As aventuras de Ngunga, de Pepetela: lembranças e mensagens
Os seguintes textos compõem a edição brasileira da Kapulana, comemorativa dos 50 anos de As aventuras de Ngunga, de Pepetela. Fazem parte da seção denominada Lembranças e Mensagens, e representam os sentimentos e pensamentos de leitores desse clássico da literatura africana, de amigos e de companheiros de luta do combativo e sensível escritor angolano Pepetela.
MIA COUTO [MOÇAMBIQUE]
A escrita de Pepetela transporta-nos para as histórias da nossa História com a proximidade de quem vive por dentro a realidade angolana e a distância de quem sonhou um outro mundo. Pepetela foi guerrilheiro contra as velhas injustiças, foi cidadão quando se construía uma nova nação e foi crítico quando foi necessário denunciar as novas elites do seu país. Mas acima de tudo continua a ser um escritor que nos orgulha a todos nós, cidadãos da língua portuguesa.
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RITA CHAVES [BRASIL]
Mais que de um só escritor, em As aventuras de Ngunga temos um livro de um tempo e de um lugar. É a expressão de uma utopia que tomou conta de muitas gerações, de uma gente capaz de suspender o medo e, em seu lugar, erguer a esperança. Os anos eram os de 1960/70 e o chão era de uma Angola em movimento, de um território que saía de suas fronteiras e investia na transformação. Nem o canhão, nem a escrita — aliados na dominação, como bem define Manuel Rui em emblemático ensaio sobre as tradições orais — foram capazes de deter Ngunga ou de parar essa literatura que nos faz pensar e querer continuar imaginando um mundo mais justo. Como muitas vezes mais, Pepetela se faz intérprete dessa corrente e partilha a sua voz com a de tantos outros personagens que se moviam pelos terrenos minados, movidos por um sonho mais poderoso do que as armas do inimigo. Dessa invenção, participaram personagens de papel como Comandante Nossa Luta, Comandante Mavinga, professor União e Uassamba, tão misteriosa em sua beleza, e personagens reais, mulheres, homens e crianças que emprestaram suas vidas a uma causa.
Com seu talento excepcional, o autor soube associá-los e converter em energia viva os sinais da utopia, aquela utopia concreta que resiste a tantos ventos. Se o sonho do socialismo se esfumou, adiado talvez para outras idades, como insistimos em acreditar, o sonho de Angola está vivo e se reinventa no Ngunga que guardam no peito o escritor e alguns de seus companheiros de luta. E outros que prosseguem na vida difícil de cada dia resistindo ao desalento. E nós, leitoras e leitores apaixonados, só queremos acompanhá-los na esperança de novos dias. E, nos dizendo de um certo tempo e um certo lugar, de forma tão verdadeira, a narrativa salta para além desses limites e nos entrega a força de uma humanidade que nos faz melhores. Nessa comunhão reside a razão de ser da literatura que, em sua tão difícil definição, insiste em perdurar nesse mundo hostil.
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JOFRE ROCHA [ANGOLA]
Tenho a agradecer ao talento de Pepetela em As aventuras de Ngunga, a perícia com que nos transporta para o universo dos homens que fazem a História, de que ele próprio faz parte, num plano de realidade crua mas humanizante, onde se entrechocam culturas, reminiscências do passado, avanços e recuos, crendices, afectos desencontrados.
Abraça-nos então a vivência dos personagens mergulhados num idealismo não isento de interrogações, temores e incertezas que a ignorância e a superstição muitas vezes alimentam, mas que se revigora quotidianamente na vontade inabalável de vencer.
Bem haja, escritor Pepetela!
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LUÍS BERNARDO HONWANA [MOÇAMBIQUE]
Num momento do processo de afirmação das nossas literaturas em que o movimento geral poderia ainda ser definido como o de protesto e tomada de consciência — qualquer coisa que nasce, fermenta e ganha corpo nos corredores da clandestinidade, num tempo de espera, As aventuras de Ngunga de Pepetela é a primeira obra que é engendrada no próprio “maquis”, como nessa altura aprendemos a designar o espaço da luta armada de libertação nacional.
Do universo da CONCP eu já tinha como referências literárias (e também como amigos pessoais, pois conhecemo-nos ainda em Portugal no tempo de exílio, o Luandino Vieira e o Manuel Rui) além, bem entendido, dos clássicos da “Mensagem” e da Casa dos Estudantes Império. O Pepetela conheci-o na minha primeira ida a Luanda, como parte da delegação moçambicana às cerimónias da proclamação da independência de Angola. Apresentou-mo o Rui Mingas.
E porque já tinha lido As aventuras de Ngunga e sabia de tudo quanto na altura já se tinha difundido sobre a génese desse livro senti-me imediatamente amigo de Pepetela, sem embargo do seu trato meio sacudido a que a hirsutez de aspecto não fazia senão acentuar. (Juro que o som familiar que tem para um ouvido moçambicano o nome Ngunga, para nós um apelido, não teve e continua a não ter nada a ver com o assunto…)
E fico cada vez mais amigo de Pepetela, mais comovido com a limpidez daquelas histórias, mais solidário com o povo irmão de Angola e mais admirador da sua grandiosa literatura — de cada vez que releio esse livro saboroso que deu certo quando tinha tudo para dar errado: um texto que um “camarada Quadro” se põe a escrever porque sentiu que os alunos das escolas do MPLA que vem visitando não têm material de leitura e também porque é oportuno naquela conjuntura produzir histórias que inspirem os patriotas, que ajudem a compreender a luta e a difundir a mensagem…
Quem é que disse que a literatura que se faz por encomenda não pode produzir verdadeiras obras-primas (quando quem a subscreve tem real talento)?
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FRANCISCO NOA [MOÇAMBIQUE]
Trata-se de uma das obras que, ao lado de Luuanda de Luandino Vieira, Nós matámos o Cão Tinhoso! de Luís Bernardo Honwana, Quem me dera ser onda de Manuel Rui, preencheu, de forma prodigiosa, a nossa imaginação de adolescentes, em plena ebulição revolucionária e que envolveu as nossas independências na década de 70. O facto de terem como protagonistas crianças e adolescentes desencadeou, em cada um de nós, uma imediata e festiva identificação. No caso específico da obra de Pepetela, há toda uma vivacidade envolvente não só na inquestionável mestria da arte de narrar, mas também no desfile de personagens inesquecíveis como Comandante Nossa Luta, Comandante Mavinga, professor União, a bela e enigmática Uassamba, sem obviamente esquecer o próprio Ngunga. É, pois, à volta deste, onde se concentram e gravitam as inúmeras e apelativas peripécias, as decepções, os sonhos de uma nação, e muito particularmente todo um código de valores que tanto estruturavam as mensagens cruzadas no texto, como ajudaram, de forma muito didáctica, a inseminar a nossa imaginação, ajudando-nos a melhor interpretar o mundo novo que nascia diante dos nossos olhos ainda prenhes de inocência. A transformação de Ngunga, no final, representava todas as mudanças individuais e colectivas que as nossas jovens nações experimentavam, num genuíno exercício ritualístico de passagem.
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CARMEN TINDÓ SECCO [BRASIL]
As aventuras de Ngunga é um livro encantador. Quando me preparava para prestar o concurso para a cadeira das Literaturas Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1993, li essa obra de Pepetela com meus alunos do Pedro II, colégio em que lecionei antes de ingressar na UFRJ. Houve interesse por parte dos discentes da quinta série, pois a coragem exemplar de Ngunga e as lições de vida e liberdade por ele transmitidas foram alvo de grande admiração.
A narrativa, assemelhando-se a uma singela epopeia do MPLA, erige o protagonista, Ngunga, como “pioneiro sem mácula”, “herói mítico”, amante dos pássaros, dos rios, da natureza. Há um olhar e uma dicção poética captando a flora, a fauna da geografia angolana, em meio à luta de libertação vivenciada pelo menino órfão que perdera os pais na guerra.
O trecho poético e bastante político que mais me emocionou foi, ao final, quando compreendi que Ngunga “está em todos nós, os que recusamos o arame farpado”, “os que queremos o mel para todos”.
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JOSÉ LUÍS CABAÇO [MOÇAMBIQUE]
Antes de ser amigo do Pepe eu já me sentia seu companheiro de jornada, juntos na mesma picada, sonhando sonhos paralelos. Mayombe foi a referência da gesta dos nossos povos, do heroísmo e dos sacrifícios consentidos, convivendo com problemas que se adivinhavam e contradições incubadas.
Neste caleidoscópio de entusiasmos, certezas e angústias me veio parar às mãos outro livro de Pepetela escrito nos anos da luta de libertação: As aventuras de Ngunga. E se Mayombe me surgiu como um convite à reflexão sobre os obstáculos a superar pela geração que aceitara o grande desafio, nessas Aventuras eu li (ou quis ler) a generosa transparência do empenho dos Pioneiros a nos alertar para a importância de preservar a essência da Libertação do Povo e resgatar, a cada momento, os ideais que a inspiraram. Hoje, passado meio século, na leitura dessa narrativa voltamos a perceber essa utopia figurada em Ngunga como, mais que uma escolha, uma necessidade para seguirmos. Ao amigo e ao escritor agradeço a lucidez e a beleza da sua mensagem.
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INOCÊNCIA MATA [SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE]
Embora ciente de que vale sempre repetir o óbvio, Pepetela é um escritor sobre o qual apetece dizer que dispensa apresentações. Vale, pois, a pena apresentar aquele que ganhou o nome na guerrilha: Pepetela (pestanas em kimbundu), nome por que é conhecido Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nasceu em Benguela a 29 de Outubro de 1941. Fez os estudos primários na sua terra natal e os secundários no Liceu Diogo Cão, na antiga Sá da Bandeira, hoje Lubango. Completou os estudos secundários em 1958, ano em que rumou para a então metrópole, com o propósito de estudar Engenharia no Instituto Superior Técnico. Em 1961, decide mudar de curso, tendo-se matriculado no curso Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da então Universidade Clássica de Lisboa, hoje apenas Universidade de Lisboa. Em Lisboa frequenta a Casa dos Estudantes do Império. Narrativizaria essa experiência e essas vivências em A Geração da Utopia (1992), um romance de forte projecção auto-biográfica.
A partir da fermentação político-ideológica vivida na “Casa”, decide-se pelo exílio em França, em 1962. Em 1963 torna-se militante do MPLA – Movimento Popular da Libertação de Angola, para depois rumar à recém-independente Argélia onde estudará Sociologia. Na capital argelina, onde será co-fundador do Centro de Estudos Angolanos, faz parte da equipa da História de Angola (a primeira escrita por angolanos).
Em 1969 é integrado na luta armada na Frente de Cabinda com funções na área da Informação e da Educação, ao mesmo tempo que participava na guerrilha. Ainda durante o ano de 1969, escreve Muana Puó, romance que só viria a ser publicado em 1978. Durante as pausas da guerra, nos anos de 70 e 71, como prolongamento pessoal de um comunicado de guerra, escreve Mayombe, que só seria publicado, após aturada reflexão pessoal e curiosa autorização, em 1980. Este romance valer-lhe-á, no mesmo ano, o Prémio Nacional de Literatura. Mas seria a necessidade de produzir material didáctico para ser utilizado na alfabetização das populações das zonas libertadas da guerrilha do MPLA que o levou a escrever As Aventuras de Ngunga. É que em 1972 é deslocado para a Frente Leste para, no ano seguinte, ocupar o cargo de Secretário Permanente da Educação e Cultura. É no desempenho destas funções, e dada a manifesta falta de materiais didácticos, que escreve as estórias que darão origem a As Aventuras de Ngunga, que serão primeiro distribuídas em exemplares mimeografados em 1973 e, em 1977, publicadas na forma que hoje se conhece.
As Aventuras de Ngunga é uma narrativa breve (não cabe no âmbito deste texto uma discussão genológica, se se trata de um romance ou uma novela) sobre o menino órfão-futuro-guerrilheiro, sobre combatentes como o guerrilheiro Nossa Luta, o comandante Mavinga, o professor União, a velha Ntumba ou mesmo Chivuala, o companheiro de Ngunga, que são representados com signos que constroem uma isotopia de (quase) perfeição humana – a isotopia do Homem Novo. Por isso, diferentemente das personagens de outros romances, mesmo os seus primeiros romances – como Ele e Ela (Muana Puó, 1969), Sem Medo e João (Mayombe, 1980), Alexandre Semedo, Vilonda, Ulisses/Joel (Yaka, 1984); Lueji e Tchinguri, uma personagem extraordinária que desafia os nossos limites de empatia e de construção de sentidos éticos e morais (Lueji, 1989), Aníbal, Sara e até Elias (A Geração da Utopia, 1992), e mesmo João Evangelista (O Desejo de Kianda, 1995) – que são “andarilhos de fronteiras”, de ideias, de afectos e de sentimentos, as personagens de As Aventuras de Ngunga, são “planas”, no sentido em que, na sua constituição e desenvolvimento, são de percepção linear, sendo os (seus) defeitos e virtudes de carácter usados para desencadear excursos moralizantes e doutrinários: o valor da escola e do saber, a relação entre alfabetismo e liberdade, o sentido da solidariedade e de entre-ajuda, a humildade e o espírito de colectivismo, a sinceridade contra a mentira…. Mesmo considerando o perfil doutrinário da narrativa, ninguém pode discordar de que “a escola era uma grande vitória sobre o colonialismo”, como disse a Ngunga o admirável comandante Mavinga, ele próprio analfabeto… Compreende-se, assim, que em algumas classificações esta novela aparece no acervo da literatura (infanto-)juvenil. Uma vez que as personagens não são “volúveis”, por elas não se opera nenhum descentramento a fim de que se possa vislumbrar os limites de cada visão e aportar o cais da multiplicidade de perspectivas para conformar uma realidade, abarcá-la e traduzir a sua complexidade, possibilitando, deste modo, uma percepção dessa realidade, segundo vários interesses e afectos.
Com essas personagens, consagram-se as identidades perfeitas de mitos e figuras erigidas a heróis nacionais (e o primeiro é, sem dúvida, Nossa Luta que cai em combate), diferentemente do que se verá em Mayombe, por exemplo, também um romance de guerrilha. É que As Aventuras de Ngunga, que se pode considerar um romance de formação, é uma obra em que a verve pedagógica por/sobre uma sociedade nova atinge a sua realização plena, tendo em conta, sobretudo, o “apelo da modernidade” e a necessidade de combate ao obscurantismo, reminiscências da linguagem materialista do “partido da vanguarda” da nação.
Gosto da simplicidade da escrita de As Aventuras de Ngunga, gerada na efervescência da luta de libertação nacional. Uma narrativa que me faz lembrar essoutra, anos depois, A Montanha da Água Lilás (2000): a diferença entre as duas não é de natureza, é de tempo – tal como esta novela, também As Aventuras de Ngunga é uma “Fábula para Todas as Idades”. Com efeito, apesar de esta ser uma narrativa de guerrilha e aquela uma fábula em que, por intermédio da metáfora da água lilás, se questionam os motivos por detrás do prolongar da guerra em Angola, ambas as narrativas se propõem a ensinar cidadãos de todas as idades quanto custou a liberdade.