conhecer as quatro autoras da coletânea Canções do caosvozes brasileiras no decorrer da história da Editora Kapulana. Recebemos os textos de Adriana Cecchi e Andrea Lucia Barros já há algum tempo e, imediatamente, enxergamos o talento e a profundidade de seus escritos. Posteriormente, recebemos as composições poéticas das jovens Ana Júlia Baldi e Marcella Barbieri.

Percebemos que as quatro escritoras, que não se conheciam pessoalmente, tinham pontos em comum, por serem sensíveis vozes poéticas. Mas, também, apresentavam traços de estilo e tratamento temático próprios. São textos profundos, que retratam o amor romântico, o caos, o “eu”, mas também a correria e as ansiedades do dia a dia. Temas que fazem o leitor se identificar, que mergulham no interior de cada um e fazem refletir a essência da sua existência: são “Canções do Caos”!

Cada autora tem sua particularidade, seu conteúdo individual, mas apresentam suas reflexões com a mesma intensidade. Decidimos compor a coletânea com seus belíssimos textos a fim de levar ao leitor um novo olhar literário, de autoras novas e, ao mesmo tempo, experientes. Uma literatura contemporânea, representativa da nova geração de escritoras: “Vozes brasileiras”!

A Editora Kapulana agradece a Adriana Cecchi, Andrea Lucia Barros, Ana Júlia Baldi e Marcella Barbieri pela confiança que depositaram em seu trabalho editorial, e tem a honra de levar aos leitores o melhor que há nas palavras dessas grandes escritoras.

São Paulo, 1º de maio de 2017.

Citar como:
“Apresentação” in: BALDI, A. J; BARBIERI, M.; BARROS, A. L; CECCHI, A. Canções do caos, vozes brasileiras. São Paulo: Kapulana, 2017.

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Histórias de bela tristeza, por Elena Brugioni

Conheci pessoalmente Lucílio Manjate em novembro de 2008 aquando da minha primeira ida a Moçambique, numa Maputo chuvosa e abafada em véspera de eleições. Lembro-me com muito gosto de uma interessante e demorada conversa, acompanhada por várias Laurentinas e outras tantas gargalhadas, na esplanada da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos), onde com o Lucílio conversei longamente sobre literatura moçambicana, ouvindo suas opiniões em torno de projetos, inquietações e ideias que marcavam os jovens escritores moçambicanos que dinamizavam a AEMO, procurando nos caminhos da escrita um rumo para o futuro.

Desde aquela primeira conversa, outros encontros seguiram-se ao longo dos anos; o mais recente em outubro de 2015 em Portugal, onde partilhamos uma bela mesa-redonda por ocasião do Congresso de Comemoração dos 40 anos da Independência de Moçambique, na Universidade de Lisboa. Nesta última ocasião, enquanto ouvia a fala do colega e escritor, cuja obra literária tinha vindo a acompanhar ao longo dos anos, apercebi-me de como o jovem que conhecera naquela tarde de novembro em Maputo tinha-se tornado um crítico fino e engajado cujas reflexões em torno da nova geração de escritores moçambicanos — sobretudo a propósito do recente trabalho por ele organizado, Antologia Inédita – Outras vozes de Moçambique (Alcance, 2014) — despertaram um intenso debate, dando assim um contributo significativo para a homenagem que Moçambique e a sua literatura mereciam naquele evento.

Ocorreu-me contar aqui a breve história do meu encontro com o Lucílio Manjate pois esta parece-me corresponder ao próprio percurso que o escritor tem vindo a apresentar ao público. Um trajeto literário que vem ganhando cada vez mais maturidade, fôlego e engajamento, oferecendo ao leitor o encantamento que se espera das histórias que, como se lê neste Barcolino, nos levam ao mundo perdido e imaginado da infância, “o tom da memória e do sonho” (p. 34). Aliás, A triste história de Barcolino, o homem que não sabia morrer, obra inédita lançada no Brasil pela Editora Kapulana, é um livro que, por inúmeras razões, despertará o interesse de quem procura outros enredos e imaginários, outras formas de ver, escrever e lembrar.

No entanto, devido aos ossos do ofício, isto é aos rumos que as minhas pesquisas sobre a literatura moçambicana vão seguindo, devo confessar que o que mais me intrigou nesta história de “bela tristeza” foi, para além da habilidade e da cortesia da sua prosa, sem sombra de dúvida o lugar da sua ambientação. A Costa do Sol e o Bairro dos Pescadores, onde a cidade de Maputo se junta às águas mansas e densas de mistério do Índico, são os cenários de um enredo todo centrado à volta de Barcolino, “engenhoso pescador”, “homem mais do mar de que da terra” e “conhecedor da fúria de Adamastor” cuja história, atravessando bares, bairros e quintais, transtorna os moradores e confunde os turistas. Pano de fundo insólito construído em torno de um imaginário marítimo que dentro da literatura moçambicana institui-se habitualmente como território sobretudo poético, espacialmente deslocado no norte do país — na Ilha de Moçambique, sobretudo — e que o autor resgata e habita de sonhos que se tornam histórias e de um quotidiano convivial — feito também de lazeres e excessos — num desencontro entre vivência e imaginação de indubitável originalidade narrativa. Este mesmo Índico que vem ganhando cada vez mais peso nas obras dos prosadores moçambicanos de diversas gerações encerra e (re)significa os mistérios e as contradições da triste história de Barcolino, numa viagem inesperada entre o mar e a terra onde a imaginação transforma os sonhos em realidade, levando o leitor pelas partes incertas de outras existências.

São Paulo, 2 fevereiro de 2017.

Elena Brugioni – Professora de Literaturas Africanas, Depto. de Teoria Literária, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Citar como:
BRUGIONI, Elena. “Histórias de bela tristeza”. Prefácio in: MANJATE, Lucílio. A triste história de Barcolino, o homem que não sabia morrer. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)

 

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O legado índico da poesia moçambicana – por Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Pertencente a uma geração de poetas mais recentes, Sangare Okapi é uma das vozes poéticas que vem se destacando no panorama da poesia dos anos 2000 em Moçambique. Vencedor de prêmios – entre os quais: Revelação FUNDAC Rui de Noronha (2002); Revelação de Poesia AEMO/ICA (2005); Menção Honrosa no Prêmio José Craveirinha de Literatura (2008) –, apresenta uma obra poética não muito extensa, mas de reconhecida qualidade estética. Em Moçambique, publicou: Inventário de angústias ou apoteose do nada. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2005; Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2007; Era uma vez… Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2009 (coautor); Mafonematográfico também círculo abstracto. Maputo: Alcance, 2011; Antologia inédita – Outras vozes de Moçambique Maputo: Alcance, 2014. No Brasil, em 2007, teve poemas publicados na Revista Poesia Sempre, n. 23, da Biblioteca Nacional.

Sangare é um poeta de barcos, viagens e corpos de mulheres e ilhas. Barcos-viagem, travessia, corpo-imaginação, água da poesia.

Como um barco, sem porto, eriça a sensível vela do corpo e, frágil,

o coração nos sirva de bússola:

os remos dispensa,

temos as mãos

para a navegação.

                               (OKAPI, p.37)

No livro Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo, o eu-lírico navega em pólens femininos, adormece em ventre de pescadores, descansa em paradisíacas ilhas, geografia incomensurável de sal, sol, peixes e mulheres-kiandas. “Peregrino das redes, os barcos contemplo” – declara o poeta, cuja escrita singra os caminhos índicos da poesia e das artes em Moçambique. Dialoga com a pintura de Gemuce, pintor da Ilha de Moçambique. Busca vozes poéticas anteriores que também cantaram essa Ilha e as integra em sua poesia, revelando seduções e encantamentos: Campos de Oliveira, Virgílio de Lemos, Rui Knopfli, Heliodoro Baptista, entre outros, cujo legado poético absorveu e recriou nas malhas de sua poesia.

Mesmos barcos se organiza em três partes. A primeira celebra diversos poetas moçambicanos. A segunda, intitulada “Mesmos Barcos”, com poemas, cuja forma se aproxima à da prosa, faz uma clara alusão a dois importantes poetas moçambicanos: Luis Carlos Patraquim e Eduardo White. A terceira, denominada “O Barco Encalhado”, é formada por um único poema, cujo título coincide com o desta parte, constituindo um tributo a Campos Oliveira, o primeiro poeta de Moçambique.

Okapi inicia a viagem poética que faz emergirem, do fundo da memória, vozes líricas do Índico e da Ilha de Moçambique, a “Ilha Dourada”, de Rui Knopfli, autor de A Ilha de Próspero, mítica ilha, cuja magia inspirou tantos poetas. “Língua: ilha ou corpo?”, poema ofertado a Virgílio de Lemos, faz referências a esse poeta, cuja obra poética sempre refletiu sobre o corpo e o erotismo da linguagem.

Nos livros de Sangare, misturam-se assombros, angústias, amores. A escrita de Okapi é uma viagem interminável por uma literatura erótica e intertextual, ou seja, pela memória e pela linguagem, uma vez que o eu-lírico percorre o sistema literário moçambicano, recuperando poetas do Índico. A voz lírica enunciadora dos poemas de Okapi se comporta como um Ulisses não de Ítaca, mas de afrodisíacas ilhas do norte de Moçambique, cercadas pelo salgado mar do Oriente.

O sujeito poético expressa uma relação erótica com a própria poesia. O corpo poético se torna barco “que lança redes que são letras”, criando uma escrita lírica que ilumina histórias antigas daquelas ilhas, captando sensações amorosas que apreendem cenas do outrora.

Mesmos barcos estremece passados, presentes, insularidades, tenebrosos mares ultrajados, ilhas revisitadas.

A poética de Sangare Okapi presta, assim, homenagem a grandes poetas anteriores: Craveirinha e Patraquim, registrando a relevância desses mais velhos poetas para a poesia moçambicana contemporânea.

Sangare Okapi precisa ser mais lido e conhecido no Brasil. A publicação de Mesmos barcos ou poemas da revisitação do corpo pela Editora Kapulana possibilita esse conhecimento, esse encontro com mais um poeta do Índico, com suas paisagens, gentes. Brindemos, pois, essa importante publicação!

Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2017.

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ensaísta e pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)

Citar como:
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “O legado índico da poesia moçambicana”. Prefácio in: OKAPI, Sangare. Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)

 

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Das margens: poesia, ainda – por Cíntia Machado de Campos Almeida

Na margem, o reencontro: nós e ‘camarada Patraka’ mais uma vez embaraçados na entremeadura dos versos entoados pela velha voz. Voz que ainda ressoa da rua de Lidemburgo, no subúrbio de Maputo, capital moçambicana. Velha voz, porém provavelmente nova para o leitor brasileiro que, pelo advento da série “Vozes da África”, da Editora Kapulana, poderá, enfim, (re)encontrar-se com significativos nomes da Literatura Africana de Língua Portuguesa.

O ‘Patraka’ a quem nos referimos, com permitido afeto, nasceu Luís Carlos Patraquim, em 26 de março de 1953 na antiga – e à época, ainda colonial – Lourenço Marques, hoje Maputo. Iniciou seus laços com as letras pela carreira jornalística na década de 1970, arriscando-se às searas literárias a partir do ano de 1980, quando da publicação de seu primeiro livro de poesias, Monção.

Para quem ainda não conhece seu (re)nome, uma advertência necessária: trata-se de um profano! Mas o leitor que agora, provavelmente, arregala os olhos, não precisa deixar-se arrebatar pelo espanto. Isso porque, ao conhecermos a obra poética de Patraquim, percebemos que uma das marcas fundamentais de sua escrita é promover profanações com sua poesia, segundo o conceito de ‘profanação’ defendido por Giorgio Agamben1. Para o filósofo italiano, ‘profanar’ significa ‘reusar’, restituir ao uso comum algo previamente sacralizado. Constituindo, pois, uma forma de libertação e de recriação da coisa profanada. Assim, percebemos que Patraquim profana a literatura moçambicana na medida em que a reinventa.

Em 1980, o poeta trouxe a público seu primeiro livro: Monção, inaugurando um novo lirismo intimista na literatura de seu país, o que veio a alicerçar a chamada ‘geração de 80’. O livro de estreia causou grande alarde: questionou-se a funcionalidade daquele estilo subjetivo de escrita num país em que a independência nacional havia sido proclamada apenas cinco anos antes e que experimentava o descompasso de uma casa nacional recém erguida, ainda em processo de construção. Afinal, para que – e para quem –  escrevia Luís Carlos Patraquim?

Desde 1980 até a presente publicação, o poeta inteirou nove livros de poesia – que, em termos cronológicos, equivalem a quase quatro décadas de um exercício lírico espaçado, porém contínuo. Até O cão na margem (2017), constituem os rastros de seu legado poético as obras Monção (1980), A inadiável viagem (1985), Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991), Mariscando luas (1992), Lidemburgo blues (1997), O osso côncavo e outros poemas (2004), Pneuma (2009) e O escuro anterior (2011).

 Na primeira fase, que se estende entre os anos de 1980 a 1991, ao cumprir uma jornada ainda bastante arraigada às paisagens exteriores, Patraquim reencontra-se com sua terra, ao sul da África. Na segunda fase, constituída pelos livros publicados entre 1992 e 2004, Patraquim reencontra-se com Maputo, seu subúrbio, a inesquecível rua de Lidemburgo, ainda – e para sempre – a abrigar a casa original, bem como as memórias que lá ainda teimavam em habitar.

Consideramos como terceira e – até a publicação de O cão na margem – última fase da poesia patraquimiana, a que se prenuncia pelos, então inéditos, versos de O osso côncavo e outros poemas (2004), e que se consolida com os dois últimos livros publicados pelo poeta até 2011. Eis aí um ciclo que nomeamos de intrapoética, certamente a mais interiorizada, hermética e fragmentada de todas as fases. No encalço das origens da própria poesia, o poeta reencontrou as suas: havia ‘aindas’ para além do breu.

Como se não bastasse profanar a literatura com suas ‘vagamundagens’ poéticas, Patraquim, desta vez, profana também o leitor, na medida em que nos encaminha para a margem da poesia. Com O cão na margem, o poeta evidencia que margear é também uma forma de profanar, pois é nela que o texto nos mostra que a linha não basta. É onde a página se transforma – trans-borda – em um não caber.

Seria o início de uma nova fase de sua poesia? Quem o sabe? Início ou não, toda margem pressupõe uma continuação. Aceitemos o convite do velho-novo poeta, a fim de margearmos a literatura junto a esse cão, em busca de novos começos e reencontros, ao som de uma velha-nova voz de Moçambique, que se pretende, sobretudo, como a voz de um mundo inteiro.

É chegada a hora de o Brasil descobrir para que e para quem escreve Luís Carlos Patraquim.

Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 2017.

Cíntia Machado de Campos Almeida – Doutora em Letras Vernáculas, especialidade em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, pela Faculdade de Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Citar como:
ALMEIDA, Cíntia Machado de Campos. “Das margens: poesia, ainda”. Prefácio in: PATRAQUIM, Luís Carlos. O cão na margem. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)

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Miçangas – Ilustrações de Luís Cardoso em “O casamento misterioso de Mwidja”, de Alexandre Dunduro

Miçanga é uma pequena conta colorida, em formato esférico, com um furo no meio. Pode ser de material natural ou artificial. Há miçangas feitas de sementes, conchas, vidro, plástico e de outros materiais coloridos.

No século XVI, em alguns países da África, as miçangas serviram como moeda de troca. O mesmo ocorreu na Europa, alguns séculos mais tarde, quando miçangas de vidro eram utilizadas no comércio de escravos.

É possível unir várias miçangas passando um fio entre seus furos. Os fios utilizados podem ser também de diferentes materiais como fibras de plantas, linha, plástico, elástico e arame.

Ao combinar esses materiais, os artesãos criam objetos com fins diferentes como de adorno pessoal (pulseiras, colares, brincos, enfeites para os cabelos); vestimentas (roupas e fantasias bordadas com miçangas); decoração (esculturas, quadros, cortinas, almofadas); e objetos de celebração (adornos e utensílios religiosos).

Para ilustrar o livro O casamento misterioso de Mwidja, o artista moçambicano Orlando Mondlane criou peças de artesanato com miçangas entrelaçadas por fios de metal, que representam as pessoas, animais, paisagens e moradias que fazem parte da história. Luís Cardoso, também artista moçambicano, fotografou a arte de Mondlane para compor o conjunto de ilustrações do livro.

Uma curiosidade: no Brasil, escreve-se “miçanga”, com “ç”. Nos outros países de língua portuguesa, escreve-se “missanga”, com “ss”.

Citar como:
DUNDURO, Alexandre. O casamento misterioso de Mwidja. Ilustrações de Luís Cardoso e artesanato de Orlando Mondlane. São Paulo: Kapulana, 2017 [Contos de Moçambique, v. 4].

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Orgia dos Loucos: Moçambique sem saída de emergência, por Vanessa Ribeiro Teixeira

Orgia dos loucos, de Ungulani Ba Ka Khosa, publicado em 1990, funciona como um caleidoscópio vertiginoso sobre a realidade de Moçambique nas décadas que se seguiram à Independência. A obra, composta por nove contos, ficcionaliza as experiências de homens e mulheres marcados pela escassez, pela guerra, pelo aviltamento da cultura endógena, pela distopia. Deparamo-nos com uma série de escritos aparentemente desconexos, mas que logo se revelam profundamente dialogantes sob uma importante perspectiva: tudo parece estar “fora da ordem”.

“O prémio”, conto que abre o livro, focaliza os princípios de uma política assistencialista, que tem data, hora e local para se fazer presente, e retrata o desespero de uma jovem mulher na sua tentativa de adiar o parto iminente, vislumbrando as benesses destinadas aos primeiros nascidos de Junho, o emblemático mês da Independência, a despeito das urgências do corpo e da nova vida que se anuncia. Do mar à terra firme, da terra ao rio, a fome e a morte são a herança de uma família. O infortúnio se torna regra, entrecortado por raros lampejos de calmaria e fartura. Esses são os elementos norteadores de “A praga”. Por sua vez, a sensação de um tempo parado, alimentado por uma rotina tão decadente quanto inalterável, dá o tom de “A solidão do Senhor Matias”. O velho comerciante branco, reduzido aos limites de sua propriedade em ruínas e à convivência com seu velho empregado negro, amarga a impossibilidade de reencontrar o caminho do mar, rumo à Europa, visto sua alma ter sido amarrada à terra que ele mesmo ajudou a violentar e explorar.

A solidão também “sorri” para a vida de Dolores, protagonista das linhas dispersas de “Fragmentos de um diário”. A narrativa, tecida em primeira pessoa, abre-nos as portas da intimidade diária de uma mulher que, através de suas reflexões, potencializa a sua presença, mesmo quando ausente. A personagem, suicida e homicida, é reconduzida à vida através do discurso e traduz sua existência numa frase: “A vida é uma estupidez, uma anedota permanente, uma passarela de esquizofrénicos.” (p. 27). Tal declaração surge como mote para o desenrolar da trama de “Orgia dos loucos”, conto que dá nome ao livro. A realidade que se anuncia é tão avessa à ideia de humanidade, que só um estado alterado de consciência poderia com ela conviver. Por entre os escombros de seres que, um dia, foram homens, um jovem procura por seu pai. O corpo do mais velho está vivo, mas a vida não existe mais: “Ninguém está vivo. Estamos mortos. Somos espíritos angustiados à porta duma sepultura decente.” (p. 35)

A solidão e a morte, a solidão da morte, são experiências extremamente democráticas entre os espaços moçambicanos, desde os grandes centros urbanos até às recônditas províncias do interior. É o que “Morte inesperada” e “Exorcismo” comprovam. No primeiro conto, a modernidade mal gerida, representada por um elevador num país subdesenvolvido, vitima mais um homem. A imagem da cabeça a ser esmagada pela máquina alegoriza a força das estruturas de poder que se impõem cotidianamente, esmagando corpos e esperanças. Já em “Exorcismo”, as bases do poder castrador são estremecidas pela insurgência de forças sobrenaturais e veem-se obrigadas a ceder espaço a um saber ancestral, evocado quando o filho de um administrador local desaparece misteriosamente e seu corpo só é devolvido pelas águas após uma sequência de rituais classificados como “obscurantistas”. A cristalização dessa lógica de poder ganha colorações satíricas nas linhas de “A revolta”, quando um governante é tomado pela cólera ao deparar-se com uma folha de jornal onde sua foto estava estampada e “borrada por excrementos de desconhecida origem”. Diante da pergunta “Eu sou merda?”, o povo permanece calado. Apesar dos homens, o Homem e a Natureza resistem. Eis a mensagem do último conto, “Fábula do futuro”, que, numa narrativa articulada em três parágrafos, aponta para alguma esperança nos dias vindouros, inspirada pela constância democrática da natureza.       

Em Orgia dos loucos, todos os passos parecem caminhar para o fim, realidade sugerida, aliás, na recorrência de imagens e processos escatológicos que tecem os contos. Paradoxalmente, a experiência caótica do fim dos corpos, fim dos homens, fim do mundo, aponta, pela própria essência cíclica da vida, para a construção de outros começos.

Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2016.

Vanessa Ribeiro Teixeira – Universidade Federal do Rio de Janeiro / UNIGRANRIO

Citar como:
TEIXEIRA, Vanessa Ribeiro.  “Orgia dos loucos: Moçambique sem saída de emergência”. 
Prefácio in: KHOSA, Ungulani Ba Ka. Orgia dos loucos. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África)

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Artesanato, desenho, fotografia e ilustração digital – ilustrações de Luís Cardoso e Tomás Muchanga em “A viagem”, de Tatiana Pinto

Artesanato, desenho, fotografia, ilustração digital, manipulação e tratamento de imagens por computador são as diversas formas de arte utilizadas em A viagem para escapar do conceito mais comum de ilustração bidimensional.

O material utilizado são bonequinhos de arame revestidos de pequenas tiras de folhas secas de massaroca (milho), vestidos com pedacinhos de pano colorido que imitam a capulana, tradicional tecido moçambicano. Os bonequinhos, típicos da região Sul de Moçambique, usam alguns instrumentos de trabalho e utensílios, como pilão, cabaças, cestos e potes de barro.

A seguir, alguns dos passos percorridos por LUÍS CARDOSO, artista plástico, e TOMÁS MUCHANGA, um dos criadores desses “bonequinhos”:

PASSO 1 (caracterização) – Definiram e caracterizaram as personagens da história.

PASSO 2 (fotografia) – Os bonecos foram colocados nas posições de cada cena e fotografados em fundo infinito. Texturas de folhas secas de massaroca foram também fotografadas.

PASSO 3 (tratamento de imagem) – As fotografias foram tratadas em computador, as cores foram corrigidas e o fundo de cada uma delas foi eliminado (para permitir a montagem dos ambientes das ilustrações por trás dos bonecos).

PASSO 4 (desenho) – Para a produção dos cenários (casas, árvores, montanhas, pássaros, água, etc.), foram feitos desenhos à parte, digitalizados e trabalhados em computador, em que foram aplicadas as texturas das folhas de massaroca.

O resultado é um belo conjunto de ilustrações que valoriza a arte e os artistas e de Moçambique.

Citar como:
PINTO, Tatiana. A viagem. Ilustrações de Luís Cardoso e artesanato de Tomás Muchanga. São Paulo: Kapulana, 2016 [Contos de Moçambique, v. 3].

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Noémia de Sousa: a metafísica do grito, por Francisco Noa

Posfácio das edições moçambicanas de Sangue negro, de Noémia de Sousa: 2001 (AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos), e 2011 (Ed. Marimbique), revisto pelo autor Francisco Noa, em junho de 2016, para a Editora Kapulana.

 

            Se há um adjetivo que, à partida, pode caracterizar a criação poética de Noémia de Sousa, esse adjetivo é: emocionada. Porém, com esta catalogação, corremos o risco de enclausurar a escrita desta poetisa, pioneira voz feminina das letras moçambicanas, numa etiqueta que, desde logo, se apresenta como uma marca desqualificadora. Isto, se tivermos em linha de conta toda uma prática poética e metapoética que instituiu e consagrou o lirismo da modernidade.

            Entre outros, pensamos no dandysme flanante e mundano de Baudelaire, no desregramento das sensações em Rimbaud, na dissolução do sujeito e no intelectualismo em Mallarmé, no distanciamento dramático em T.S. Eliot, no fingimento poético em Fernando Pessoa, em suma, no vitalismo criador que fez da poesia moderna o espaço do incessante e implacável estilhaçamento e de negação da subjetividade.

            Porém, tendo em conta o acento personalizado da poesia de Noémia, a pulsação vibrante da interioridade do sujeito poético e a glorificação da emoção, até que ponto a sua escrita não se institui como festiva e arrogante recusa de uma tradição cristalizada e disseminada no Ocidente?

            Como que a confirmá-lo, aí temos todo um conjunto de recursos linguísticos (juntamente com a língua portuguesa, intersectam-se irreverentemente registos da língua ronga e inglesa), estilísticos (a prevalência da adjetivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação) e temáticos (a revolta, a valorização racial e cultural, a infância, a esperança, a angústia, a injustiça) que nos fazem claramente perceber que, por detrás da voz enunciatória de cada um dos poemas de Sangue Negro, se insinua a consciência de uma subjetividade dilacerada:

 

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas

nossa voz gorda de miséria,

nossa voz arrastando grilhetas

(“Nossa Voz”, in NOSSA VOZ)

 

ou indignada: “Nós somos sombras para os vossos olhos, somos fantasmas” (“Passe”), inconformada:

 

 

Queria derrubar meu jazigo de alvenaria

Queria descer aos trilhos lamacentos,

Queria sentir o aguilhão da mesma revolta,

Queria sentir esse gosto indefinível de luta,

Queria sofrer e gemer e lutar

Para conquistar a Vida!

(“Poema”, in BIOGRAFIA)

 

            Consciência que pode também ser nostálgica:

 

Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação

dia a dia mais insatisfeita.

Eles me encheram a infância do sol que brilhou

no dia em que nasci.

(“Poema da Infância Distante”, in BIOGRAFIA)

 

quando não, confiante: “Por isso eu CREIO que um dia / o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.”, etc.

            Tal como a maior parte dos escritores africanos da sua época – como o serão, afinal, os das épocas subsequentes, conhecido e reconhecido que os períodos pós-independentistas, de estabelecimento das democracias e da mundialização do planeta continuam a exigir que cada vez mais as vozes dos escritores em África não emudeçam —, a voz poética de Noémia de Sousa transcende, em largos momentos, os limites egotistas, espaciais e temporais, instituindo-se, de certo modo, como uma voz de aspiração plural e universalista. Para Pires Laranjeira (1995: 499), trata-se da “ânsia de absoluto, a mística de fusão com o povo e o Continente”.

            Concorrem para tal aspiração, o recurso à apóstrofe afetiva (“E então, / tua voz, minha irmã americana, / veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão…”, em “A Billie Holiday, cantora”), ao sentimento coletivo (“E agora, sem desespero nem esperança, / seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade…”, em “Moças das Docas”), ao culto da utopia (“Poema para um Amor Futuro”, “Se este Poema fosse”…), bem como aos mitos da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do progresso.

            Estamos, por conseguinte, perante o pendor assumidamente não-ensimesmado, não umbilicalista da escrita poética de Noémia que institui uma voluptuosa emotividade raciocinante e combativa. O sujeito parece emergir aí como efeito do seu confronto com o que lhe é exterior, desencadeando toda uma corrente de consciência responsável pelo tom declamatório e pelo virtuosismo apelativo desta poesia. A propósito, Ana Mafalda Leite (1998: 107) considera que “toda a poesia da autora aspira a ser vocal, escapando assim ao exílio silencioso da escrita”.

            E as encenações dialógicas que aí se assistem, se é verdade que contribuem para a carnavalização da linguagem, segundo Bakhtine, por outro lado, concorrem, para uma subjetividade que se insinua, inconformada, e que atravessa e unifica estilística e estruturalmente os poemas de Sangue Negro.

            É, pois, na atmosfera ritualizante e celebratória do poema que a escrita de Noémia de Sousa, melódica e compassada, num ritmo por vezes inebriante, fustiga:

 

Ó carrasco de olhos tortos

de dentes afiados de antropófago

e brutas mãos de orango

(“Poema”, in SANGUE NEGRO)

 

ou venera

Ó minha Mãe África, ngoma pagã,

escrava sensual,

mítica, sortílega – perdoa!

(“Sangue Negro”, in SANGUE NEGRO)

 

            Divindade maior desta cosmologia é a liberdade ansiada (e ensaiada) e o exercício da palavra como instrumento consciencializador e aguerrido. E a expressão arrebatada se, por um lado, individualiza a expressão poética em Noémia, por outro, confere-lhe uma dimensão majestática e que faz do sujeito rapsodo das dores, dos anseios, da revolta, das resignações e dos mitos dos flagelados irmanados por um destino comum determinado pela ocupação colonial.

            Enquanto expressão singular de negritude, a voz de Noémia não corresponde necessariamente à exaltação de um narcisismo gratuito de ser negro, mas trata-se da projeção do ser negro enquanto objeto da sujeição económica, política, cultural ou racial. E a história vai nos ensinando que as duas condições (a biológica e a instituída) se ligam de forma perversa e tautológica. Como diria Frantz Fanon, é-se negro porque se é dominado e é-se dominado porque se é negro.

            Entretanto, traduzindo um claro cepticismo face às estratégias adoptadas pelo movimento da Negritude, a partir dos anos 30, Wole Soyinka defenderia que um tigre não proclama a sua tigritude, mas ataca. Isto é, o autor nigeriano interpretava essa atitude própria das franjas de africanos que, em contacto com a cultura e a civilização ocidentais, desenvolviam uma indisfarçável e sofrida crise de identidade. Este era um facto que, do seu ponto de vista, não parecia afetar a maioria do povo africano que, por isso mesmo, não sentia necessidade de provar o valor da raça e da cultura. E a poesia de Noémia de Sousa é, neste aspecto, paradigmática.

            O pendor apelativo e messiânico que caracteriza o seu verso, a exaltação dos valores negro-africanos, o afrontamento corrosivo e irónico às imagens estereotipadas do europeu sobre os africanos e a (re)constituição da sua própria imagem identitária são algumas das marcas mais evidentes do alinhamento estético da escrita da Noémia que, no essencial, reivindica um profundo e ilimitado sentido humanista.

            Face à conformação narrativa que caracteriza a poesia de Noémia de Sousa (tal como a de José Craveirinha), e a constituição proléptica e profética da ideia de nação, estamos, por conseguinte, perante uma escrita que faz depender essa nação ideada à forma como a própria poesia se constrói. Isto, em função, portanto, de uma reverbativa dimensão estética, ética, cultural e civilizacional.

            Estrutura político-cultural em gestação, ou, simplesmente formação discursiva, segundo Michel Foucault, a nação decorre de uma recriação mítica que faz apelo aos valores de raça, geografia, história, tradição ou língua. E é aí, entre a sacralização da ancestralidade e a reiteração enunciativa dos valores acima mencionados, isto é, entre aquilo que Homi Bhabha (1995) distingue como pedagógico e como performativo, é que a ideia de nação adquire, em Noémia, uma materialidade e uma arquitetura singulares.

            Plena de vitalidade, a poesia de Noémia celebra a própria poesia naquilo que ela significa em termos de melodia, ritmo,

 

E os corpos surgiram vitoriosos,

sambando e chispando,

dançando, dançando …

(“Samba”, in MUNHUANA 1951)

 

e sensações

 

a luz do nosso sol,

a lua dos xingombelas,

o calor do lume,

a palhota onde vivemos,

a machamba que nos dá o pão!

(“Súplica”, in NOSSA VOZ)

 

            E é na forma exuberante como se (re)apropria do mundo que a envolve e do que flui no interior quer do sujeito individual quer do sujeito coletivo, que o “género Noémia de Sousa” se vai definindo. Instituindo uma temporalidade própria e muito marcada – passado gratificante, presente sofrido, futuro optimista —, Sangue Negro inscreve nos interstícios de cada verso o seu segmento eventualmente mais emblemático e controverso: um intenso clamor que prenuncia um silêncio confrangedor que vai praticamente acompanhar a autora até ao final dos seus dias.

            Se, por um lado, com o olhar centrado na infância se reconstitui idílica e feericamente o Mito da Idade de Ouro, ou do Paraíso Perdido, por outro, ao projetar-se utopicamente para o futuro, morada da solução harmoniosa e palingenética, esta poesia tem no presente, um espaço enunciatório nuclear, ao mesmo tempo de padecimento, mas também propiciatório e invocador do que existe quer no foro privado quer como bem coletivo.

            Atentando, entretanto, na forma como o futuro e o presente condicionam a voz poética que se configura como consciência plural, obviamente com um sentido coletivo e partilhado, é, contudo, na sua relação com o passado que tudo se radicaliza em relação à forma como essa mesma voz se apresenta. Trata-se, pois, de uma subjetividade envolta num manto de uma nostalgia envolvente, emergindo altiva no exercício reconstituinte conduzido pela memória:

 

– Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,

Solta e feliz:

meninos negros e mulatos, brancos e indianos,

[…]

Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada

e boquiaberta de “Karingana ua karingana”

das histórias da cocuana do Maputo

(“Poema da Infância Distante”, in BIOGRAFIA)

 

            Afinal, como diria Emmanuel Levinas (1988), é pela memória que o sujeito se funda a posteriori, retroativamente. Isto é, assume hoje o que, no passado absoluto da origem, não tinha sujeito para ser recebido e que, a partir de então, pesava como uma fatalidade:

 

Quando eu nasci…

[…]

No meio desta calma fui lançada ao mundo,

Já com meu estigma.

(“Poema da Infância Distante”, in BIOGRAFIA)

 

            Ainda, na percepção do filósofo franco-lituano, é a memória que realiza a impossibilidade e que, como inversão do tempo histórico, se firma como a essência da interioridade. Neste particular, a poesia de Noémia desfaz as asserções totalitárias que fazem dela pura expressão de uma alma coletiva onde a subjetividade está ausente. Subjetividade, que se institui como intersubjetividade, que se revê e se revitaliza na plenitude da sua condição feminina.

            Para todos os efeitos, na sua salteante dialética com a temporalidade, a voz de Sangue Negro é uma voz que se propaga sonora, profetizando o seu próprio apagamento. Isto é, a utopia, em toda a sua imprevisibilidade, que se torna silêncio e morte. Paradoxalmente, ou não, é justamente aí, ou a partir daí, porque se transcende, que a poesia de Noémia de Sousa assume a sua condição de imortalidade: a crença, mesmo que irreligiosa, na palavra que se diz, que sonha e faz sonhar, que dói e faz doer, que reflete e faz refletir, mas que liberta mesmo que na contingente e precária duração de um grito que deixa o seu eco repercutindo-se no tempo e no espaço.

Maputo, outubro de 2000.

Francisco Noa
Pesquisador, ensaísta e Professor Doutor em Literaturas Africanas, na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Nampula, Moçambique.

Citar como:
NOA, Francisco. “Noémia de Sousa: a metafísica do grito”. In: SOUSA, Noémia. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016 [Vozes da África]

 

 

Publicado em

A mãe dos poetas moçambicanos, por Nelson Saúte

Introdução da 1a. edição moçambicana de Sangue negro, de Noémia de Sousa: 2011 (Ed. Marimbique), revista pelo autor Nelson Saúte, em junho de 2016, para a Editora Kapulana.

 

Para a mana Gina
e em memória da nossa tia Camila

            Eu tinha 15 anos e o poema dizia: “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço./Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,/viemos do outro lado da cidade/com nossos olhos espantados,/nossas almas trancadas,/nossos corpos submissos escancarados./De mãos ávidas e vazias,/de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,/de corações amarrados de repulsa,/descemos atraídas pelas luzes da cidade,/acenando convites aliciantes/como sinais luminosos na noite”. Passados estes anos não sei proclamar o meu espanto. Mas lembro que sobre a retina daquele rapaz que eu era, na incauta leitura de uma antologia de Orlando Mendes (Sobre Literatura Moçambicana), ficou a reverberar um nome estranho.

            Quem seria essa mulher que se escondia no nome de poeta Noémia de Sousa? – interrogou-se o menino que fui. Naquele então a literatura que conhecia era sobretudo o pecúlio trazido no ombro dos guerrilheiros. Era essa a poesia que sobrava das artes de declamação experimentada nos pátios das escolas, onde fomos continuadores da revolução e exaltadores de todas as utopias – tudo o que agora está inscrito no refluxo dos nossos sonhos.

            Noémia de Sousa não constava no meu bornal de amador de poetas. Tinha lido, tinha dito, lá no alto da minha inocência, versos da chamada – e aclamada – poesia de combate. Mas desconhecia em absoluto esta mulher.

            As buscas começaram imediatamente. Quem era Noémia de Sousa, autora daqueles versos frenéticos, daqueles versos longos e belos, que falava de moças fugitivas dos bairros onde estavam acantonados na mais vil miséria, das Munhuanas e dos Xipamanines, do outro lado da cidade, com os olhos espantados?

               Carolina Noémia Abranches de Sousa era o nome dela. Nascera a 20 de setembro de 1926, ali na Catembe, numa casa à beira do Índico, albergue que seria celebrado num dos seus poemas mais emblemáticos.

               Não tardou a descobrir que esta mulher escrevera apenas durante três anos, o bastante para incendiar o rastilho da poesia que reivindicava a personalidade dos oprimidos, que fundava a literatura dos marginalizados. Tudo isto entre 1948 e 1951. Hoje, neste ano prodigioso de 2001, vemo-la aqui, em livro, na celebração dos 50 anos, sobre o silêncio. Silêncio quebrado em 1986 aquando da morte de Samora Machel, reincidência praticada anos depois, num dos textos mais belos e comoventes, que Carlos Pinto Coelho fez publicar no seu álbum de fotografias A meu ver.

               Noémia viveu na Catembe, do outro lado da baía de Maputo, até aos seis anos, quando se mudou para a então Lourenço Marques. O pai, funcionário público, era originário de uma família luso-afro-goesa da Ilha de Moçambique. Foi ele que a ensinaria a ler aos quatro anos, movido provavelmente pelas mesmas ideias de progresso que animavam personalidades como Estácio Dias (pai de João Dias) ou os Albasini, com quem convivia. Sua mãe, nascida na Bela Vista, para lá da Catembe, era filha de um alemão (Max Bruheim), caçador e negociante, e da filha de um chefe ronga, Belenguana.

               A morte do pai, ocorrida quando Noémia tinha oito anos, veio transformar as condições de vida da família, que vivia até então relativamente desafogada, vendo-se a mãe da poetisa a braços com o sustento de seis filhos, dois deles a estudar em Portugal, com a ajuda de uma tia paterna. Aos 16 anos, Noémia de Sousa teve que se empregar, mas estudava à noite na Escola Técnica, onde frequentava o curso de Comércio.

               A vocação da escrita foi precoce, iniciara-se fazendo jornais de parede com os irmãos. O mano Nuno, um dia, veio confidenciar-lhe que havia um amigo – Antero, a quem dedica um dos seus poemas iniciais – que estava num grupo de outros rapazes que tinham tomado de assalto, por assim dizer, o jornal da Mocidade Portuguesa, sob a direção do poeta Virgílio de Lemos (o mesmo que mais tarde iria editar a folha Msaho de poesia, que estava nos antípodas do que Noémia de Sousa poderia defender) e que solicitava uma colaboração sua.

               Noémia escreveu o “Poema ao meu irmão negro”. Assinou-o com as iniciais: N.S. Provocou alvoroço. Quem seria NS? A esta distância este título parece inocente, mas quem atentar para a época não terá dificuldades em sublinhar a coragem inusitada da jovem Noémia de Sousa.

               Cassiano Caldas, funcionário dos CFM, ligado ao projeto Itinerário, onde colaboraram muitos dos poetas que se haveriam de consagrar no período anterior à Independência de Moçambique, deu-lhe a conhecer a revista Vértice. Foi nessa revista que leu, pela primeira vez, Nicolás Guillén, o poeta cubano do Songoro Cosongo. Leu depois muitos livros sobre a vida dos negros americanos em tradução brasileira. Entre a situação do Sul dos EUA e a situação em Moçambique daquele tempo, Noémia conseguia estabelecer similitudes.

               Longe consagrava-se a Negritude, mas Noémia não a conhecia. Foi através da afirmação dos valores dos oprimidos que a poetisa se sentiu perto das ideias defendidas, na época, por pessoas como Leopold Senghor ou Aime Cesaire (de quem veio a traduzir mais tarde o famoso “Discurso sobre o colonialismo”). Mas não os lera, nem outros dos que nela pontificavam. Ela vivia distante na sua Munhuana, lendo sobretudo os escritores neorrealistas portugueses, que lhe chegaram pela mão de Cassiano Caldas.

               Ao tempo que Norton de Matos foi candidato às presidenciais em Portugal, Noémia de Sousa começou a frequentar outros jovens que despontavam para as artes e letras em Moçambique: Ruy Guerra, Ricardo Rangel, entre outros.

               João Mendes, irmão do escritor Orlando Mendes, era um congregador de jovens e utopias, ajudando a mapear uma nova realidade, distante da estratificação racial. Não escrevia, unia. A sua atividade, da qual resultava a junção dos rapazes da Polana, chamemos-lhe aristocrática, à Mafalala empobrecida, valeu-lhe a deportação. João Mendes é um dos homenageados pela poesia de Noémia de Sousa.

               Noémia iniciou a sua colaboração com O Brado Africano quando se procurava terminar o projeto da Associação Africana. Entrincheirados na defesa da causa estavam: Cassiano Caldas, Henrique Dahan, Brassard, Miguel da Mata, Víctor Santos (irmão de Marcelino dos Santos), Nobre de Melo, Amália Ringler, Dolores Lopes, entre outros. Estes angariavam dinheiro para finalizar as obras da Associação. Noémia de Sousa escrevia na “Página Feminina” de O Brado. Publicava poemas.

               N’ O Brado Africano ainda ressoava o nome de um Rui de Noronha, a quem Noémia via passar em frente de sua casa. Nunca falou com ele. Também não conviveu com João Dias, outro dos nomes tutelares da nossa literatura. Contudo, a jovem não se esqueceu dos papéis que ambos desempenharam na fundação da literatura moçambicana, de que é um dos mitos fundadores.

            Naquele tempo não se podia imaginar dispositivos comunicacionais como a televisão. A caixinha mágica não chegara ainda, mas frequentava-se o cinema, sobretudo as matinés, no Scala, no Gil Vicente ou no Varietá. Ouvia-se música em grafonolas. Conspirava-se. Noémia de Sousa cresceu nesse ambiente de reivindicação.

               Poder-se-ia considerar assim uma nota que redigiu para O Brado Africano, referindo-se a um jovem moçambicano que motivava uma forte manifestação de solidariedade na África do Sul por não lhe ter sido concedida a prorrogação do visto de residência temporária pelo Governo de Malan, o que o impediu de prosseguir os estudos na Universidade de Witwatersrand. Esse jovem chamava-se Eduardo Chivambo Mondlane. Conheceu-a depois, regressado a Moçambique, antes de embarcar para Lisboa, onde permaneceu um ano antes de rumar para os Estados Unidos da América.

               Noémia, que participara nas atividades do MUD-Juvenil, que distribuíra panfletos à noite com João Mendes, que escrevera cartas subversivas, que redigira artigos cortados pela censura, que conspirara, não escapou à prisão. O cerco apertava-se. Em 1951 teve de partir, seguindo o extenuante caminho do exílio e deixando atrás de si, na PIDE, o Processo 2756 CI (2).

               Mário de Andrade, quando soube que ela ansiava partir, escreveu-lhe encorajando-a. Desembarca em Lisboa quando a “geração da utopia” (no dizer de Pepetela) sondava as independências. O Centro de Estudos Africanos, do qual fez parte, funcionava na rua do Vale, 37, casa da Tia Andreza, tia de Alda do Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe, companheira de jornada.

               Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro eram os nomes mais conhecidos da intelectualidade africana em Portugal. Com eles Noémia de Sousa partilhou as ações que estão na base da fundação dos movimentos de libertação de cada país. Este período precisa de ser melhor cotejado, mas, tanto quanto sabemos, a participação de Noémia não foi episódica. Antes pelo contrário, foi ativa.

               Noémia de Sousa foi companheira de jornada destes nacionalistas. Quando a PIDE cerceou o pouco espaço que tinham de intervenção, os jovens decidiram-se por França, onde aliás Noémia irá buscar refúgio da ditadura, com uma filha às costas – Virgínia Soares (ou melhor, Gina). Saltou a fronteira, galgou os Pirinéus e alcançou a liberdade. Casara-se em 1962 com o poeta Gualter Soares.

               Marcelino dos Santos conseguiu emprego no Consulado de Marrocos em Paris. Entretanto, Lilinho Micaia partiu para outra frente de combate, em Dar-es-Salaam. Vera Micaia (quero eu dizer: Noémia de Sousa) atardou-se por Paris até 1973, ano em que decide regressar a Portugal, para preencher uma vaga na agência Reuter. Não adivinhava que a revolução estava à porta.

            No dia 25 de Junho de 1975 estava na sua casa de Algés na companhia dos legendários futebolistas Eusébio da Silva Ferreira e Hilário da Conceição e respectivas mulheres. Não fora convidada para a Independência. Anos mais tarde, na mesma casa, havia de me confidenciar que tal facto a deixara magoada.

               Trinta e três anos depois da partida, regressa à grande casa deitada à beira mar. Essa “casa” talvez não fosse apenas a casa da Catembe, talvez fosse Moçambique ou mesmo África. Foi um reencontro mediado por lágrimas, tremendamente emocionado. Há um poema onde ela intenta o sonho: “Um dia o sol inundará a vida e será como uma nova infância raiando para todos”. Eram os anos da bicha nos talhos pela madrugada, do carapau de Angola cozido e recozido, da farinha amarela, do repolho feito de todas as formas. Eram os anos da crise, da falta de luz, da falta de água. Foi no tempo em que o desespero se apoderava dos moçambicanos. Era o tempo em que a revolução expulsava os bastardos para o Niassa. Anos 80! Foi quando Noémia visitou a terra. A pátria.

               Noémia de Sousa estava já na condição de um mito, um mito afirmado nos armoriais da literatura moçambicana. Seus poemas tinham sido adoptados para estudos nos compêndios da escola da FRELIMO na luta armada e agora eram lidos nas escolas moçambicanas. Seu legado tinha sido recuperado pelos poetas de outras pátrias como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe.

               Entretanto O Brado Africano, Itinerário, Msaho, Mensagem (em Luanda), Notícia de Bloqueio (no Porto), Moçambique 58, Vértice, entre outras publicações moçambicanas e estrangeiras haviam-na publicado com ênfase.

               Mas também Carolina Noémia Abranches de Sousa, aliás Noémia de Sousa, comparecera nas antologias: Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, em 1953, veja-se a que tempos!, uma antologia organizada por dois saudosos companheiros de jornada literária e de luta cívica: Francisco José Tenreiro (poeta são-tomense de grande quilate) e Mário Pinto de Andrade (o historiador, o intelectual, sobretudo a consciência crítica desta “geração da utopia”, para pilhar uma vez mais a expressão do Pepetela).

               Cinco anos depois da edição deste caderno, que era singularmente dedicado ao poeta cubano de Songoro Cosongo, que vivia exilado em Paris, longe da sua La Habana, onde ainda sobrevivia Fulgêncio Batista, que rapidamente seria expulso por Fidel Castro, “Che” Guevara e outros guerrilheiros que desceram da Sierra Maestra – Nicolás Guillén –, viria a lume Poesia Negra de Expressão Portuguesa, desta feita editada em Paris, para onde fugira exilado o seu organizador – Mário Pinto de Andrade.

               Na altura, Mário de Andrade montara banca na Présence Africaine, importante publicação no contexto da afirmação dos valores dos povos mudos da História. Ano depois, em 1959, a Casa dos Estudantes do Império (CEI), que tinha uma atividade editorial significativa, responsável pela revelação de grandes nomes da literatura africana de língua portuguesa – José Craveirinha lá se havia de estrear em livro com Chigubo em 1964 – faz editar a antologia Poesia em Moçambique (separata da Mensagem), onde Noémia de Sousa não é ignorada.

               A mesma CEI editará em 1960 e 1962 duas antologias intituladas Poesia de Moçambique, ambas prefaciadas por Alfredo Margarido, que estão na origem de uma polémica, uma das mais interessantes da época, desencadeadas por Eugénio Lisboa, que praticava já um juízo crítico cáustico e cauterizante.

               Noémia de Sousa era já um nome afirmado a despeito do facto de ser inédita em livro próprio. Lida e seguida não só em Moçambique, mas em outros países onde uma visão da literatura, como instrumento de confrontação ideológica, tinha lugar.

               Outras antologias importantes que recolhem os seus poemas: Antologia Temática da Poesia Africana – Na noite grávida de punhais, organizada também por Mário Pinto de Andrade. Dez anos depois, em 1985, Manuel Ferreira acolheu-a em No reino de Caliban III, antologia dedicada à poesia de Moçambique. Aliás, convirá dizer, como testemunho para o futuro, que Manuel Ferreira foi dos primeiros a tentar publicar Noémia de Sousa em livro. A poetisa, avessa à publicação, alegou que queria que seus poemas fossem, antes de tudo, primordialmente editados em Moçambique, onde é estudada nas escolas, lida através de textos avulsos que circulam, de mão em mão, fotocopiados, policopiados. A supracitada antologia de Orlando Mandes refere-a. Na Antologia da Nova Poesia Moçambicana, que eu havia de coorganizar com Fátima Mendonça, editada pela AEMO em 1993, coligimos os versos a Samora Machel, feitos a pedido do sobrinho Camilo de Sousa, para um documentário sobre o Presidente.

               Há 15 anos precisamente, quando Noémia completava 60 anos, escrevi Carta a Noémia de Sousa. O texto é incipiente mas foi recolhido num dos manuais escolares do nosso ensino secundário. Foi lido na Rádio Moçambique no dia 20 de setembro de 1986. Mandei-o à “Gazeta de Artes e Letras” da revista Tempo. O coordenador, meu amigo Gilberto Matusse, esqueceu-o na gaveta. Contudo, um ano depois, havia de publicá-lo.

               A primeira vez que aterro em Lisboa, cometo a ousadia de telefonar a Noémia. Levava comigo o seu número de telefone, dado pela Fátima Mendonça. Começa tudo aí, nesse encontro em Algés, festejando a nossa Independência – era Junho! –, comendo feijoada e lendo Carlos Drummond de Andrade. Nos anos que em Portugal, errei como estudante, fui visita constante de Noémia de Sousa. Hoje, quando lá vou, não posso regressar sem a ver.

               Em todos estes anos insisti, como o fizeram muitos, na edição dos seus poemas. Noémia arranjou todos os subterfúgios, mas há alguns anos, depois de ter recusado convites de Manuel Ferreira, Michel Laban, entre outros, ela acedeu publicá-los.

               Houve diversas iniciativas para o fazer através da Associação dos Escritores Moçambicanos, a que estiveram ligados primeiro Rui Nogar e Calane da Silva, depois Leite de Vasconcelos com Fátima Mendonça e Júlio Navarro.

               Não se concretizaram estas iniciativas (tratava-se, sobretudo, de fixar o texto definitivo e obter assentimento da poeta em publicar), mas Noémia reconheceu finalmente que a sua modéstia não deveria constituir impedimento para a publicação do livro – o que para muitos permanecia inexplicável – e confiou-me a grata tarefa de organizar a edição do mesmo.

               Na altura, Rui Knopfli – foi Noémia de Sousa quem mo apresentou, em 1989, tantas vezes confidenciei a minha admiração por ele! – ficou encarregado do prefácio. Knopfli exilou-se definitivamente deste reino sem ter escrito o texto.

               Cinquenta anos depois do abandono da escrita, temos o beneplácito dos deuses e este Sangue Negro é finalmente editado. Noémia de Sousa não o releu, nem o corrigiu, tendo concordado que os poemas permaneceriam na versão (original) policopiada, que se encontra depositada no Arquivo Histórico de Moçambique, devendo apenas ser atualizada a respetiva ortografia.

               As razões que explicam o facto de eu ser quem redige estas notas iniciais são as mesmas que explicam o facto de Fátima Mendonça ser a autora do ensaio que enquadra histórica e literariamente a poetisa e Francisco Noa discorre sobre alguns aspectos desta poesia. Todos nós temos uma relação de superior admiração e grande amizade e afeto com Noémia de Sousa e pertencemos ao parco clube dos que a visitam incansavelmente e nunca desistiram de insistir na edição de sua obra.

               Este livro transcende a condição de uma recolha de poemas. É, antes de tudo, um testemunho da nossa História. Neste volume ecoa uma voz, uma bela voz. Sobre esta voz ressoam outras vozes. Foi desta voz que se incendiaram outras tantas vozes. Talvez por isso qualquer apresentação seja incompetente.

               Costumo dizer que Noémia de Sousa faz parte dos meus antepassados literários. Digo-o com inescondível afeto. Não há, não pode haver, um privilégio maior do que amar esta mulher a quem hoje (re)apresento e de quem tenho o privilégio de chamar “Mãe”. Não só porque ela é, como diz a lenda, a Mãe dos poetas moçambicanos, mas porque entre nós há muito que o afeto e a amizade perderam fronteiras e fundaram verdadeiros laços de família. O que permanece, estou certo, é o espanto sempre que a releio. Regresso incauto ao menino de 15 anos que, suponho, nunca deixarei de o ser.

Maputo, 5 de julho de 2001.

Nelson Saúte

Escritor, editor e curador, foi jornalista e professor universitário. É autor e organizador de obras de literatura moçambicana.

Citar como:

SAÚTE, Nelson. “A mãe dos poetas moçambicanos”. In: SOUSA, Noémia. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016 [Vozes da África]

 

 

Publicado em

Moçambique, um lugar para a poesia, por Fátima Mendonça

Posfácio das edições moçambicanas de Sangue negro, de Noémia de Sousa: 2001 (AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos), e 2011 (Ed. Marimbique), revisto pela autora Fátima Mendonça, em agosto de 2016, para a Editora Kapulana.

 

UMA PEDRADA NO CHARCO

            Se retomo neste texto o título do ensaio de Augusto dos Santos Abranches, é porque me parece justo introduzir, neste lugar, a percepção que o mesmo teve do papel que a poesia moçambicana poderia vir a representar, nos finais dos anos quarenta, num pós-guerra marcado por profunda transformação de mentalidades.1[i]

            Com efeito, Augusto dos Santos Abranches poucos anos transcorridos sobre a sua chegada a Moçambique, tomando como modelo a produção literária de Cabo Verde – que já então se autonomizava –, lamentava:

(…) em vez de conhecer e integrar-se nesse assombroso movimento literário que está rompendo no arquipélago de Cabo Verde, criação essa poética até na angústia que as ilhas asfixiam, (…); criação essa poética até na revolta e no subjugamento, Moçambique dorme ou mede as suas divagações pela intensidade do luar da noite” (…). Para Moçambique, (…), o exemplo de Cabo Verde pode e deve ser um estímulo para a criação da sua literatura, um abraço irmão. Pode e deve ser a indução do seu lugar para a poesia.2

            Poucos anos depois desta sua intervenção, Augusto dos Santos Abranches foi ‘surpreendido’ por um poema publicado no jornal O Brado Africano, em Fevereiro de 1949, com o título “Poesia não venhas!”, assinado com as iniciais N. S. Entusiasmado com a ‘descoberta’ refere no jornal Notícias:

Foi pois com uma surpresa e uma alegria desmedidas que topámos no semanário de Lourenço Marques, O Brado Africano, com o poema “Poesia não venhas!” Que N. S. assina. A primeira reacção foi a de estarmos em presença de um plágio. Para isso, o ritmo do poema nos convidava. Mas a nossa lembrança, por mais esforçada que fosse, não conseguia encontrar nos seus esconderijos, que Freud classificou, nada que elucidasse onde e por quem poderia ter sido escrito o poema. Cremos pois que N. S. é e o seu autor (…) Autor ou autora, esclareça-se.3

            Embora a própria Noémia de Sousa tenha valorizado este episódio, há poucos anos, em entrevista a Nelson Saúte4, afirmando que “se não tivesse surgido um Augusto dos Santos Abranches a chamar a atenção para o meu nome talvez permanecesse desconhecida até hoje”, penso que o fenómeno que constituiu – e constitui ainda hoje – a recepção de meia centena de poemas, dispersos pelas páginas de O Brado Africano – coligidos numa brochura mimeografada, distribuída por amigos – só pode ser explicado por causas mais profundas.

            Como Rui Knopfli acentua, em evocação que faz desse período, o marasmo a que estava votada a produção literária, nos finais da década de 40, tornava já inaudível o eco de Rui de Noronha e, as manifestações literárias que se lhe seguem, constituíam apenas “o prolongamento, quase sempre anémico, de estilos e hábitos metropolitanos, ainda quando incidem sobre a realidade circundante pois raramente excedem o relato externo e superficial de um exotismo de fachada. É a época dos batuques sensuais, dos poentes cor de fogo e das palmeiras esguias e ondulantes;”5

            A opinião de Rui Knopfli poder-se-á aplicar a autores como Caetano Campos, cujo livro de poemas Nyaka (húmus), (1942), revela tendências próximas da poesia negrista, exploradas mais tarde pelo luso-tropicalismo, assim como a muita da poesia dispersa pela imprensa da época e, que de alguma forma, esgotavam a dinâmica literária protagonizada pela geração de letrados, que emergira de O Africano e de O Brado Africano, nas décadas de vinte e trinta, de que João Albasini e Rui de Noronha – entre outros – são representantes.

            A poesia de Noémia de Sousa, que aliás já se iniciara em 19486, indiciava pois uma nova atitude estética que, como a maior parte dos movimentos e correntes literárias, não pode ser dissociada de razões de ordem histórica. Entre muitas razões prováveis parece-me importante salientar o clima provocado pelas alterações históricas determinadas pelo final da segunda guerra mundial, a que se juntaram condições políticas específicas, provocadas pela candidatura de Norton de Matos (opositor de Salazar) à presidência da República em Portugal, em 1948. A própria Noémia de Sousa, foi participante ativa, com João Mendes e Ricardo Rangel, no movimento cívico e político que, aproveitando a ‘abertura’ política que antecedeu as eleições de 1949, criou em Moçambique uma extensão do MUD, (movimento unitário com ligações, hoje reconhecidas, com o Partido Comunista Português) o que, logo a seguir – passada a pseudoabertura salazarista – provocou a sua prisão e a deportação de João Mendes e de outros membros da organização7. O sentimento de resistência ao colonialismo, já presente noutros sectores da sociedade colonizada, estava pois a alargar-se a grupos provenientes da pequena burguesia urbana africana e europeia. Este sentimento transita para as formas literárias, assumindo contornos ideológicos, que projetam a rejeição do carácter colonial do contato com Portugal.

            Alguma desta literatura emergente, deixa perceber a sedução pela ideia de uma síntese futura entre duas visões do mundo, duas formas de expressão: a africana e a europeia. Pode-se dizer que esta foi a proposta – embora ténue – de Orlando Mendes em Trajectórias (1940), Cinco poesias do mar Índico [conjunto de poemas publicados na Seara Nova em 1947] e Clima (1959) assim como de João da Fonseca Amaral e de Rui Knopfli na sua primeira fase. É o próprio Rui Knopfli quem recorda que Orlando Mendes, constituiria “a linha de cota que rompia e nos separava do soneto de importação e do verniz de um folclore postiço”, destacando igualmente o papel de João da Fonseca Amaral que, “um pé colocado na Polana aristocrática, outro mergulhado nas areias suburbanas do AIto-Maé” teve uma ação de elemento dinamizador e aglutinante da geração intelectual que amadureceria ao longo da década de cinquenta, sob a dupla influência de correntes estéticas modernistas e das ideologias pan-africanistas.8

            Com Noémia de Sousa, está-se perante uma poesia de onde emerge uma temática nova, associada a um discurso torrencial e emotivo, – uma “poética da voz”, como refere Ana Mafalda Leite9 – orientada para a afirmação negritudinista, o que em Moçambique, na época, assumia carácter inovador. Com a parte dos poemas de José Craveirinha, que dão continuidade e reelaboram esta orientação temática, estes poemas constituem hoje uma irrecusável referência para a história literária de Moçambique.

            No seu conjunto, a produção poética da década de cinquenta, adquire a forma de projeto de criação de um espaço literário próprio. Os jornais Itinerário, O Brado Africano e a iniciativa [sem continuidade] de Msaho vão constituir o suporte material desta ação, que adquiriu o aspecto de movimento político e cultural.

            Poder-se-á assim explicar a emergência de um grupo, com afinidades estéticas éticas, cuja ação se desenvolveria nesses finais de quarenta e início de cinquenta e a que estiveram ligados, de uma forma ou de outra, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar, o próprio Rui Knopfli, o pintor António Bronze e o hoje cineasta Rui Guerra, celebrizado pelo “cinema novo” brasileiro.

            Mas a riqueza deste período da história literária de Moçambique, reside no facto – de em simultâneo com esta, terem emergido igualmente outras tendências, a configurar outros grupos, que também procuravam formas de afirmação estética. Julgo ser importante destacar aqui a o núcleo surgido em torno de Reinaldo Ferreira, Cordeiro de Brito e Fernando Ferreira e da sua atividade de tertúlia, desenvolvida no café Scala. Do mesmo modo, a aproximação ao surrealismo, iniciada por Duarte Galvão/Virgílio de Lemos – ainda não suficientemente valorizada pelos estudos realizados – permite avaliar o carácter de abertura e de modernidade da produção poética desta época10. Creio que a iniciativa de Mshao levada a cabo por Virgílio de Lemos (editor com Domingos de Azevedo e Reinaldo Ferreira), Antero Machado (diretor artístico) e Eugénio de Lemos (secretário), representou, ao fim e ao cabo, uma forma de aglutinar tendências diversificadas naquilo que designaríamos hoje como a comunidade imaginada (incluindo a representação da literatura oral e de outras formas de arte). Não admira portanto, que, no primeiro (e único) número de Msaho, o maior destaque tenha sido para “Poema da infância distante” de Noémia de Sousa, porquanto este se adequava tematicamente à configuração utópica da proposta de Msaho, contida na nota de abertura:

contra todas as previsões e contra toda a expectativa temos neste momento a consciência de que a poética de “Msaho” não constitui uma corrente distinta diferenciada com raízes vincadamente moçambicanas (…) mas o que nesta primeira folha revela ainda desencontro estético, formal ou expressivo numa segunda folha poderá tornar-se homogéneo e vir a definir uma força resultante do contacto com elementos nativos, que hoje ainda formam uma massa disforme dependente e incolor.11

            Este fenómeno de identificação produziu-se igualmente a partir da Cabo-Verde, S. Tomé e Angola, onde toda uma geração de intelectuais surge na cena cultural e política de tal forma que, ao mesmo tempo que acolhia tendências estéticas oriundas dos vários modernismos, se enquadrava ideologicamente em formas de problematização, ou de contestação do sistema colonial e dos seus epistemas, orientadas para projeções identitárias.

 

DO ALHEIO AO PRÓPRIO: CONSTRUIR A TRADIÇÃO

            Vários estudiosos da literatura moçambicana têm chamada a atenção para o carácter de modernidade das manifestações literárias ocorridas em Moçambique após 1945.12

            Contudo, na maior parte dos casos, as convergências com movimentos literários contemporâneos, foram percebidas como meras influências sem que, de um ponto de vista comparatista, se atentasse nas formas como, sucessivamente, movimentos como a Negritude, Modernismo Brasileiro, Presença ou Neorrealismo, foram sendo recebidos e transformados pelos autores moçambicanos.

            Parece-me que, os níveis de recepção das teorias que enformaram estes movimentos, foram variados e será necessário delimitar e caracterizar o quadro histórico, social e cultural de recepção das ideias estéticas e éticas por eles veiculadas.

            Isso permitirá mostrar a convergência, na literatura moçambicana, de elementos estéticos que, nas literaturas de referência se revelaram incompatíveis, como, por exemplo, a integração simultânea de processos oriundos da estética presencista e neorrealista ou negritudinista, em contextos ideológicos marcados pelos nacionalismos africanos, alimentados por concepções marxistas.

            A poesia de Noémia de Sousa, diferentemente da de Rui de Noronha, cujo papel predominante foi o de referência fundadora, (tenha-se em vista a recepção da poesia de Noronha, desde a sua morte em 1943), vai constituir modelo e apresentar reiterações futuras, intertextualmente formuladas sob a forma de referências diretas, alusões ou apropriações temáticas, imagísticas e retóricas. Contudo, desenha-se já o que os aproxima, a ocupação de um espaço duplo: o da tradição literária portuguesa e aquele que é instituído pela sua própria ‘performance’. Como é que esta dupla herança se articula de modo a que os textos se possam assemelhar aos dos seus antecedentes portugueses, mas sejam diferentemente “negros”, para retomar a expressão de Pires Laranjeira13 ou pelo menos “não portugueses”? (isto é, Outros).

            Ocorre-me recorrer a Henry Louis Gates Jr., quando reflete sobre a problemática geral da alteridade do texto “negro”:

Canonical Western texts are to be digested rather than regurgited, but digested along canonical black formal and vernacular texts. The result, in work such as that by Aimé Césaire, Ralph Ellison and Soyinka, is a literature ‘like’ its French or Spanish, American or English antecedents, yet differently ‘black’.14

            Para melhor explorar esta questão gostaria de chamar a atenção para um elemento que, sendo comum a outros poetas moçambicanos, produz na poesia de Noémia de Sousa, um efeito que me parece ter sido decisivo, para o papel de modelo que veio a assumir nos diferentes níveis de recepção que obteve. 

            Trata-se da forma como, através de varias estratégias intertextuais, historiciza os textos encaminhando-os para a expectativa que rodeia um certo espaço (África) e um certo tempo ideológico (a emergência dos nacionalismos africanos).

            Se tomarmos como exemplo o Poema a Rui de Noronha, poder-se-ão verificar analogias com dois poemas do poeta neorrealista português Joaquim Namorado, intitulados “Navegação à vela” e “Manifesto”15.

            Para mostrar o trabalho intertextual realizado por Noémia de Sousa, reterei uma das características da poesia de Joaquim Namorado desta fase, assinaladas por Carlos Reis (447- 456)16 i.e. o carácter fortemente injuntivo e emocional da enunciação o que, em sua opinião, não permite a eficácia ideológica anunciada pelo programa neorrealista. Essa característica está efetivamente presente em “Navegação” à vela:

 

Vai

pelos caminhos seguros

nos vapores das companhias

com a certeza de aportar…

deixa

que eu continue sendo

o último tripulante

da fragata naufragada

neste mar dos tubarões16

 

            Ora Noémia de Sousa utiliza no seu “Poema a Rui de Noronha” a estrutura vai (tu) vs deixa (eu) e a oposição semântica implícita do poema “Navegação” à vela, mas amplificando as potencialidades nela contidas, e que Joaquim Namorado limitou, como bem refere Carlos Reis (454)16, à construção da imagem abstrata do poeta arauto – deixa que eu continue sendo o ultimo tripulante. O resultado no poema de Noémia de Sousa (…) Mas o archote, murcho e fraco/que tuas mãos diáfanas mal logravam suster/deixa que nós o levemos! é produzido pela amplificação sistemática dessa oposição em que a imagem do poeta arauto de Joaquim Namorado se transforma, no texto de Noémia de Sousa, em força coletiva (Nós), descrita e nomeada (África/nação) nossa terra natal/nossa África/nossas brônzeas, fortes mãos/revolta nascida nas veias entumecidas/

            Do mesmo modo a sequência metafórica próxima da alegoria – “o último tripulante/fragata naufragada/mar de tubarões” – é transformada numa cadeia de metáforas a partir dos lexemas archote-fogueiras-chama-lume-chama que se articulam com a representação do sujeito brônzeas, fortes mãos – revolta – peitos esmagados, criando um efeito referencial ausente do poema de Joaquim Namorado.

            Também a construção do alocutário é amplificada pela apropriação e transposição de elementos representativos da estética neorrealista, isto é pela oposição entre contemplação e ação, presentes no poema “Manifesto”:

 

Deixa os suspiros profundos

e parte a guitarra mágica que te deixou D. Juan…

deixa-me esse ar de sombra de trapista!

Vem para a rua, para o sol, para a chuva!

Ama sem literatura, como um homem!

Deixa dormir os papiros

na meditação das múmias faraónicas.

– A vida é a única lição.18

 

            O resultado é, em Joaquim Namorado, a identificação militante com uma realidade abstrata, daí advindo, creio, a falta de eficácia referida por Carlos Reis, enquanto no poema de Noémia de Sousa se constrói um modelo mais concreto e humanizado Rui de Noronha/meu irmão/sangrando de amores/.

            Esta característica historicizante da poesia de Noémia de Sousa (e eu diria mesmo, de grande parte da poesia moçambicana) é referida por Pires Laranjeira, no bem documentado estudo sobre a negritude africana de língua portuguesa, nestes termos:

O discurso do negro é pois, injuntivamente mais preciso, descritivo e ideológico que o do Neo-realismo português, em condições de publicação e divulgação tanto ou mais agrestes, mas sem abandonar uma estratégia discursiva de cariz estético tradicional, modelada pela pressão dos circunstancialismos conhecidos.19

            Ao amplificar as potencialidades do hipotexto (neorrealista) Noémia de Sousa introduz no novo texto (moçambicano) uma forte historicidade, religando-o a um espaço particularizado (Moçambique) e a um tempo concreto (o das explosões nacionalistas africanas):

 

“nossas almas passivas aprendem a querer/com força, com raiva/e se erguem guerreiras, para a dura luta/” “Que fizeste de África, poeta?” O poema marca a História e faz-se sua representação.20

 

EM HARLÉM, NO CORAÇÃO DA MAFALALA: TRANSFORMAR O MUNDO

            Em Moçambique, assim como em Angola, a estética da Negritude teve repercussões, embora a poesia marcada por alguns dos seus códigos discursivos ultrapasse os códigos ideológicos, temáticos e estéticos característicos do Movimento, tal como se manifestaram, quer na poesia da Renascença Negra, quer na poesia da Negritude de Paris, e se aproxime de gestos literários próximos de outros movimentos modernos, nomeadamente o Neorrealismo português e o Modernismo brasileiro.

            Surgida com alguns anos de atraso, relativamente ao Movimento nas suas manifestações americanas ou parisienses, por razões históricas compreensíveis, coube às gerações dos anos cinquenta de Angola e Moçambique, desenvolver o que, na poesia do poeta são tomense Francisco José Tenreiro, se pressentia: uma corrente estético-literária sintonizada com as tendências de ruptura que orientaram os vários modernismos, tendo chegado, nalguns casos, a excedê-los.

            Ultrapassando a representação essencialista da identidade negra, tão cara a Senghor, esta poesia acaba por integrar elementos ideológicos que lhe permitiram funcionar simultaneamente como Manifesto estético e Manifesto político.

            A poesia de Noémia de Sousa é, deste ponto de vista, paradigmática pois orienta-se para uma temática marcadamente nova (no contexto moçambicano) onde recorrentemente emerge África desdobrada em vários símbolos (Mãe, Energia, Redenção) do mesmo modo que os ecos longínquos e distantes de Harlém nela perpassam, como acontece no poema “A Billie Holiday, cantora”: “(…) e então/tua voz minha irmã americana/veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão/estranha, profunda, quente/vazada em escravidão (…)”

            Essa inovação temática desenvolve-se para uma insistente representação do quotidiano suburbano: o contratado, o estivador, o mineiro, a prostituta interligam-se emblematicamente num universo imagístico sustentado pela imprecação violenta de um Eu que, sucessivas mutações metonímicas, conduzem à integração no coletivo, como acontece em “Patrão”:

 

(…)

pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu

quem subiu aos andaimes,

quem agora limpa e a põe tão bonita (…)

(…) E o suor é meu

a dor é minha

o sacrifício é meu

a terra é minha

e meu é também o céu (…)

 

            Estas características de poesia de Noémia de Sousa, a que muitas vezes se vem juntar um registo injuntivo, fazem dela uma escrita fixada na ação, em que o projeto de empenhamento é constantemente assumido. Para tal, contribui também a oposição insistente Eu-Nós vs Tu, Eu/Nós vs Vós, onde o estatuto de ‘superioridade’ do Eu/Nós se manifesta, sobrecarregado de uma emocionalidade que nos recorda (sempre) gestos literários do neorrealismo, concentrando, por isso, no texto uma força utópica que marca de maneira particular a sua poesia.

            É por esta via que os poemas de Noémia de Sousa introduzem na poesia moçambicana um discurso simultaneamente lírico (no sentido que lhe atribui Paul Valéry de “desenvolvimento de uma exclamação”) e épico, o que vai determinar o seu papel de vanguarda estética e justificar mais tarde a sua inclusão no discurso nacionalista africano moderno.

            Na verdade creio ser este aspecto que explica o facto de, embora disseminados e não publicados em livro (ainda que a brochura mimeografada tenha circulado o que, em si, também é significativo) a poesia de Noémia de Sousa se tenha insinuado, como referência, no campo literário, configurado pela relação poesia/ação, instituída pela série ideológica. Com efeito, podemos verificar que Noémia de Sousa figura em praticamente todas as antologias de poesia africana de língua portuguesa, desde os anos cinquenta ou em traduções, vinda a lume – fora do espaço colonial –, antes da independência de Moçambique as quais, de forma direta ou indireta, projetavam elementos ideológicos da esfera dos nacionalismos africanos. Do mesmo modo, se, percorrermos páginas/cadernos ou revistas literárias mais recentes, dentro e fora de Moçambique, encontraremos esses fios de memória a percorrer novos textos (poéticos ou não), ancorados na necessidade de dar expressão a variadas emoções.

            Parafraseando Alberto de Lacerda,21 uma outra figura da ‘República das Letras’ [moçambicanas/portuguesas?], contemporâneo de Noémia de Sousa, “o poema além do prazer que dá (…) revela mais profundamente o homem e a vida, obriga-o a viajar, e de uma viagem volta-se sempre diferente”, diria que há meio século estes poemas (finalmente reunidos) proporcionam a diversas camadas de leitores e de leitoras esse prazer ou essa viagem. Os regressos e as diferenças, que se operaram em cada leitura, estão indelevelmente inscritos nas formas como a partir delas – leituras –, se interrogam e des(constroem) representações, singulares ou coletivas da(s) realidade(s). E isso, estou convencida, (se afinal ela não chegou ao fim, como se anunciou) só a História poderá responder ou confirmar.

Maputo, setembro de 2001.

Fátima Mendonça
Professora aposentada da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Investigadora integrada do CLEPUL (Centro de Culturas e Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa), autora de diversos ensaios sobre literaturas africanas e literatura moçambicana

 

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Notas e referências bibliográficas

1 Augusto dos Santos Abranches deixou o seu nome ligado à geração coimbrã do neorrealismo. Dirigiu em Coimbra a Livraria Portugália (que funcionou igualmente como editora) a qual se tornou, nos finais da década de 30, um espaço de convivência de escritores como Fernando Namora, João José Cochofel, Joaquim Namorado. E provável que tenha também tido atividade nos movimentos realistas Presença e Vértice. Por volta de 1943 ou 1944 veio para Moçambique, tendo-se empregado na Livraria Minerva Central de Lourenço Marques. Ainda em 1944 cria Sulco “Página de Artes e Letras do Notícias de Domingo para Gente Moça” de que saíram 16 números (2/7/44 a 4/3/45). Passou a orientar a revista Itinerário (1945/1955), na sua ultima fase, tendo também dirigido o semanário Agora (1948) mandado suprimir por ordem do governador-geral. É a Augusto dos Santos Abranches que se deve a divulgação em Moçambique de autores portugueses, brasileiros, cabo-verdianos e angolanos, cuja escrita se deixa impregnar pelas tendências modernistas. Foi um ativo dinamizador da atividade literária da geração que emergiu do pós-guerra em Moçambique papel que Rui Knopfli assinala em crónica publicada depois do seu falecimento no jornal A Voz de Moçambique (25/5/63). Partiu para o Brasil em 1956 tendo falecido em São Paulo em 1963. Deixou publicados dois livros de poemas (Poemas de hoje, 1942) (Tufão, 1943) e uma peça de teatro (As várias faces, 1943) para além de uma assinalável produção ensaística dispersa na imprensa moçambicana, cujo estudo será um contributo para a história literária de Moçambique. Cf. Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996.

2 Augusto dos Santos Abranches – “Moçambique lugar para a poesia” In Teses apresentadas ao I Congresso realizado de 8 a 13 de Setembro de 1947. Lourenço Marques, Sociedade de estudos da Colónia de Moçambique, [1947] Cf. Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996, p. 29-31.

3 Citado em Boletim Informativo BI 2a serie n° 9. Maputo: Serviços Culturais-Embaixada de Portugal, 1996 p.18.

4 Nelson Saúte. Os habitantes da memória. Lisboa:

5 Rui Knopfli – “Breve relance sobre a actividade literária”. Facho, nº 30, (Lourenço Marques): Ed. Sonap, Set/Out, 1974.

6 Canção fraterna foi o primeiro poema que Noémia de Sousa publicou. As circunstâncias da sua publicação são relatadas pela autora em entrevista a Michel Laban. Cf. Michel Laban Moçambique encontro com escritores. Vol I. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 1998, p. 236-346.

7 Em 1985, tive o privilégio de participar, com outros colegas da UEM, num Seminário intitulado Ideologias da Libertação Nacional dirigido por Mário Pinto de Andrade em Maputo. Nessa altura, fui alertada por Mário de Andrade para a existência de uma nota do Governo Geral de Moçambique em que o nome de Noémia de Sousa aparece associado aos de Ricardo Rangel, João Mendes e Rui Guedes como fazendo parte de uma “Comissão Central” que pretenderia criar uma “Organização Comunista Moçambicana”. Quando a pude questionar diretamente, sobre este assunto, Noémia de Sousa deu-me a indicação, creio que por modéstia, de que Cassiano Caldas (que eu conhecia, através de Mário Barradas desde os finais dos anos 60) me poderia esclarecer melhor sobre todo este período. Gravei então uma longa entrevista com Cassiano Caldas em Maputo, que me forneceu detalhes importantes sobre a sua passagem pelo itinerário, a constituição do MUD em Moçambique, em que participara, das relações com o PCP, assim como do papel que Noémia desempenhara nessa altura. Mais tarde, forneci estas informações ao meu colega Pires Laranjeira que as recenseou em Literaturas africanas de expressão portuguesa, Lisboa: Universidade Aberta 1995, p. 260. Em 1999 Dalila Cabrita Mateus publica A luta pela independência. A formação das elites fundadores da FRELIMO, MPLA e PAIGC, [Lisboa: Ed. Inquérito]. Trata-se de uma tese de mestrado circunstanciada que, para além de confirmar os dados de Mário de Andrade e Cassiano Caldas, reconstrói, a partir dos ficheiros da PIDE, a trajetória política, [aparente e injustificadamente esquecida] de Noémia de Sousa, com continuidade em Lisboa, assim como a de alguns dos protagonistas desse movimento, nomeadamente João Mendes [que reaparece na vida política e social de Moçambique, depois de 1975] e Sofia Pomba Guerra que vai reaparecer na Guiné-Bissau com ligações ao PAIGC.

8 Rui Knopfli. Op. cit. A poesia de Fonseca Amaral foi reunida e publicada postumamente. Cf. Poemas por João Fonseca Amaral. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999.

9 Ana Mafalda Leite. Voz, origem, corpo, narração – poesia de Noémia de Sousa In: Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Ed. Colibri, 1998, p. 99-110.

10 Foi feita recentemente uma primeira sistematização da poesia de Virgílio de Lemos por Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Seco. Cf. Virgilio de Lemos & heterónimos. Eroticus Moçambicanus – Breve antologia da poesia escrita em Moçambique, (1944-1963). Rio de Janeiro: Nova Fronteira – UFRJ, 1999.

11 Msaho. Folha de poesia. (1) Lourenço Marques, 25/10/952. A nota de abertura com o título apresento é assinada por Virgílio de Lemos, principal dinamizador do projeto. Os desenhos do pintor João Ayres e a apresentação gráfica denotam as preocupações modernistas subjacentes a Msaho. Não deixa de ser interessante verificar que, 35 anos mais tarde, num contexto histórico e político completamente diferente, a mesma necessidade se manifesta com os cadernos literários Xiphefo, iniciativa de um grupo de professores/poetas de Inhambane, que se mantém desde 1987.

12 Cf. Mário de Andrade – Prefácio a Cadernos de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Lisboa: CEI, 1953; Manuel Ferreira – Literaturas africanas de expressão portuguesa. (2 vol.) Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977. No reino de Caliban lll. Lisboa: Plátano, 1985; Alfredo Margarido Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980; Fernando J.B. Martinho – O negro norte-americano como modelo na busca de identidade para os poetas de África de língua portuguesa. In: Les litteratures Africaines de langue portugaise – À Ia recherche de l’identité individuelle et nationale. Actes du colloque international. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1985, p. 523-530; Gilberto Matusse – A representação literária da identidade moçambicana: Craveirinha. Scripta, 2° semestre, 1997, vol 1, nº 1, (PUC Minas), p. 15-195; Orlando Mendes – Sobre literatura moçambicana. Maputo: INLD, 1978; Fátima Mendonca – Literatura moçambicana – a história e as escritas. Maputo: Faculdade de Letras e Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988; Francisco Noa – Literatura moçambicana: Memória e conflito. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1997. Manoel de Souza e Silva – Do alheio ao próprio a poesia em Moçambique. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

13 Cf. Pires Laranjeira – A Negritude Africana de Língua Portuguesa. Porto: Afrontamento, 1995.

14 O termo ‘black’ é utilizado por Gates e por outros críticos afro-americanos, tendo como referência o contexto histórico dos Estados Unidos e a atual problemática do multiculturalismo e das minorias. As identidades ‘black’, ‘chicana’, ‘chinese american’ ou ‘native american’ representam, na óptica destes autores uma construção cultural – portanto histórica – extensiva a outras categorias sociais minoritárias como género ou orientação sexual. A sua aplicação ao caso moçambicano não é, por isso, pacífica, valendo apenas como homólogo de uma alteridade manifesta. Cf. Henry Louis Gates -. In: Black literature and literary theory. New York: Methuen, 194, p. 1-24.

15 Joaquim Namorado. Incomodidade. Atlântida: Coimbra, 1945. O poéma Manifesto foi publicado [por Noémia de Sousa?] no jornal O Brado Africano em 3/2/51 p.3.

16 Carlos Reis – O discurso Ideológico do Neo-Realismo Português Coimbra: Livraria Almedina, 1983.

17 Op. cit. p. 40.

18 Op. cit. p. 59-60.

19 Pires Laranjeira. Op. cit. p. 486.

20 Esta questão foi tratada por mim num estudo mais desenvolvido intitulado A literatura moçambicana em questão, cuja primeira versão foi publicada na revista Discursos, Fev. 1995, n° 9, [Coimbra: Universidade Aberta] p. 37-54. Uma versão posterior foi publicada em Taíra, Revue du Centre de Recherche d’Etudes Lusophones et Intertropicales. 1997, n° 9, CRELIT, [Université Stendhal-Grenoble 3].

21 Cit. por Fernando J.B. Martinho – Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Colibri, 1996, p. 108. O autor cita o ensaio de Alberto Lacerda intitulado Lugar para a poesia publicado no fascículo 1 de Távola Redonda, em Janeiro de 1950.

 Citar como:

MENDONÇA, Fátima.  “Moçambique, lugar para a poesia”. Posfácio in: SOUSA, Noémia. Sangue negro. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. [Vozes da África]. 

Publicado em

Noémia de Sousa, grande dama da poesia moçambicana, por Carmen Lucia Tindó Secco

Noémia de Sousa não é apenas uma grande dama da poesia moçambicana. É, também, uma grande dama da poesia africana em língua portuguesa, tendo em vista sua voz ardente ter ecoado por diversos espaços e compartilhado seu grito com outras vozes, em prol dos que lutaram e clamaram pela liberdade dos oprimidos, entre os anos 1940-1975, no contexto do colonialismo português.

Já não era sem tempo, no Brasil, a edição de Sangue negro, único livro escrito por Noémia. Praticamente desconhecida de grande parte dos leitores brasileiros, a autora, no entanto, nas décadas de 1940-1950, manteve, como jornalista, colaboração esparsa com a revista brasileira Sul, publicação que, nesse período, aproximou escritores e poetas do Brasil, entre os quais Marques Rebelo e Salim Miguel, de autores de Angola e de Moçambique, como António Jacinto e Augusto dos Santos Abranches, respectivamente. Além desses e de Noémia, outros escritores africanos também colaboraram na Revista Sul: Glória de Sant’Anna, Viriato da Cruz, Luandino Vieira, Francisco José Tenreiro. Em Cartas d’África e alguma poesia, Salim Miguel reuniu algumas dessas missivas trocadas com escritores da África, em cujas páginas se detectam contundentes denúncias ao salazarismo.

A ligação de Noémia com o Brasil vem, por conseguinte, dessa época e se revela, ainda, em alguns poemas, nos quais a poetisa assinala não só sua passagem imaginária por terras brasileiras (cf. o poema “Samba”, cuja dedicatória ao amigo e fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel registra a noite de 19/11/1949 em que estiveram juntos no Brasil), mas também sua declarada admiração por Jorge Amado, que pode ser claramente observada nos versos a seguir:

[…]
As estrelas também são iguais
às que se acendem nas noites baianas
de mistério e macumba…
(Que importa, afinal, que as gentes sejam moçambicanas
ou brasileiras, brancas ou negras?)
Jorge Amado, vem!
Aqui, nesta povoação africana
o povo é o mesmo também
é irmão do povo marinheiro da Baía,
companheiro de Jorge Amado,
amigo do povo, da justiça e da liberdade!
[…]

(SOUSA, “Poema a Jorge Amado”, p. 125.)

Nos versos citados, o sangue pulsante nas veias do povo baiano carrega igual seiva africana, traz a memória amarga de negreiros que transportaram muitos escravos de lá, vindos para o Brasil à revelia. Há, na poesia de Noémia, uma emoção e uma musicalidade tão profundas, que atravessam tempos e espaços.

Nos jornais moçambicanos, entre 1948 e 1951, os poemas de Noémia de Sousa acenderam consciências, fizeram vibrar revoltas, dialogaram com o movimento da Negritude e com o Renascimento Negro do Harlem, entrecruzaram cadências melódicas e estribilhos de blues, spirituals e jazz, fazendo vir à tona a musicalidade africana reinventada.

No Brasil, tantos anos depois, na Feira Literária de Paraty, em julho de 2015, um poema de Noémia, intitulado “Súplica”, ao ser lido pelo poeta pernambucano Marcelino Freire, provocou enorme comoção no público presente. Em agosto de 2015, Emicida, cantor brasileiro de rap, no SESC Pinheiros, em São Paulo, também declamou esse mesmo poema, comovendo os ouvintes que não conseguiram esconder o entusiasmo e a atração despertados. Por tudo isso, torna-se importante, no Brasil, ler e conhecer a vida e a obra de Noémia de Sousa, o que contribuirá, sobremaneira, para refazer, com a África, alguns laços ancestrais que uma história de dores e exílios esgarçou por tanto tempo.

Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu em 20 de setembro de 1926, em Catembe, em uma casa à beira-mar, banhada pelo Índico, no litoral de Moçambique; faleceu em 2002, em Cascais, em Portugal, levando consigo a mágoa de não ter sido convidada para a festa da independência de Moçambique pela qual tanto lutou em sua mocidade.

Noémia era mestiça, tanto por via paterna, como materna: seu pai, de procedência lusitana, afro-moçambicana e goesa, era originário da Ilha de Moçambique; sua mãe, filha de um caçador alemão e de uma mulher africana da etnia ronga, era do sul de Moçambique. Ela sempre se mostrou precoce; antes dos cinco anos, já lia, pois o pai, cedo, a iniciara no mundo das letras e a incentivara intelectualmente. Com a morte deste, quando ela tinha apenas 8 anos, as condições financeiras da família mudaram e, aos 16 anos, se viu obrigada a trabalhar para ajudar na educação dos irmãos. Entretanto, mesmo trabalhando, nunca deixou de procurar amigos que defendiam as letras, as artes e os ideais libertários, em Moçambique. As orientações recebidas do pai calaram-lhe fundo e a levaram a atuar politicamente junto a intelectuais que reivindicavam uma sociedade mais justa e humana.

Em 1948, Noémia publicou, no Jornal da Mocidade Portuguesa, em Moçambique, o poema “Canção Fraterna”, cuja repercussão fez com que se aproximasse de um grupo revolucionário de jovens moçambicanos: João e Orlando Mendes, Ruy Guerra, Ricardo Rangel, Cassiano Caldas, José Craveirinha, entre outros. A combatividade poética e política de seus poemas, assinados com as iniciais N.S. ou com o pseudônimo literário Vera Micaia, acarretou à autora o exílio. Junto com João Mendes e Ricardo Rangel, foi presa por atacar, frontalmente, o sistema colonial português em Moçambique. Foi degredada para Portugal, tendo participado, em 1951, da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa; viajou pela América e, entre 1952 e 1972,   mudou-se para Paris, continuando, como jornalista, poetisa e tradutora, sua luta a favor do nacionalismo e da libertação de Moçambique.

Noémia de Sousa inaugurou a cena literária feminina moçambicana, protestando contra as opressões sofridas pelas mulheres em Moçambique. Seus 49 poemas, escritos todos, entre 1948 e 1951, circulavam em jornais da época, como O Brado Africano. Só em 2001, foram reunidos no livro Sangue negro, publicado pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), com organização de Nélson Saúte, Francisco Noa e Fátima Mendonça. Noémia não queria seus poemas publicados em livro. Ela tinha consciência da dimensão de sua linguagem poética, capaz de disseminar a revolta por intermédio de poemas incendiários, passados, de mão em mão, de jornal em jornal (O Brado Africano, Itinerário, etc.), de antologia em antologia (as editadas pela Casa dos Estudantes do Império, CEI, em 1951 e 1953; a Poesia negra de expressão portuguesa, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, em 1953; o Boletim Mensagem, de 1962; a antologia No reino de Caliban, organizada por Manuel Ferreira em 3 volumes, em 1975, 1976 e 1988; a Antologia temática de poesia africana, de Mário Pinto de Andrade em 2 volumes, em 1975 e 1979; a Antologia da nova poesia moçambicana, organizada por Fátima Mendonça e Nelson Saúte, em 1993, entre outras).

Embora, para Noémia, um livro com seus poemas não fosse necessário à sua militância poética, para os estudiosos de sua poesia, as duas edições moçambicanas de Sangue negro – a de 2001, pela AEMO, e a de 2011, pela Editora Marimbique, de Nélson Saúte – foram importantíssimas, pois cumpriram a tarefa de consagração da primeira poetisa das letras de Moçambique, considerada por Zeca Afonso, compositor e cantor da “Grândula Morena”, nas celebrações do 25 de Abril, “a mãe dos poetas moçambicanos”. Mãe, por ser a primeira voz feminina da poesia moçambicana a embalar os poetas que a sucederam. Contudo, é como irmã, companheira de luta, que os sujeitos poéticos de grande parte dos poemas de Sangue negro se impõem. Irmã, filha de uma África violada e aviltada durante séculos, cujos filhos foram vítimas de muitas discriminações e crueldades. Irmã, que denuncia os dramas do continente africano.

A publicação de Sangue negro, no Brasil, amplia esse universo de sagração da autora, cuja voz atravessou índicos de revolta e desespero, levando seu brado contestador por outras terras e mares, sem se calar, mesmo no exílio, vivido até a morte, em 2002, em Portugal.

A edição brasileira mantém a mesma estrutura das edições moçambicanas anteriores, respeitando a divisão em seis seções: “Nossa Voz”, “Biografia”, “Munhuana 1951”, “Livro de João”, “Sangue Negro”, “Dispersos”.

A primeira seção funda a “poética da voz”, a “poiesis do grito” que se quer rebelde e se expressa por poemas longos, caudalosos, feitos para serem declamados, dramatizadamente, de forma a traduzirem a indignação do sujeito lírico que, por meio de anáforas e gradações, não se cansa de gritar contra as injustiças sociais, denunciando a escravidão, os preconceitos em relação aos negros, a fome e a pobreza dos menos favorecidos.

A voz de Noémia não é apenas feminina; é, também, coletiva. É uma voz tutelar, fundadora da poesia moçambicana. É uma voz plural, prometeica, que, epicamente, assume uma heroicidade salvacionista, na medida em que se declara como a que iluminará e libertará os destinos dos irmãos africanos marginalizados. É evidente a postura redentora dos sujeitos poéticos, cuja missão é dar passagem ao povo oprimido. São inúmeras as imagens que se relacionam a esse campo semântico: “trespassou”, “passe”, “abrir a porta”. Tais metáforas dão abertura aos poemas da segunda seção, “Biografia”, que tratam não apenas da urgência de ser recobrada a memória individual de Noémia, nascida na casa à beira-mar, em Catembe, mas, ainda, do imperativo de ser revigorada a memória ancestral dos povos negros moçambicanos e africanos, cujos hábitos, crenças, ritmos e histórias precisam ser preservados, assim como necessitam ser esconjuradas as lembranças sombrias de injúrias e atrocidades vividas ao longo de séculos de escravidão.

O poema “Deixa passar o meu povo”, “Let my people go”, se configura como movimento e ação para dentro e fora de Moçambique. É uma poética nervosa, tecida por afetos e emoções, que, pulsantes, revelam a revolta contra as discriminações vivenciadas não só pelos negros de África, porém, também, pelos africanos dispersos nas Américas e no mundo. Nesse sentido, a voz de Noémia se acumplicia à dos irmãos negros do Harlem, referência explícita ao Renascimento Negro, de Langston Hughes.

Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimba chegam até mim
– certos e constantes –
vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar…
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
spirituals negros de Harl.
“Let my people go”
– oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo –,
dizem.
[…]

(Idem, “Deixa passar o meu povo”, p. 48.)

No posfácio “Noémia de Sousa: a metafísica do grito”, escrito por Francisco Noa, é sublinhado esse pendor para a emoção, recorrente na poesia de Noémia, em que são frequentes apóstrofes, cuja função é imprimir uma dicção emocionada aos versos. É uma emoção fremente, acelerada, que deixa à mostra o dilaceramento do sujeito poético, cuja insubordinação se manifesta não apenas no nível temático, mas, ainda, no campo da linguagem.

Os afetos na poética de Noémia vão da repulsa e do ódio ao amor e à esperança, da angústia e da solidão à indignação e à solidariedade, da vergonha e da humilhação à rebeldia e à coragem. A voz enunciatória prima por um derramamento de sentimentos que leva a mulher oprimida a buscar recuperar sua dignidade. Falando da margem, dos bairros periféricos de Lourenço Marques, antiga capital moçambicana no tempo colonial, o sujeito lírico feminino se rebela contra o abuso sofrido pelas moças das docas, encaradas como objetos sexuais pelos colonizadores, cuja posse empreendida não foi só da terra, porém, também, dos corpos dessas negras, tratadas, quase sempre, de forma exótica e subalterna.

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
[…]

(Idem, “Moças das Docas”, p. 79.)

Este poema faz parte da terceira seção do livro, intitulada “Munhuana 1951”. Os espaços marginais aqui são eleitos como cenários de uma poesia que chama atenção para os subalternizados pelo regime colonial racista: as mulheres negras e pobres, prostituídas e humilhadas; os habitantes dos bairros de caniço, Munhuana, Mafalala, Xipamanine; os magaíças, serviçais explorados nas minas da África do Sul; os zampunganas, negros que recolhiam em baldes, à noite, as fezes dos patrões colonizadores; os escravos, em diáspora, que, obrigados a condições subumanas de trabalho, morreram em terras distantes.

Os poemas da quarta seção “Livro de João” constituem uma espécie de réquiem a João Mendes, seu irmão de luta, cuja vida deu à causa dos oprimidos de Moçambique e da África em geral:

Ah, roubaram-nos João,
mas João somos nós todos,
por isso João não nos abandonou…
E João não “era”, “é” e “será”,
porque João somos nós, nós somos multidão,
[…]

(Idem, “Poema de João”, p. 105.)

João representa o companheiro político com quem Noémia partilhou ideais revolucionários. Os poemas desta seção choram a falta do amigo, mas rendem-lhe homenagem por ter sido o grande mentor intelectual, cujas lições de liberdade ficaram e continuaram a animar a poesia da autora.

A seguir, a quinta seção, “Sangue Negro”, reúne composições poéticas de profunda recusa à opressão sofrida pelos negros. É o momento em que os sujeitos poéticos celebram o sangue negro, metáfora da ancestralidade africana reinventada e repensada por uma poesia lúcida que consegue dizer não a formas de imposição e autoritarismo:

Bates-me e ameaças-me,
Agora que levantei minha cabeça esclarecida
E gritei: “Basta!”

[…] Condenas-me à escuridão eterna
Agora que minha alma de África se iluminou
E descobriu o ludíbrio…
E gritei, mil vezes gritei: “Basta!”

(Idem, “Poema”, p. 122.)

Se a poesia de Noémia, por um lado, se pautou pelo grito de “basta” à exploração da mulher e à escravização dos negros em geral, por outro procurou afirmar traços da oralidade e da cultura popular de Moçambique, como também aspectos de valorização das raízes africanas em geral.

Os poemas da quinta seção, numa espécie de gradação, alcançam o clímax de suas reivindicações, celebrando a África e outras vozes que também bradaram pela liberdade: Billie Holiday, nascida em 1924 na Pensilvânia, a primeira grande cantora de jazz, cujas letras das canções protestaram, com veemência, contra o preconceito racial e as desigualdades sofridas pelos negros americanos; Jorge Amado que defendeu o Brasil negro, descendente dos escravos vindos da África; Rui de Noronha, o poeta-precursor da poesia moçambicana.

O livro de Noémia de Sousa se fecha com a sexta seção, “Dispersos”, em que se encontram os poemas: “Quero conhecer-te África”, “19 de outubro”, “A Mulher que ria à Vida e à Morte”. Nessas três composições, fica expresso o compromisso de os sujeitos poéticos mergulharem num profundo conhecimento da África milenar, buscando recuperar a prática do culto aos antepassados, a crença de que é preciso continuar a batalha daqueles que deram a vida pelas causas libertárias, pois, segundo antigas religiosidades africanas, “para lá da curva, esperam os espíritos ancestrais”.

Mesmo tendo vivido tantos anos fora de Moçambique, Noémia de Sousa se manteve viva na lembrança do povo moçambicano e seus poemas não se afastaram de suas origens africanas. Por isso, talvez, não tenha sido relegada ao silêncio, nem ao esquecimento, tendo sido aclamada “a mãe dos poetas moçambicanos”. Agora, publicada no Brasil, sua voz continuará a ecoar, compartilhando com Jorge Amado, entre outros, as dores da memória de um passado escravo que ainda precisa ser exorcizado para, definitivamente, ser ultrapassado.

Rio de Janeiro, 26 de maio de 2016.
Revisto e atualizado em 17 de julho de 2023.

Carmen Lucia Tindó Secco – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Citar como:

SECCO, Carmen Lucia Tindó.  “Noémia de Sousa, grande dama da poesia moçambicana”. Prefácio in: SOUSA, Noémia. Sangue negro. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. [Série Vozes da África]. Revisto e atualizado em 17 jul. 2023.
e/ou
SECCO, Carmen Lucia Tindó.  “Noémia de Sousa, grande dama da poesia moçambicana”. In: SECCO, Carmen Lucia Tindó.  A magia das letras africanas. Angola e Moçambique: Ensaios.  São Paulo: Kapulana, 2021. [Série Ciências e Artes]. Revisto e atualizado em 17 jul. 2023.
e/ou
SECCO, Carmen Lucia Tindó.  “Noémia de Sousa, grande dama da poesia moçambicana. In: <https://www.kapulana.com.br/noemia-de-sousa-grande-dama-da-poesia-mocambicana-por-carmen-lucia-tindo-secco/>

 

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O percurso da liberdade em Lucílio Manjate, por José dos Remédios

A conquista da liberdade é a conquista da vitória sobre o medo

Carlos Serra

Definitivamente, Lucílio Manjate é um autor cuja escrita está comprometida com a liberdade. Já havíamos observado esta particularidade, por exemplo, em O contador de palavras e em A legítima dor da dona Sebastião, outros livros do escritor. E, à semelhança das duas narrativas, neste O jovem caçador e a velha dentuça, dedicado, felizmente, a um público mais novo e tão carente de obras que lhes possa estimular a imaginação, Manjate volta a formular, como propósito ou consequência da criatividade, a necessidade de o Homem se livrar de todas as correntes de modo a ser autêntico e com isso alcançar um bem maior.

Ao longo desta trajectória, Lucílio Manjate retoma uma estória contada pela mãe, dando ao enredo a circunstância necessária para subsistir na palavra escrita e partilhada. Assim, o livro floresce numa eternidade cuja existência confunde-se com ficção que mora na meninice; uma meninice que ainda nos constitui, a representar a pureza em harmonia com a integridade. Por isso o protagonista do livro é um jovem caçador, pois, fosse adulto, quem sabe, deixar-se-ia corromper pelo medo das matemáticas da vida. Em vez disso, o personagem desafia-se a si próprio e ruma à procura de desposar uma donzela numa floresta misteriosa, em que a simpatia confunde-se com a morte e é a única coisa que se recebe de borla. É nessa floresta que o nosso herói destemido por ser autêntico, confronta uma velha feiticeira com dois dentes a medir um metro cada. Uma velha muito poderosa e que não media esforços para proteger as donzelas sob a sua custódia. Por essa razão, todos os homens que iam ao seu povoado para arranjar uma esposa, morriam. O nosso caçador sabia disso. No entanto, como a possibilidade de poder sonhar uma felicidade conquistada dependia dele próprio conseguir uma amada, o caçador levou a sua azagaia, os três cães e trilhou, sem atalhos, o percurso da liberdade: a coragem de vencer o medo em todas as circunstâncias.

Contra todas as adversidades, entre tentativas e erros, é essa ansiedade pela vitória que faz do caçador um homem livre e emancipado, tornando-o um rei abençoado por devolver à floresta e às belas habitantes a luz do sol no lugar das trevas. Com efeito, este cenário faz de O jovem caçador e a velha dentuça um livro que não só nos revela o percurso indispensável para o alcance da liberdade como também proporciona a atmosfera que amadurece o desejo de ser livre, independentemente da altivez do obstáculo.

Não obstante, o livro de Lucílio Manjate tenta assumir-se como manifesto – e este é um outro título do autor – contra a intolerância, covardia e conformismo que define as sociedades quando muitas vezes se deparam com dificuldades. Afinal, a velha dentuça pode ser entendida como qualquer monstro que aniquila o futuro de Moçambique ou do Brasil, já agora, lá foi lançado o livro pela editora Kapulana, em benefício próprio. Aqui Manjate reconstrói um herói para seduzir tantos outros potenciais espalhados por aí. O escritor sabe que existem e que eles só precisam de quem lhes ensine a conhecer o mundo no eco da palavra contada.

José dos Remédios

Maputo, 23 de agosto de 2016.

In: O país.  Moçambique. 27 agosto 2016, 23:25.

http://opais.sapo.mz/index.php/opiniao/160-jose-dos-remedios/41692-o-percurso-da-liberdade-em-lucilio-manjate-.html

Saiba mais sobre o livro: http://18.231.27.148/o-jovem-cacador-e-a-velha-dentuca-de-lucilio-manjate-literatura-africana-infantil-mocambique/

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A noiva de Kebera e outros nkaringanas de segredos, por Nazir A. Can

Publicadas em 1994, as estórias de A noiva de Kebera ofereciam já pistas de um projeto literário que, anos antes, em Xitala-Mati, e nas décadas que se seguiram, em tantas outras narrativas, soube conferir dignidade histórica e virtualidade poética aos recantos mais abandonados de Moçambique. Apontando para as doxas e os paradoxos de um lugar fundado em hierarquias, mas também em criativas formas de resistência de seus habitantes mais desvalidos, os seis contos deste livro de Aldino Muianga, que agora chega ao Brasil, ligam-se pelo transfundo didático. O fato mais surpreendente, contudo, é que a exemplaridade dos protagonistas se concretiza pelo viés da ambiguidade, favorecendo o abalo, no campo da construção narrativa, da transparência da mensagem e das fronteiras entre as formas da tradição oral e da escrita moderna. Os finais dos relatos, por exemplo, desestabilizam as verdades que narradores e personagens parecem querer instituir ao longo de cada um dos textos. No plano temático, a morte, enquanto elemento estruturador da sociedade, por orientar a existência dos vivos e por constituir uma passagem, mais do que um final, consolidará esse imaginário de incertezas.

Em “Colar de missangas”, narrativa ambientada em um cemitério, recria-se a existência de três indivíduos que relatam, uns aos outros, as razões que os conduziram à morte. A relação que cada um mantém com sua própria memória contribui para a restituição, em plena atualidade, do elo entre vivos e mortos por via da tradição oral. Mas não sem ambivalência, pois quem conta, aqui, faz sempre a devida (di)gestão dos segredos mais decisivos de sua história pessoal. Já em “A noiva de Kebera”, primeiro conto deste volume, centrado no tempo pré-colonial, narram-se os infortúnios de Ma-Miriam, viúva e noiva de Kebera, o famoso guerreiro que, após ter sido morto em uma batalha, parece ressurgir ao mundo dos vivos para seduzir e engravidar sua antiga amada. A mulher vê-se, desse modo, no incômodo dilema de optar pelo caminho assinalado pelos mais velhos, detentores do saber, ou trilhar o rumo de dedicação e exclusividade exigido pelo defunto, que possui o poder. Também no universo feminino se estruturam os contos “Pôncio e os seus amores” e “A festa de malembe”. Esses relatos perscrutam, entre outros elementos, as contradições de uma contemporaneidade rígida, masculinizada e burocrata na qual as mulheres, mesmo quando em situação de privilégio social ou em cenários montados para homenageá-las, provam uma espécie de “morte simbólica”. Também por meio da técnica do encaixe, que articula microrrelatos no interior e em função da narrativa principal, se configuram “Uma prenda” e “Dois muda, quatro ganha”. O primeiro celebra o trabalho dos heróis alternativos, como o enfermeiro Costa, que se entrega silenciosamente ao ofício em territórios esquecidos pelos poderes políticos. Instaurando o humor na compilação, o segundo é um fresco sobre a pluralidade e a intensidade dos excluídos do mundo colonial. Em 1965, no calor da guerra de libertação que se iniciara um ano antes e que se deixa anunciar nas entrelinhas do desafio relatado pelo hilariante Ntavene, duas equipes de crianças jogam seu destino em uma dura partida de futebol, que tudo teria para terminar em zero-a-zero. Através de uma linguagem próxima do universo popular, discursos e imaginários aparentemente distantes – da tradição e da modernidade, do mundo da feitiçaria e da publicidade – sobrepõem-se para captar as fendas que o colonialismo criou e para exaltar a capacidade de superação dos pequenos guerreiros do Dukla do Bairro.

Em A noiva de Kebera, Aldino Muianga cartografa de maneira ascendente três períodos (o pré-colonial, o colonial e o do pós-independência) e redimensiona a historicidade de lugares até então pouco representados na prosa moçambicana, entre eles as margens da capital, Maputo, confirmando a aposta em uma literatura que repensa, a partir da combinação das coordenadas da existência tempo e espaço, a vida do indivíduo comum moçambicano em sua relação com os reveses do destino. Com essas e outras estratégias, o autor dá continuidade, portanto, a uma tradição literária que há muito se impôs como celeiro de “fantásticos nkaringanas” e de exímios contadores.

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2016.
Nazir Ahmed Can
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Citar como:

O ARTIGO:
CAN, Nazir Ahmed. “A noiva de Kebera e outros nkaringanas de segredos”. Prefácio. In: MUIANGA, Aldino. A noiva de Kebera, contos. São Paulo: Kapulana, 2016. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/a-noiva-de-kebera-e-outros-nkaringanas-de-segredos-por-nazir-a-can/>

O LIVRO:
MUIANGA, Aldino. A noiva de Kebera, contos. São Paulo: Kapulana, 2016. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/a-noiva-de-kebera/>

 

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A história de Pedro e Inês em cordel, por Adelto Gonçalves

Quem não conhece a secular história de Pedro e Inês? Provavelmente, as novas gerações não a conheçam muito bem, mas, com certeza, já ouviram a expressão “agora Inês é morta” que equivale a dizer “agora é tarde demais”. Por isso, não custa nada dizer que é possível encontrar essa história em várias obras literárias, desde Fernão Lopes (1385-1459), cronista e guarda-mor da Torre do Tombo de 1418 a 1454, passando pelo poeta Sá de Miranda (1481-1558), até chegar ao grande Luís de Camões (ca.1524-1580).

Trata-se da história da infeliz Inês de Castro (1325-1355), nobre galega que foi para Portugal como aia de dona Constança Manuel, futura esposa de dom Pedro I (1320-1367), de Portugal. Se há uma história de amor marcante na História de Portugal, como a de Romeu e Julieta, tragédia do poeta inglês William Shakespeare (1564-1616), essa é a do amor proibido entre o infante d. Pedro e Inês de Castro.

Como se sabe, apesar do casamento, o infante mantinha encontros furtivos com a dama de companhia de sua esposa. E, depois da morte de d. Constança em 1345, passou a viver maritalmente com ela, o que acabou por afrontar o rei d. Afonso IV (1291-1357), que mandou assassinar Inês de Castro em janeiro de 1355. Magoado e tresloucado, Pedro liderou uma revolta contra o rei e, quando finalmente assumiu a coroa em 1357, mandou prender e matar os assassinos de Inês, arrancando-lhes o coração, o que lhe valeu o cognome de Cruel.

Mais tarde, jurando que se havia casado secretamente com Inês, d. Pedro impôs o seu reconhecimento como rainha de Portugal. Em abril de 1360, ordenou a trasladação o seu corpo para o Mosteiro Real de Alcobaça, onde mandara construir dois magníficos túmulos, para que pudesse descansar para sempre ao lado da sua eterna amada.

É o desenrolar desse amor proibido, vivido em meio a uma atmosfera pesada e de disputas palacianas de poder, que o leitor irá encontrar em linguagem polida e culta, mas ao estilo de cordel, em O Caso de Pedro e Inês – Inês(quecível) até o fim do mundo (São Paulo: Kapulana Editora, 2015), de Francisco Maciel Silveira, em que o autor alia criatividade e rigor poético. Segundo o seu autor, a obra, fartamente ilustrada por Dan Arsky, é dedicada aos leitores jovens adultos que estão à procura de uma literatura menos conservadora e com profundidade literária, mas distante dos calhamaços acadêmicos. Por isso, chama o seu livro de “ABC de Literatura”, pois, imaginariamente, teria sido escrito para ser lido e repetido em voz alta por cantadores de feira. Eis uma amostra:

 

(…) Rainha eterna (na memória

para sempre viva do povo

lenda na futura História)

só trazendo-a à vida de novo:

exumá-la da triste cova,

sagrá-la numa vida nova.

 

Fazê-la do Reino rainha,

reinando-o além da vida,

era ter promessa cumprida:

brotar dentre a erva daninha

rasa, da corte mal cheirosa,

pétalas de rosa amorosa.

 

(Amor além da vida, desbordante,

exige que metro se mude e rima,

para cadenciar sua extensão.

Que, sepulta em marmórea obra-prima,

não cabe na exígua dimensão

da rasa sepultura limitante.)

 

Pedro, o Cru, mandou construir

no sacro templo de Alcobaça

morada que lá no porvir,

dirá ao vivente que passa:

 “Tal foi teu amor – coeterno?

Vivo na morte, sempiterno?” (…)

II

Em linhas gerais, nesta obra, o professor Francisco Maciel Silveira deixa de lado os títulos acadêmicos – e que são muitos – para se assumir como o vate Xico Maciel, contador de casos. E o faz, em formato de literatura de cordel, a partir de um texto clássico da Literatura Portuguesa.

Na apresentação que escreveu para este livro, a professora Flávia Maria Corradin, coordenadora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) do projeto Autor por Autor: a Literatura e História portuguesas à luz do teatro, do qual o professor Maciel é o diretor, diz que o autor, em seu novo percurso numa arte tão popular como a do cordel, procura brincar com a estrutura da epopeia clássica, ao dividir o seu texto em introdução, narração e epílogo. No caso, a Narração apresenta a história do “amor que, contra tudo e todos,/ acabou virando infração./Infração contra as leis de Deus,/infração contra as leis da grei”.

De fato, como aponta a professora, Maciel saiu-se bem mais uma vez ao trabalhar um conteúdo canônico por intermédio de um meio de comunicação extremamente popular, “dialogando intertextual e criticamente com a História, com a Literatura, suscitando no leitor o desejo de explorar as sugestões aí contidas, de modo a que o amor de Pedro e Inês continue se perpetuando na memória dos brasileiros, portugueses, espanhóis, franceses, ingleses…” E acrescentamos nós: dos galegos, que ainda um dia hão de se tornar uma nação independente e integrante de Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

III

Professor titular de Literatura Portuguesa na FFLCH-USP, onde obteve os títulos de mestre, doutor e livre-docente, com trabalhos em torno da oratória sagrada dos padres António Vieira (1608-1697) e Manuel Bernardes (1644-1710) e da comediografia de António José da Silva (1705-1739), o Judeu, Francisco Maciel Silveira é crítico literário, com ensaios e resenhas publicados em periódicos do Brasil e do exterior. Poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta com mais de duas dezenas de prêmios, atua na docência, pesquisa e orientação com ênfase no Classicismo, no Barroco, no Realismo e no Teatro Português.

É autor dos livros de contos Esfinges (1978) e A caixa de Pandora: aquela que nos coube (1996) e de poemas Macho e fêmea os criou, segundo a paixão… (1983), além de outros ainda na gaveta. Nas áreas didática e ensaística, publicou ainda Português para o segundo grau (São Paulo: Cultrix, 1979; 5ª ed. 1988); Aprenda a escrever (São Paulo: Cultrix, 1985; 2ª ed. 1989);Padre Manuel Bernardes – Textos doutrinais (São Paulo: Cultrix, 1981); Poesia clássica (São Paulo, Global, 1988); Literatura barroca (São Paulo: Global, 1987); Concerto barroco às óperas do Judeu (São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1992); Palimpsestos – uma história intertextual da Literatura Portuguesa (São Paulo: Paulistana, 1997; 2ª ed., 2008, Santiago de Compostela: Laiovento, 1997); Fernando Pessoa(s) de um drama (São Paulo: Reis Editorial, 1999); Ó Luís, vais de Camões? (São Paulo: Reis Editorial, 2001; São Paulo: Arauco, 2ª ed,. 2008); Saramago – eu-próprio o outro? (Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007); Eça de Queiroz: O mandarim do Realismo português (São Paulo: Paulistana, 2010); Canteiro de obras (São Paulo: Todas as Musas, 2011), e Exercícios de caligrafia literária: Saramago quase (Curitiba: CRV Editora, 2012). É responsável pelo site Pinceladas em que discorre sobre a pintura alheia: http://www.pinceladas-fms.com.br

Adelto Gonçalves – Brasil

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O caso de Pedro e Inês – Inês(quecível) até o fim do mundo (ABC de Literatura), de Francisco Maciel Silveira, com apresentação de Flávia Maria Corradin e ilustrações de Dan Arsky (Série Intersecções Literárias). São Paulo: Kapulana Editora, 78 págs., R$ 29,90, 2015. Site: www.editora@kapulana.com.br E-mail: www.kapulana.com.br

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail:marilizadelto@uol.com.br

 

Baía da Lusofonia – 07/08/2016: http://baiadalusofonia.blogspot.com.br/2016/08/a-historia-de-pedro-e-ines-em-cordel.html

Pravda Portugal – 08/08/2016: http://port.pravda.ru/cplp/portugal/08-08-2016/41504-pedro_e_ines-0/

Jornal Opção  – 04/09/2016: http://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/pedro-e-ines-historia-portuguesa-de-romeu-e-julieta-74200/

Saiba mais sobre o livro: http://18.231.27.148/o-caso-de-pedro-e-ines

Saiba mais sobre o autorhttp://18.231.27.148/biografia-de-francisco-maciel-silveira/

Saiba mais sobre o ilustradorhttp://18.231.27.148/biografia-de-daniel-arsky/

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A instabilidade social em O rei mocho, de Ungulani Ba Ka Khosa, por José dos Remédios

Antes vale uma mentira que nos conforta do que uma verdade que nos destrói

De facto, a literatura não se constrói apenas com a escrita, ainda que aqui se reconheça um mecanismo importante no complexo percurso da preservação, por exemplo, das atmosferas criativas e culturais. A escrita é um meio e não um fim em si, pois a edificação do edifício literário passa por várias fontes que iluminam a imaginação dos autores. Uma dessas fontes encontra-se nos contos orais, os quais, muitas vezes, concorrem para fazer do Homem um sujeito iluminado na medida em que as estórias contadas, sobretudo na tenra idade, ampliam a mente, preparando-a para a busca da razão. No repertório da oralidade, há contos que valem contos e que, por isso, merecem transcender a fronteira da voz para se impor, com vigor, na eternidade propiciada pela escrita. Entre vários, ocorre-nos “O rei mocho”, título do livro de Ungulani Ba Ka Khosa, lançado sob a chancela da editora brasileira Kapulana.

Nesta estória conhecida pelos moçambicanos, Ungulani apropria-se da oralidade do seu povo para recriar um texto que se dedica a explicar a origem da instabilidade social a envolver mochos e outros pássaros. Nesse sentido, o escritor instaura na narrativa um pai a contar a estória ao filho, numa iniciação ao porquê das coisas que caracteriza a infância. E a personagem paternal explica que o mocho chegou ao trono pelo mesmo equívoco que lhe custou o poder quando foi desvendando: penas que, ao descobrirem-se que de chifres apenas tinham a forma, incitaram desconfiança dos outros pássaros em relação ao Rei Mocho e à sua espécie. Fosse apenas esta a estória, diríamos que o livro de Ungulani não traz nada de novo. No entanto, e ainda bem, ao apropriar-se do conto oral o autor acrescenta um elemento à narrativa, evitando que fosse previsível: o Homem, a quem cabe a responsabilidade do caus que se instaura no reinado do Mocho. Este cenário faz com que a narrativa deixe apenas de ser um relato sobre os animais para, simultaneamente, se tornar num relato sobre a história da Humanidade, já que a intervenção humana desestrutura as convicções dos pássaros e gera na comunidade das aves uma revolta porque os súbditos do Rei Mocho, com a descoberta, sentem-se usados, daí a revolta a comprometer o trono.

Ao recontar-nos esta narrativa que pode envolver adultos, jovens, adolescentes e, sobretudo, crianças, Ungulani desafia-nos a uma reflexão em torno das acções desencadeadas pelo Homem enquanto sujeito gregário que parece nutrir enorme desejo pela segregação, quando a ideia é alcançar algum propósito. Sem comprometer o rigor de que se reveste a literatura infantil, investindo bem na descrição de imagens, de tal modo que as ilustrações aparecem a reforçar a tentativa de conquistar públicos iniciáticos, “O rei Mocho” é um veículo para mostrar que, do mesmo jeito que as instabilidades sociais são geradas pelo Homem, se houver vontade, por ele também podem ser superadas. E, numa outra perspectiva, o livro leva-nos a questionarmo-nos sobre qual será o futuro da humanidade enquanto o Homem não respeitar diferenças ao nível de convicções. Por exemplo, se o Homem não tivesse desmascarado o Rei Mocho, eventualmente, a paz entre as aves prevalecia naquele reinado que, num jogo metafórico, incorpora traços relativos às comunidades humanas. Por isso, a certa altura, o conto infantil deixa de ser apenas isso e torna-se um universo privilegiado para fazer pensar nas lideranças contemporâneas.

O Rei Mocho, portanto, pode ser qualquer líder que depois de ser eleito deixa cair a máscara, revelando que os chifres, aqui a representarem alguma virtude, não passam de ilusão usada propositadamente para esconder as nódoas.

No fim, fica a questão: vale mais uma mentira que nos conforta ou uma verdade que nos destrói?

José dos Remédios

Maputo, 02 de agosto de 2016.

In: O país.  Moçambique. 02 agosto 2016, 23:25.

http://opais.sapo.mz/index.php/opiniao/160-jose-dos-remedios/41482-a-instabilidade-social-em-o-rei-mocho-de-ungulani-ba-ka-khosa.html

Saiba mais sobre o livro: http://18.231.27.148/o-rei-mocho-ungulani-ba-ka-khosa-conto-infantil-africano-mocambique/

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Dia da Criança Africana: 16 de junho

No dia 16 de junho é comemorado o “Dia da Criança Africana” (Day of the African Child – DAC), instituído em 1991 pela OUA (Organização da Unidade Africana), mais tarde UA (União Africana), em homenagem às crianças negras mortas e feridas no Soweto, em Joanesburgo, África do Sul.

Em 16 de junho de 1976, crianças e jovens  foram às ruas para protestar contra a má qualidade de ensino que lhes era proporcionado pelo governo e, também, contra o ensino da língua Afrikaans, usada apenas pela minoria branca do país.

A manifestação durou duas semanas e terminou com centenas de mortos, sobretudo crianças e adolescentes, e milhares de feridos. O “Dia da Criança Africana” é comemorado em memória delas e chama atenção para a realidade das crianças africanas que são vítimas de violência, exploração e abuso todos os dias.

A Editora Kapulana tem em seu catálogo livros infantis africanos que contam histórias populares com a participação de crianças. Um deles é Kalimba, da angolana Maria Celestina Fernandes, em que o menino Kababo e seu pássaro Kalimba participam de aventuras por aldeias de Angola, no continente africano. Juntos, os dois vencem desafios e ajudam uma comunidade em momentos de dificuldade.

A Editora Kapulana tem também a série de livros “Contos de Moçambique” em que crianças e animais são personagens. Em O rei mocho, de Ungulani Ba Ka Khosa, primeiro volume da série, o pai conta para seu filho uma história da tradição oral moçambicana sobre o surgimento da mentira no mundo.

A Editora Kapulana tem a honra de difundir histórias marcantes, com personagens infantis que retratam a resistência e a sensibilidade da criança africana.

São Paulo, 14 de junho de 2016.

Para conhecer os livros de literatura infantil africana da Kapulana e saber mais sobre o Dia da Criança Africana, acesse:

http://www.loja.kapulana.com.br/catalogo

http://www.au.int/en/newsevents/26675/commemoration-day-african-child

http://www.au.int/en/happening

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Dia da África: 25 de maio

No dia 25 de maio de 1963, chefes de estado africanos, com ideias contrárias ao regime a que o continente estava submetido durante muitos séculos, reuniram-se na Etiópia, com o objetivo definir ações para a libertação da África do colonialismo e promover a emancipação dos povos africanos. Dessa reunião, nasceu a Organização da Unidade Africana (OUA).

 Em 1972, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 25 de maio como o DIA DA ÁFRICA OU DIA DA LIBERTAÇÃO DA ÁFRICA, também chamado de DIA INTERNACIONAL DA ÁFRICA. Em julho de 2002, a Organização de Unidade Africana (OUA) deu lugar à União Africana (UA). Porém, o DIA DA ÁFRICA permaneceu o mesmo, por ter sido a data em que se deu o passo inicial para a afirmação da cultura africana.

Este dia representa um profundo sentido da memória coletiva dos povos do continente africano e demonstra a verdadeira luta contra o colonialismo e a favor da soberania dos Estados Africanos.

Além da migração histórica dos povos africanos para o Brasil, há algumas décadas se desenvolve um intercâmbio cultural intenso entre estudantes brasileiros e africanos.  Na semana do Dia da África, as instituições de ensino e cultura também celebram a cooperação entre os povos.

A Editora Kapulana sente-se honrada em trazer para o Brasil um pouco da cultura africana por meio das obras de escritores consagrados e também de jovens escritores da nova geração, particularmente dos países africanos de língua portuguesa.

Para saber mais, acesse:

http://www.usp.br/aun/exibir?id=5117

http://ifch.ufpa.br/index.php/noticias/2334-2015-05-21-13-35-36

http://tchogue.blogspot.com.br/2015/05/o-dia-internacional-da-africa-o-berco.html

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Desenho digital – Ilustrações de Mauro Manhiça em “As armadilhas da floresta”, de Hélder Faife.

O desenho digital é uma técnica de ilustração utilizada por artistas para a criação de seus desenhos no computador. O ilustrador tem acesso a uma tela virtual e a ferramentas digitais, como pincéis que simulam diversos tipos de texturas de tintas como óleo, aquarela e acrílica. Além disso, alguns instrumentos, somente presentes no computador, possibilitam efeitos diferentes dos desenhos tradicionais feitos à mão, como o “conta-gotas” e ferramentas que possibilitam alterar nitidez, brilho e contraste. É uma técnica muito prática para os momentos de criação.

Em 1972, surgiu o software SuperPaint, marco importante para a evolução da técnica de desenho digital, pois foi o primeiro programa capaz de criar traços mais limpos, eliminando o serrilhamento, que é produzido quando se cria uma linha inclinada no computador. Por ser bastante versátil, o desenho digital passou a ser utilizado em diversas áreas da comunicação e das artes, como publicidade, jogos virtuais e ilustração de livros e revistas.

Uma das vantagens do desenho digital é poder corrigir um erro, acrescentar ou alterar algum traço durante qualquer etapa do processo artístico. Além disso, a variedade de texturas e ferramentas disponíveis provocou o surgimento de novas combinações de materiais e diferentes estilos de trabalho.

O desenho digital não substitui o tradicional desenho feito à mão. Trata-se de uma técnica inovadora de ilustração que convive com a prática do desenho feito à mão. Em ambos os casos, o valor do artista é o que garante a beleza e a qualidade da obra.

Citar como:

FAIFE, Hélder. As armadilhas da floresta. Ilustrações de Mauro Manhiça. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Contos de Moçambique – v. 2)

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Outras Coisas: o vitimário das personagens, por José dos Remédios

Antes vale um fim trágico do que uma tragédia sem fim.
(Karl Marx)

A narrativa literária, de facto, é um exercício fictício com características particulares. Clemente Bata, na qualidade de autor que também urde histórias com a mestria da pena, não foge a essas diferenciações que concorrem para mantermos os contornos filosóficos da literatura bem elevados. Não foge e tão-pouco se esconde, afinal, neste universo, a exposição em livro é incontornável na sedimentação do ofício que ganha voz no olhar iluminado dos leitores. No entanto, ao mesmo tempo que a ficção resultante da narrativa deserta do plano empírico para se tornar naquilo que a compete, um sopro ou uma asa, no caso de Bata, a escrita vai-se tornando quase tangível de tanto aproximar-se ao plano social, no qual o poder da criação ganha altitude.

Como já nos habituou em “Retratos do instante”, seu livro de estreia, na nova colectânea de contos intitulada “Outras coisas”, Clemente Bata vem com histórias simples, todavia, ocultando nas entrelinhas conotações importantes para os que se esmeram em conhecer não necessariamente Moçambique mas os moçambicanos, com os se medos, êxitos e fracassos. Tal cenário incorpora-se nas histórias através de um retrato aparentemente bem ponderado, sobretudo se cruzarmos os traços relativos aos protagonistas e antagonistas dos contos curtos, à medida do cânone moçambicano, a afirmar-se em cada livro lançado.

Através das personagens, ou melhor, da “vitimização” feita àquelas entidades textuais, Bata dá-nos a conhecer comportamentos e personalidades dos habitantes de um país que (só) valoriza a liberdade quando corre risco de a perder: a liberdade de pensamento, de escolha e de defender os seus interesses. Este é o cenário que se configura, por exemplo, no conto inaugural, “Marozana”, a opor Guedjo, dono de uma vaca, e Xpera-Pôko, antigo milícia a representar as autoridades de um tempo que só a outra luta conseguiu derrubar. Guedjo é um personagem pacato, entretanto, inconformado com a injustiça sofrida, apenas cala-se com o tossir de uma espingarda, já morto, quando pretendia recuperar o que lhe era de direito. O mesmo cenário da “vitimização” acontece com Jubileu das Dores, no segundo conto da obra. Ao longo da história, a descrição do discurso no narrador veste-lhe com uma personalidade pacífica, de tal modo que o personagem é enganado por um enfermeiro até acreditar, durante 9 anos, que tinha HIV, quando, afinal, tudo tratava-se de um truque para Djabo esgotar-se nos calores de Eila, sua esposa. Nos dois contos há uma passividade dos protagonistas aproveitada por traquinas, libertando danos colaterais no enredo.

Ainda na mesma sequência, o conto “Embrulho” continua com o traço vitimário dos dois primeiros. No caso, envolvendo Marieta, uma empregada doméstica que, por não ter o que comer em casa, rouba no serviço duas postas de peixe carapau, três batatas e uma cebola. Porém, sem que disso se apercebesse, o embrulho com os produtos some e com isso o relato do narrador faz dela uma vítima dos seus actos, em parte, mas sobretudo da fome, quase que na mesma proporção que Rindza, uma personagem de “O outro lado do mar”, usada pelo marido para enganar homens em troca de dinheiro. Em várias histórias de “Outras coisas”, as personagens aparecem ou como vítimas dos seus actos ou por imposição de quem tem poder para o efeito.

Neste retrato persistente às personagens, Bata questiona os relacionamentos sociais e problematiza os limites da convivência num contexto em que, às vezes, as personagens, como calha com as pessoas, disputam os mesmos interesses. Do mesmo modo, “Outras coisas” afirma-se como um livro interventivo no sentido em que espalha a reflexão do velho Marx: antes um fim trágico do que uma tragédia sem fim. As personagens deste livro parecem muito atentas a isso…

José dos Remédios

Maputo, 01 de junho de 2016.

In: O país.  Moçambique. 01 jun 2016, 18:45.

http://opais.sapo.mz/index.php/opiniao/160-jose-dos-remedios/41015–outras-coisas-o-vitimario-das-personagens-.html

Saiba mais sobre o livro: https://www.kapulana.com.br/produto/outras-coisas-contos/

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Os retratos sociais e a alegoria dos nomes em “Outras coisas”, de Clemente Bata, por Aurélio Cuna

Se os títulos das obras funcionam como chaves de leitura, Outras Coisas, título do segundo livro do jovem contista Clemente Bata, parece-me avesso a essa função. Primeiro, a ambiguidade que caracteriza o substantivo “coisa”: coisa é tudo o que existe ou pode existir real ou abstratamente, é facto, circunstância, condição, assunto, mistério. Ou ainda: assuntos vários (que não se mencionam), ou seja, coisas e loisas. Segundo, o pronome indefinido “Outras” que nos remete ao diferente, ao diverso, potencia esse campo de indefinição enunciado pelo termo “coisas”. Portanto, ao invés de iluminar o caminho da leitura, o presente título conduziu-me a questionamentos: de que coisas se trata? matéria para ‘outras’? Ou seja, que sentido(s) se projecta(m) no título, enfim, na obra? A resposta a estas questões reside no facto de o quotidiano dos africanos se firmar como uma ficção inesgotável, segundo refere Francisco Noa, em texto de apresentação do livro de estreia de Clemente Bata, em 2010. E isso não é casual. Decorre da inserção e percurso de Clemente Bata na literatura moçambicana.

O autor inicia a sua actividade literária nos finais da década de 80, fase áurea da literatura nacional, produzida no período pós independência. De realçar que foi em 1982 que se fundou a AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos), agremiação cujo compromisso é promover a actividade literária, através da realização de tertúlias, prémios, edições e publicações, produção de revistas literárias, como são os casos de Charrua, Forja, Lua Nova, Oásis, entre outras actividades. No que concerne à publicação, destacam-se os trabalhos de Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Aldino Muianga, Isaac Zita, Juvenal Bucuane, Aníbal Aleluia, Lília Momplé, Eduardo White. Assistiu-se, portanto, a uma verdadeira efervescência literária que, apadrinhada por escritores e poetas já consagrados como Luís Bernardo Honwana, Orlando Mendes, José Craveirinha, Rui Nogar, entre outros, mobilizou e influenciou a juventude da época. Trata-se de uma camada de jovens que herdou dos autores mais experientes, entre outros aspectos, o culto da temática virada para o real circundante, com maior incidência para a crítica social. São, pois, histórias do dia a dia dos moçambicanos que compõem a presente obra. Com efeito, Clemente explora os espaços rural, urbano e suburbano, cotejando sobretudo os conflitos típicos das relações humanas, com particular enfoque para as questões da transgressão da ordem seguida da consequente punição. Por exemplo, em “Jubileu das Dores”, relata-se o desalento de Jubileu das Dores, depois da falsa revelação de que era portador do vírus causador de SIDA. Sofrimento que terminaria, nove anos depois, quando ficou esclarecido que tudo não passava de um plano doloso do enfermeiro Djabo, que, por práticas indecentes fora suspenso do serviço. No conto “Marozana”, a morte foi o castigo máximo para Xpera-Pôko, responsável pelo roubo de uma cabeça de vaca e assassinato do respectivo proprietário, Guedjo. Em “Um corpo no vale S”, Tiro-e-Queda, na companhia dos comparsas que pretendiam assaltar os transeuntes, morre ao tentar fingir que está em estado de coma.

Observador atento da realidade em sua volta, Clemente confirma, nesta obra, a sua vocação de contista. Com efeito, em curtas histórias, o autor narra as mais complexas situações do seu meio, desde o amor, o crime, os linchamentos populares, o alcoolismo, o drama dos empregados domésticos, as brigas conjugais associadas aos telefones celulares, os sequestros, a violência doméstica, até aos excessos dos servidores públicos.

Para terminar, confesso que ler Outras Coisas é experimentar o prazer e privilégio, pouco comuns nos nossos dias, de tomar contacto com uma escrita de elevado grau de fineza, quer do ponto de vista estético, quer no que toca ao rigor na linguagem. Legitima, portanto, a função pedagógica da literatura.

Aurélio Cuna

Maputo, 26 de janeiro de 2016.

Citar como:

CUNA, Aurélio. “Os retratos sociais e a alegoria dos nomes em Outras coisas, de Clemente Bata”. Prefácio in: BATA, Clemente. Outras coisas, contos. Ilustrações de Brunna Mancuso. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África). http://18.231.27.148/os-retratos-sociais-e-a-alegoria-dos-nomes-em-outras-coisas-de-clemente-bata/

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Suleiman Cassamo: a viva voz do conto, por Rita Chaves

Com um considerável atraso, Suleiman Cassamo desembarca no Brasil. O regresso do morto, que vem marcar a estreia do escritor entre nós, teve sua primeira edição em 1989, tempos conturbados em Moçambique. Passavam-se 14 anos da tardia independência e o país estava imerso nos sobressaltos de uma guerra que perduraria até 1992. Nesse período, a literatura, que tinha integrado o eufórico coro da utopia nos anos 70, já observava os desvios do sonho e as dificuldades do projeto nacional que a partir de 1964 mobilizara a luta armada.

Sem perder de vista a noção de originalidade que é condição da obra literária, Suleiman Cassamo nos traz, revitalizados, personagens que fizeram sua entrada na literatura produzida em Moçambique pelos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa. Como nos poemas dos anos 50 e 60, os contos de O regresso do morto estão povoados pelos trabalhadores pobres da cidade, os deslocados do campo, os magaíças a retornar do duro trabalho das minas sul-africanas, carregados de bugigangas, fantasia e a memória do desterro. Na narrativa que dá nome à coletânea, é um deles, o emigrado que vem da estranha terra do “jone” a irromper na cena, trazendo uma das poucas imagens de alívio e alegria de toda a obra.

Optando pelo conto, modalidade literária bastante presente no contexto moçambicano, Suleiman Cassamo nos traz dez narrativas que compõem um instigante painel das diversas realidades abrigadas num conjunto espaciotemporal que se desenha para além das fronteiras que teoricamente dividiriam o colonial e o tempo da independência. São muitas e de muitas ordens as contradições que estão no centro das vidas que se movimentam nos diferentes cenários. A aproximar os personagens está a experiência da exclusão, que, em muitos casos, é temperada por atos violentos.

Física e simbólica, a violência constitui uma presença de relevo nas vidas que se representam em cada conto. De maneira intensa, ela toca a mulher, que está situada na ponta extrema da injustiça social e individual nessas sociedades em que a sobrevivência é uma luta diária, e tantas vezes fadada ao fracasso. Pelas narrativas de Cassamo, podemos observar como as personagens femininas condensam em si as duas pontas: a da dor e a da resistência. Os dois primeiros contos são exemplares desse lugar que tocado pela humilhação gera respostas insubmissas. Seus títulos – “Ngilina, tu vai morrer” e “Laurinda, tu vai mbunhar” – têm a mesma estrutura e traduzem uma espécie de ameaça que, ao se realizar, confere uma especial dignidade a inarredáveis destinos.

Sem se referir explicitamente ao colonialismo, o autor confronta-nos com a sua face mais cruel, trazendo-nos as gentes que ele explora e segrega e apontando-nos as suas mais profundas contradições. A brutalidade maior desse sistema talvez seja precisamente a sua capacidade de prolongar-se, arrastando-se para além do celebrado tempo das independências nacionais. E, assim, algumas das cenas não se identificam especificamente com os anos de vigência do sistema. A condição colonial ultrapassa os limites cronológicos e a tinta das iniquidades surge, por exemplo, na “caça” ao pão do já referido “Laurinda, tu vai mbunhar”. Intensamente marcadas, as imagens asseguram ao conto uma envolvente tensão, fazendo do contista, nas palavras de Julio Cortázar, “um pescador de momentos singulares”.

Conhecedor dos riscos de uma avaliação superficial, Cassamo empenha-se em mergulhar em profundidade na rede armada pelo sistema e mostra como se amarram alguns de seus nós, dos quais não escapa o colonizado, dividido, ou melhor, emparedado entre os mundos em que cresceu. Em “Madalena, xiluva do meu coração”, na angústia de Fabião / Neves, temos a machucada consciência de quem se vê perifericamente num mundo sem deixar de pertencer a um outro. A experiência da dualidade que se nota está longe do hibridismo suavizado por alguns discursos pós-coloniais. Sob a temática do dilaceramento amoroso, o enredo evoca, a célebre conferência intitulada “Cultura e colonização” de Aimé Césaire: “A colonização é esse fenômeno que inclui, entre outras consequências psicológicas a seguinte: fazer vacilar os conceitos sobre os quais os colonizados poderiam construir ou reconstruir o mundo.”

Erguendo-se das ruínas de uma sociedade, sobre as quais era preciso erguer outra, a voz de Suleiman Cassamo busca projetar na linguagem esse mundo feito de estilhaços, refratário às hipóteses de harmonia em que tantos africanos tentaram acreditar. Daí deriva uma escrita feita de pedaços, constituindo-se a partir de fortes imagens, apoiando-se numa sintaxe que contraria a norma da língua portuguesa. A expressão por ele cultivada elege como eixo um léxico que, mesclando ao português palavras e construções das línguas moçambicanas que fertilizam a língua herdada/imposta, faz da oralidade não um recurso, mas uma poderosa matriz. Na diversidade de tempos, de espaços, de enredos, o ritmo da oralidade assume a mediação e coloca-se como a face viva de um universo historicamente cindido. Isso explica o peso das lacunas na modulação da escrita. Montado com fragmentos, construído sobre e sob escombros, o mundo que emerge não pode prescindir da elipse como uma importante chave de estruturação.

Conferindo visibilidade a um conjunto de seres marginalizados, os “esquecidos” que desfilam pelas ruas de tantas cidades africanas, e não só, O regresso do morto supera os domínios da denúncia e apresenta-se como um fascinante trabalho literário. Vemo-nos diante de um exercício capaz de conduzir o leitor a um singular universo de sentidos, recordando-nos que a literatura nos permite ver aquilo que a vida, a um só tempo, mostra e esconde. Venha de onde vier.

Janeiro de 2016.

Rita Chaves

Universidade de São Paulo

Citar como:

CHAVES, Rita. “Suleiman Cassamo: a viva voz do conto”. Prefácio in: CASSAMO, Suleiman. O regresso do morto, contos. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África). http://18.231.27.148/suleiman-cassamo-a-viva-voz-do-conto-de-rita-chaves-universidade-de-sao-paulo/

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Batique – Ilustrações de Americo Mavale em “O rei mocho”, de Ungulani Ba Ka Khosa

O batique é uma arte com mais ou menos dois mil anos de existência, originária da Ilha de Java, uma das maiores ilhas da Indonésia, país entre a Ásia e a Oceania.

Várias técnicas são utilizadas para se produzir um batique. É um processo bastante trabalhoso com o uso de tecido, tintas, cera e água. Com a cera, são cobertos os desenhos feitos sobre o tecido. Depois, o tecido é tingido e, na sequência, é escorrido e colocado para secar. Os desenhos aparecem, então, onde havia cera. No restante do tecido ficam as cores. São feitos sucessivos tingimentos para a criação de estampas multicoloridas e com figuras variadas. A cera é aplicada nos dois lados do tecido e, quando ela se parte, é criado o efeito craquelê.

Cada trabalho de batique é único e feito à mão. No tempo das colonizações, a arte do batique foi transportada para outros países pelos holandeses, chegando à África. Moçambique, país situado no sudeste da África, tem o batique como uma das suas mais famosas formas de arte. Lá foram desenvolvidas algumas variações das técnicas originais utilizando-se molduras onde são esticados os panos. O tecido da moldura, já estampada e com cera, é fervido em água para a remoção da cera e o desenho aparece. Por fim, o tecido é colocado para secar.

O batique craquelê é o mais famoso de Moçambique, com reconhecimento internacional no mundo das artes. As peças em batique de Moçambique não só reproduzem objetos e personagens, como também expressam cenas da cultura e da história moçambicana.

Citar como:

KHOSA, Ungulani Ba Ka. O rei mocho. Ilustrações de Americo Mavale. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Contos de Moçambique – v. 1)

 

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Aldino Muianga, entre nós e com as gentes, por Nazir A. Can

Ambientadas nos subúrbios do período colonial, as narrativas de O Domador de Burros e Outros Contos inserem-se em uma longa tradição literária moçambicana que faz do gênero, o conto, um lugar de permanente reinvenção. A proposta de Aldino Muianga – que inicia seu projeto nos anos 80 – possui, além disso, algumas singularidades.

Articulando descrição e reflexão de modo humorado e simultaneamente didático, seus narradores fazem da oralidade menos instrumento que objeto. Com efeito, o registro linguístico do autor, mais próximo do clássico, não prescinde de uma busca pela musicalidade nem de uma pesquisa sobre a energia das tradições nos espaços marginalizados. Essa opção, aliada ao domínio do gênero e à intimidade com as paisagens socioculturais focalizadas, permite a Aldino Muianga unificar literariamente o coro de vozes erguido por suas narrativas.

A intermitência de suas personagens, em constante trânsito (os “deslocados do norte”, os que partem do campo para a cidade ou, então, os que se aventuram nas minas do “Djone” – Johanesburgo) e em contínua invenção de malabarismos que assegurem sua sobrevivência, em um momento histórico que, seguindo critérios de raça e de classe, os remete à imobilidade e à subvivência, confirma também a arguta aposta do autor em fundir as coordenadas de existência tempo e espaço. Ao trazer para suas estórias a materialidade do universo periférico (os lugares do trabalho, a gastronomia, o rumor, etc.) e o peso simbólico das práticas do sul de Moçambique, em tempos mais propensos aos “cordões sanitários”, Aldino Muianga nos convida a pensar no modo como as dinâmicas de poder criam abismos, inclusive entre oprimidos, mas também inspiram criativas formas de sublevação.

A figura do colonizador é, todavia, residual nestas narrativas. O que não reduz o impacto de sua presença. Ela se faz sentir de maneira subterrânea, mas contundente, a partir da inscrição de uma estrutura internalizada de violência (“A tensão pega-se com as mãos”) que corrói os elos comunitários (“Tudo verga, em desequilíbrio”). Nesse contexto, enquanto algumas personagens se empenham “em tácticas para envolver inocentes nos males que enferma a comunidade”, outras são exploradas “até ao tutano dos ossos”. Há ainda aquelas que exercitam estratagemas, nem sempre legais, para minimizar a precariedade a que são submetidas. Finalmente, existem outras que apenas julgam, no quadro, por exemplo, das tradicionais banjas. Ninguém, porém, escapa do escárnio dos narradores. Nem mesmo os desvalidos: “O que estamos aqui a fazer é o mesmo que esfaquear um morto – filosófica e fúnebre opinião de um velho mestiço (…) Sentara-se na ponta de uma fila, no meio da concentração, no estratégico ponto onde se inicia o circuito da caneca”.

O conflito, enquanto motor do conto, mas também, em sentido mais lato, enquanto elemento estruturador da sociedade colonial, confere unidade às sete narrativas que se seguem, elaboradas por um autor que faz entrecruzar de maneira instigante forma e conteúdo, escrita e oralidade, tempo e espaço, história e estória. Que Aldino Muianga, no Brasil, não se fique pela estreia. Mas que ela, entretanto, seja saudada como merece.

Outubro de 2015.
Nazir Ahmed Can
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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O ARTIGO:
CAN, Nazir Ahmed. “Aldino Muianga, entre nós e com as gentes”. Prefácio in: MUIANGA, Aldino. O domador de burros e outros contos. São Paulo: Kapulana, 2015. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/aldino-muianga-entre-nos-e-com-as-gentes-de-nazir-ahmed-can-kapulana/>

O LIVRO:
MUIANGA, Aldino. O domador de burros e outros contos. São Paulo: Kapulana, 2015. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/o-domador-de-burros-e-outros-contos/>

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Prefácio a de terra, vento e fogo, de Lica Sebastião, por Teresa Manjate

de terra, vento e fogo é o novo livro de Lica Sebastião. É o terceiro livro de poesia repleto de imagens fáceis e difíceis, dolorosas e tranquilas, numa luta não só individual, como também na busca de caminhos novos ou renovados de uma nova maneira de escrever e fazer escorrer tinta na poesia moçambicana.

É uma responsabilidade fazer o prefácio de um livro com grande qualidade e projecção linguística, mas sobretudo lírica, quanto a esta nova obra de Lica Sebastião, de terra, vento e fogo.

Para título ela escolhe três dos quatro elementos da Natureza que os gregos para quem a origem da matéria era atribuída a quatro elementos diferentes: o fogo, a água, a terra e o ar. Ela escolhe três porque o quarto, a água, de forma sorrateira invade os versos e se impõe.

De forma dissimulada, melhor, não enunciada, a água, o quarto elemento da Natureza, ganha forma e completa o círculo, como vemos através de palavras como: o rio, o suor, as lágrimas, “A minha hidrografia instável”, “Não quero ser o Douro, /nem o Zambeze, /nem o Mississipi”.

A Natureza, aos olhos e por sugestão dos gregos, e como anuncia Lica, fica completa, una e indissolúvel.

Natureza completa. A terra. Lica é uma mulher africana. Na nossa filosofia, a mulher é a terra, onde se coloca a semente que germina. Portanto, a mulher é o receptáculo do amor, da dor e da força da reinvenção da vida. A continuidade. É na terra onde as pegadas ficam e marcam a passagem. Continuidade e passagem? Na verdade, a passagem, morte, como vulgarmente se diz, na cultura africana, é marca da continuidade. Ficam as pegadas na “areia da praia”, ficam as pegadas na vida de quem fica de múltiplas maneiras.

Natureza completa. Fogo. Fogo é combustão. É paixão que os poemas exploram à exaustão.

Natureza completa. O vento. O ar respirado e as palavras sussurradas. O ciclo fecha-se. A Natureza vibra. A vida exubera. Em África, a vida é assim: intensa. E a poesia de Lica capta esse esplendor, essa vida que não questiona: simplesmente existe, dinâmica e complexa.

Os textos fluem com naturalidade como uma conversa à volta da fogueira ou debaixo da mafurreira ou da mangueira, onde os namoros acontecem no discorrer de palavras e emoções. E por fluírem naturalmente, tornam-se mais verdadeiros e mais consistentes.

De uma doçura ímpar e intimista, as palavras vão-se entrelaçando, pintando no papel sinais vibrantes que iluminam a alma e nos ligam à nossa ancestralidade musicada e ritmada. Os poemas de Lica esgravatam emoções, vidas e tempestades: um amor vivido e interrompido, afinal uma vida que a lógica da Natureza exige como continuidade. Esta é uma africanidade que pugna por reconhecimento sem as setas da desigualdade, mas da mesmeidade na afirmação de uma vida ligada à terra-mãe, com tambores festivos, porque o momento é de dor, numa linguagem que as montanhas conhecem e os mares entendem. É uma africanidade universal, com o seu cheiro, o seu brilho, o seu gosto e o seu gozo. Assim é porque as pessoas, homens e mulheres, deste planeta – em África, na Europa, nas Américas e noutros lugares que a Geografia indica em mapas ou de outras maneiras mais sofisticadas – amam, são amadas, despertam e descobrem que são simplesmente humanos/as.

Ao contrário do que diz o jornalista Jean-Arsène Yao (2008), “A literatura africana, anticolonial nos seus começos, está a distanciar-se da veia realista e procura contar as turbulências do dia-a-dia africano através de uma narrativa metafórica. O africanismo já não é o único horizonte da nova geração de escritores à procura da universalidade. (…). Alentada pelos seus êxitos entre os leitores ocidentais, a nova geração de escritores de África negra opta por um estilo cada vez mais universal, o que permitiu a sua integração nos catálogos dos editores franceses.” Eu diria que o lirismo africano, na sua forma mais sublime, como Lica desenha, que explora a Natureza à sua volta e a emancipa – realidade tão reivindicada pela “negritude” através da afirmação da identidade negra e da sua cultura que introduziu o mundo negro no campo literário, o amor e a dor da partida e da morte, embora não cantados tão intensamente (na escrita) – são a alma da literatura africana, a marca fundamental da negritude e da africanidade.

Lica Sebastião é africana e, nesta obra, manifesta esta africanidade através da dor e da perda, tão presentes nas nossas vidas, na nossa História.

Teresa Manjate

Maputo, setembro de 2015.

Citar como:

 MANJATE, Teresa. “Prefácio”. In: SEBASTIÃO, Lica. de terra, vento e fogo. Ilustrações de Amanda de Azevedo. São Paulo: Kapulana, 2015. (Série Vozes da África).  http://18.231.27.148/prefacio-por-teresa-manjate/

 

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Os desafios dos EUs em Lica Sebastião, por Teresa Manjate

Não é a primeira vez que converso com a Lica, nesta dimensão: a dimensão da escrita artística, em poesia lírica. Das vezes que tal aconteceu, ficou sempre presente a ideia de uma revelação quase biográfica. Melhor, autobiográfica.

A poesia lírica, segundo as teorias, define-se normalmente como aquela que manifesta vocação para exprimir sentimentos, estados de espírito do sujeito na sua “interioridade” e em “profundidade”, e não a de representar o mundo “exterior” e “objectivo” (Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura: 1997: 305, Aguiar e Silva, A Teoria da Literatura: 1988: 582). O lirismo confunde-se com a poesia “pessoal” e mesmo “intimista”, e privilegia, assim, a introspecção meditativa. A subjectividade lírica é, por natureza, introvertida e egocêntrica. Talvez esta seja então a razão que me leva a pensar nos poemas de Lica como autobiográficos, se calhar não de forma tão categórica como sustenta Kate Hamburger em The Logic of literature (1973: 276-278). Porém, a sua feição pessoal e intimista, a profundidade dos temas e da linguagem levam-me a dizer: esta é a parte da Lica que emerge e sai do coração e das experiências não partilhadas para o papel.

Esta assumpção hipotética de que os textos serão de feição autobiográfica, aparentemente peremptória, é deveras tímida e em nada categórica, na medida em que é conflitante com aspectos a nível teórico – retórico, semiótico e fenomenológico.

A nível teórico, entende-se que no universo da criação literária, o autor como pessoa está ausente, e o “eu” é um puro sujeito da enunciação, é uma voz e uma identidade criada, que só emerge de forma condicionada, isto é, só na vida de um texto literário. Deste facto decorre o princípio de que só pode haver, a rigor, distinção entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. Assim, a constituição de um sujeito diferente do sujeito referencial, a noção de sujeito lírico abre-se para uma análise do texto poético deliberadamente distinta das perspectivas biografistas.

Partiste e eu fiquei,

um vazio desconhecido.

E as noites?

O relógio arrasta as horas…

“Eu fiquei” associado ao vazio/ as noites (momento privilegiado para a introspecção e para a solidão) sugerem o fechamento do ego em si mesmo. Esta reflexão justifica-se pelo facto de Lica escrever uma poesia subjectiva, marcada pela interiorização, isto é, com propensão eminentemente egocêntrica (Carlos Reis: 314), que coloca no centro um determinado universo de um eu, numa captação sensorial que favorece a configuração de um universo íntimo eivado de emoções e experiências afectivas.

No plano retórico, as figuras de linguagem constroem uma “dupla referência” – ou, ainda, uma “referência desdobrada”. Com efeito, e de modo mais geral em todas as figuras, a significação literal não desaparece; ela manifesta-se por detrás da significação figurada, coexiste com ela. A “noite” ou o “Sol”, para lá de parte do dia sem luz solar, ou o astro-rei, na sua “dupla referência”, convoca estados de espírito, “estados da alma”, construção de sentidos, múltiplos. Nos diferentes níveis de sentido, as figuras autorizam leituras multíplices, de tal forma que a consciência dos leitores do poema lírico desloque a sua percepção de um lado a outro, oscilando entre os sentidos, num movimento contínuo de busca de analogias, de ligações que as experiências individuais amalgamam. As falas do Sujeito de enunciação apelam para uma viagem que procura buscar as suas experiências possíveis combinadas com as do Sujeito leitor. Por isso se procura encontrar, de algum modo, as experiências do Sujeito por detrás da criação daquela voz que expõe sentimentos, experiências e visões.

No plano semiótico, todo o texto tem um conteúdo, lugar dos conceitos, ou “onde o texto diz o que diz”, e uma expressão, grosso modo, a parte “material” ou sensível de um texto, que sustenta os conteúdos. A substância da expressão abrange desde as palavras e a combinação delas como forma de sugestão do estado da alma e dos sentimentos expressos. A forma diz respeito à maneira como os elementos citados acima estão combinados, que tem como proposta formar e sugerir uma mensagem. Já no plano de conteúdo, é o significado transmitido, é toda a mensagem implícita do conjunto dos elementos que compõem o texto.

No plano fenomenológico, essa dupla referência parece corresponder a uma dupla intencionalidade por parte do Sujeito, ao mesmo tempo voltado para si mesmo e para o mundo, articulando, ao mesmo tempo, o singular e o universal. Deste modo a relação entre a postulação autobiográfica e a ficção passa por essa dupla intencionalidade. Há uma sugestão de uma dualidade do Sujeito lírico com o Sujeito empírico, universalizando-o. Segundo Dominique Combe, na comunicação lírica, trata-se antes de uma tensão jamais resolvida, que não produz nenhuma síntese superior – uma “dupla postulação simultânea”.

Às vezes os meus versos

são um jogo semântico

com os signos desta língua que eu amo

e outra não sei.

 

Outras vezes os versos não mais são

que uma alegria momentânea.

 

Mas outras sai-me dos dedos uma dor tal

a que só a lembrança do teu sorriso vedado

sobrevém.

A inscrição de modalidades de consciência [neste caso de escrita de versos, em particular], em termos fenomenológicos, cria o jogo entre o biográfico e o fictício, entre o singular e o universal; sugere o intencional que se impõe e que dilui o poder do sujeito lírico e, simultaneamente, do sujeito empírico.

Não há, em rigor, uma identidade do Sujeito lírico. O Sujeito lírico não poderia ser categorizado de forma estável, uma vez que ele vive precisamente de um incessante movimento do empírico em direcção ao transcendental. Vale dizer então que o Sujeito lírico, levado pelo dinamismo da ficcionalidade, não está acabado, está em permanente constituição, numa génese sempre e reiteradamente renovada pelo texto lírico, fora do qual ele não existe. O Sujeito lírico cria-se no e pelo poema, que tem valor performativo. Essa génese contínua impede, certamente, de definir uma identidade do sujeito lírico, que se fundaria sobre uma relação do mesmo ao mesmo, num jogo de espelhos que empresta uma identidade ao sujeito empírico.

O meu sexo é uma casa com nuvens

e finíssimos cursos de água.

Tu esperas à porta e és o sol.

Atravessas-me e fazes uma dança frenética

e eu desaguo,

grata.

De uma voz queixosa e pudica quase bíblica [como numa Cantiga de Amigo, em que o amado parte] e a solidão e a incerteza de um Sujeito angustiado, passa a registar uma voz sedenta e exigente de amor carnal vivo, no mínimo conhecedor “dos pecados da carne”.

Há um conceito que une os dois polos do “eu” na poesia lírica que tanto a abordagem retórica como a abordagem fenomenológica levantam: é saber como a identidade e a alteridade se revezam: afinal o “eu” é um outro – como o sujeito que se enuncia como indivíduo e, simultaneamente, se abre ao universal por meio da ficção – e não somente porque os poetas se afirmam, enquanto homens do universal. De outra maneira, seria a representação do mundo fechado a si mesmo sem leituras, sem discussão, sem apelo a outros eus, se calhar a “vontade” última de quem enuncia.

O conceito da ipseidade de Ricoeur que tenta esclarecer o facto complexo de um indivíduo ser ele mesmo, dotado de uma identidade própria e, por conseguinte, diferente de todos os outros indivíduos. É, na verdade, uma questão de identidade, que, coloca a presença a si mesmo, sem postular a identidade. Para Paul Ricoeur, a ideia de uma ipseidade[1] do sujeito lírico assegura, apesar de tudo, sob suas múltiplas máscaras, certa unidade. Porém, tal unidade do “eu” na multiplicidade dos actos intencionais, essencialmente dinâmica, está em constante devir, isto é, o “sujeito lírico” não existe, ele é uma criação. Ou seja, é um termo que se refere, dentro do contexto da teoria da literatura, à análise de textos escritos em verso; pode ser entendido como a expressão de um “eu” do autor ou de um “eu” fictício, potencializando dinâmicas que conferem, naturalmente, duas avaliações influentes na análise literária. O “eu” lírico, sendo embora uma construção textual, dirige, no entanto, a atenção sobre o sujeito real de quem fala.

Escrevesse eu um livro

e não relataria dramas de amor

nem de desapontamento.

 

Pediria sim que a vida renovasse

o brilho nos meus olhos míopes,

como no dia em que te reencontrei.

“Escrevesse eu um livro…” [Escrito está]. Provavelmente, o mais importante é entender a função que o irreal exerce na realidade que lhe é extrínseca; essa “realidade irreal” proporciona ao sujeito poético um carácter autónomo, visto que se arquitecta a partir de um escritor que lhe conferiu emoções e traços que lhe darão autoridade enquanto Sujeito artístico do enunciado, índices esses que podem, ou não, ser equivalentes à personalidade do autor da obra de arte.

Carlos Reis afirma a dado passo que o sujeito poético, constituído no contexto do processo de interiorização, é uma entidade a não confundir com a personalidade do autor empírico. No entanto, admite que o autor empírico pode projectar sinuosamente no mundo do texto experiências realmente por si vividas, assim como também é certo que a voz que nesse texto “fala” com o leitor pode ignorar (e também subverter, metaforizar, etc.) essas experiências (1995: 316).

“Falar” com Lica leva-me sempre a pensar na (in)definição da possível coincidência entre o “eu” lírico e o “eu” empírico da poetisa. O problema neste tipo de análise está na ressurreição dos fantasmas antigos do conflito incontornável entre verdades e verossimilhanças, que cria as tensões entre julgamentos que delineiam psicologicamente e comprometem, ao fazer emergir (des)valores que possam sobrepor-se a uma imagem conscientemente construída. Compreende-se que o mundo literário exterioriza, a partir de técnicas artísticas, uma “irrealidade”, que enquanto “real” produz emoções bem como juízos de valor, que a sociedade inscreve e outorga, julga.

[1] Soi meme comme un autre, Seuil, 1990.

Teresa Manjate

Maputo, 26 de agosto de 2015.

Citar como:

 MANJATE, Teresa. “Os desafios dos EUs em Lica Sebastião”. Ensaio in: SEBASTIÃO, Lica. de terra, vento e fogo. Ilustrações de Amanda de Azevedo. São Paulo: Kapulana, 2015. (Série Vozes da África). http://18.231.27.148/os-desafios-dos-eus-em-lica-sebastiao-de-teresa-manjate-kapulana/

 

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Lica Sebastião: a musa que não se cala?, por José dos Remédios

Outras margens

Sem muitas convicções a este respeito, afinal, cada ser humano é um universo complexo,parece-me que o escritor angolano, Pepetela, tem razão: “toda a mulher gosta de ser a musa de um poeta”, ainda que esse poeta não escreva versos e nem declame poemas líricos ou de qualquer outra espécie. Toda a mulher deve gostar de ser ou parecer aquela entidade angelical que ilumina, por exemplo, a obra de um White e de um Noronha, o monstro do qual nos esquecemos numa atitude quase que herética.

Pensando naquela afirmação de Pepetela, li o novo livro da poetisa moçambicana Lica Sebastião, “De terra, vento e fogo”, lançado sob a chancela da Kapulana, uma editora brasileira que se tem esmerado na publicação de autores moçambicanos no Brasil. E, tenho de dizer isto, não poderia ter terminado 2015 com um sorriso tão eufórico quanto o que me proporcionou à leitura daquele livro. Confesso, há muito que não lia um livro de poesia de um autor moçambicano que me despertasse sensações tão agradáveis. E não faltaram razões para o efeito. Nesta viagem pela escrita, a autora de “Poemas sem véu” amadureceu e com isso trouxe uma poesia que nos devolve uma certeza antiga, a de que nesta cidade vivem poetas. À parte a lisonja, que sempre oculta interesse na percepção de Balzac, no seu “Eugénia Grandet”, com a subtileza dos seus versos, Lica Sebastião faz da sua escrita um espaço onde se mescla a vontade e a dor, resultante de expectativas que não se concretizam. Por isso, invertendo os papéis, já que as circunstâncias a impelem de ser a musa que toda a mulher gosta de ser, ela mesma, melhor, as musas que não se calam pela autora criadas, expressam sonhos como metáforas das mulheres que se debatem com o vazio de não terem consigo o poeta que as façam loas. Diante desse cenário, “De terra, vento e fogo” aparece como um livro no qual os versos expressam, no máximo, alegrias momentâneas: “Às vezes os meus versos/são um jogo semântico/ com os signos desta língua que eu amo/e outra não sei./ Outras vezes os versos não mais são / que uma alegria momentânea” (p. 17). É dessa alegria efémera que aparece uma consequência, a frustração provocada pela ausência: “A mim frustra-me/ esta estranha sensação/ quando não estás perto (p. 19).

Portanto, este livro que tem no seu epicentro uma poesia que se tece em função de desejos fracassados, consequência do que se sente e do que não se tem, traz consigo a passividade a que o eu feminino muitas vezes está sujeito. Além disso, apropriando-se dos recursos naturais, à laia de um “Lidemburgo blues”, de Luís Carlos Patraquim, Lica Sebastião introduz na obra a beleza do desejo feminino que seduz e enlouquece: “Não quero ser o Douro,/nem o Zambeze,/ nem o Mississipi./ Sou apenas um rio de vida/ com as minhas águas a murmurejar o teu nome, incessantemente” (p. 53).

“De terra, vento e fogo” não deixa de ser um livro de angústias, um livro que nos mostra que a poesia nasce do nada e sobrevive a tudo, claro, se for escrito com elegância e esmero como é o caso.

José dos Remédios

Maputo, 01 de junho de 2016.

In: O país.  Moçambique. 06 jan 2016, 8:53.

http://opais.sapo.mz/index.php/opiniao/160-jose-dos-remedios/39037–lica-sebastiao-a-musa-que-nao-se-cala.html

Saiba mais sobre o livro: https://www.kapulana.com.br/produto/de-terra-vento-e-fogo/

 

 

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O cordel a perpetuar o amor de Pedro e Inês, por Flávia Corradin

Francisco Maciel Silveira dá a lume, mais uma vez, um título, veiculado no formato de cordel, ainda dentro dos pressupostos do Projeto Autor por Autor1. Nesta investida, trata da decantada história de amor entre Pedro2 e Inês de Castro3, tema há mais de trezentos anos invadido pela literatura de diferentes países, bem como por outras artes, dentre as quais se destacam a pintura, a escultura, para não falarmos do cinema.

O Autor dedica-se ao ensino há mais de quarenta anos, tendo trabalhado no, hoje chamado Ensino Médio, para fincar seus pés no ambiente universitário, dedicando especial atenção à Literatura, o que lhe dá cabedal para dialogar com conteúdo tão celebrado, trazendo-lhe, entretanto, novas achegas no âmbito formal.

Estampada numa fôrma popular, como é o cordel, Francisco Silveira, parte, entretanto da estrutura da epopeia, ao pedir camonianamente apoio à musa do cordel. Assim, rebaixa a elevada oitava rima, com versos decassílabos, característicos das epopeias clássicas, às sextilhas, estrofes de seis versos, em octossílabos, seguindo um esquema rímico variável “pra não cansar a audição”, sem, no entanto, descurar da estrutura veiculada pela maioria das epopeias modernas, em que encontramos a Introdução (dividida modernamente em Proposição, Invocação e Dedicatória), a Narração e o Epílogo.

Dialogando com as epopeias clássicas, sem repeti-las, Silveira inicia seu cordel com a Invocação, em que apresenta uma espécie de lamento ao pedir a unção e mesmo o apadrinhamento do Senhor para que o leitor reconheça seus versos. Estamos, pois, diante, de mais uma inversão, quando o maravilhoso pagão, próprio das epopeias, é substtituído pelo universo cristão, reiterado no apelo à Virgem Maria e aos Anjos do Céu para que lhe deem inspiração, capacitando-o a cantar o Amor que vence a morte,/vivo além de sua duração.

No Argumento, Silveira apresenta o assunto a ser cantado, bem como os heróis de seus versos, conforme já antecipado no subtítulo, onde se lê:

ABC

do

triste e comovente amor

de

Pedro por Inês,

a triste e mesquinha

que,

depois de morta,

foi Rainha

e até hoje reina na memória e no coração do povo.

Não esquecendo o universo intertextual, o Autor pessoanamente indica que é a hora de iniciar a Narração, além de apontar para a raiz didática do texto sugerindo ironicamente que

(Se alguma palavra rara,

retirada do relicário,

se arcaísmos, minha cara,

refogem do uso diário,

saiba que a todos ampara

essa burra do dicionário.)

 

A Narração apresenta a história do “amor que, contra tudo e todos,/acabou virando infração./Infração contra as leis de Deus,/infração contra as leis da grei”, apontando ainda intertextualmente que a sandice dos amantes acabou por levá-los a um amor de perdição. Sem se afastar do relato histórico, Silveira acompanha diacronicamente os fatos, desde que Pedro viu a aia de D. Constança pela primeira vez em Alenquer até o cortejo fúnebre que a trasladou de Coimbra a Alcobaça, tornando-a rainha depois de morta. Abre, contudo, um parêntesis, para tratar da aporia que atormenta o Rei Afonso IV, autor da sentença de morte contra Inês, uma vez “que tudo e mais sempre faria/em defesa da dinastia.”.

Xico Maciel (pseudônimo? heterônimo do Autor/Professor Francisco Maciel Silveira?) dedica também atenção à relação homossexual de Pedro com seu escudeiro Afonso Madeira, contra quem inflige um dos muitos castigos ─ haja vista o que fará com os matadores de Inês ─, que lhe justificam o epíteto de cru ou cruel, mandando castrá-lo, depois de descobrir sua relação com uma dama da corte casada, conforme já apontara a crônica de Fernão Lopes, paradigma primeiro desta e de muitas outras histórias. Devemos salientar ainda que os desvarios sociopatas e a necrolatria de Pedro estariam radicadas no fato de as monarquias europeias, notadamente a portuguesa, tecerem relações endogâmicas, que levavam a toda sorte de degenerescência.

Chegamos ao Epílogo do ABC do triste e comovente amor de Pedro por Inês, um originalíssimo, se assim podemos denominá-lo, cordel épico. Aqui, sem descurar do apelo intertextual, Silveira ainda dirigindo-se à Leitora, trabalha a ideia do amor eterno, dialogando seja com Camões, seja com Vinícius de Moraes. O amor de Pedro e Inês, talvez tenha suplantado aquele inscrito nos sonetos camonianos ou vinícius-moraesianos, na medida em que, não sendo eterno apenas enquanto durou, prevaleceu à morte (ou será que só se tornou eterno devido à morte da protagonista?), conforme inscrito no túmulo de Pedro, em Alcobaça A:E:AFIN:DOMUDO ─, colocado estrategicamente em ângulo com o de Inês, de modo a que eles possam estar frente a frente, quando se encontrarem na vida eterna.

Assim, mais uma vez, por intermédio de um veículo popular, o Autor trabalha conteúdo canônico, dialogando intertextual e criticamente com a História, com a Literatura, suscitando no Leitor(a), esperamos, o desejo de explorar as sugestões aí contidas, de modo a que o amor de Pedro e Inês continue se perpetuando na memória dos brasileiros, portugueses, espanhóis, franceses, ingleses… Enfim, um caso de amor inesquecível… até o fim do mundo.

Abril/2015

Profa. Dra.Flavia Maria Corradin
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Citar como:

CORRADIN, Flávia Maria. “O cordel a perpetuar o amor de Pedro e Inês”. Apresentação in: SILVEIRA, Francisco Maciel. O caso de Pedro e Inês: Inês(quecível) até o fim do mundo [ABC de Literatura]. Ilustrações de Dan Arsky. São Paulo: Kapulana, 2015. (Série Intersecções Literárias). http://18.231.27.148/o-cordel-a-perpetuar-o-amor-de-pedro-e-ines-flavia-corradin-kapulana/

Referências

[1] O Projeto Autor por Autor, dirigido por Francisco Maciel Silveira e coordenado por Flavia Maria Corradin, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo e objetiva o ensino da Literatura através de textos teatrais, poéticos ou ficcionais cujo tema e/ou motivo trate(m) a vida e obra de autores portugueses.

[2] Pedro I (Coimbra, 8 de Abril de 1320 – Estremoz, 18 de Janeiro de 1367) foi o oitavo Rei de Portugal. Mereceu os cognomes de O Justiceiro (também O Cruel, O Cru ou O Vingativo), Era filho do rei Afonso IV e sua mulher, Beatriz de Castela. Pedro I sucedeu a seu pai em 1357.

[3] D. Inês de Castro (Galiza, 1320 ou 1325 – Coimbra, 7 de Janeiro de 1355) foi uma nobre galega, amada pelo futuro rei D. Pedro I de Portugal, de quem teve quatro filhos. Foi executada às ordens do pai deste, o Rei D. Afonso IV.