Publicado em

O cordel a perpetuar o amor de Pedro e Inês, por Flávia Corradin

Francisco Maciel Silveira dá a lume, mais uma vez, um título, veiculado no formato de cordel, ainda dentro dos pressupostos do Projeto Autor por Autor1. Nesta investida, trata da decantada história de amor entre Pedro2 e Inês de Castro3, tema há mais de trezentos anos invadido pela literatura de diferentes países, bem como por outras artes, dentre as quais se destacam a pintura, a escultura, para não falarmos do cinema.

O Autor dedica-se ao ensino há mais de quarenta anos, tendo trabalhado no, hoje chamado Ensino Médio, para fincar seus pés no ambiente universitário, dedicando especial atenção à Literatura, o que lhe dá cabedal para dialogar com conteúdo tão celebrado, trazendo-lhe, entretanto, novas achegas no âmbito formal.

Estampada numa fôrma popular, como é o cordel, Francisco Silveira, parte, entretanto da estrutura da epopeia, ao pedir camonianamente apoio à musa do cordel. Assim, rebaixa a elevada oitava rima, com versos decassílabos, característicos das epopeias clássicas, às sextilhas, estrofes de seis versos, em octossílabos, seguindo um esquema rímico variável “pra não cansar a audição”, sem, no entanto, descurar da estrutura veiculada pela maioria das epopeias modernas, em que encontramos a Introdução (dividida modernamente em Proposição, Invocação e Dedicatória), a Narração e o Epílogo.

Dialogando com as epopeias clássicas, sem repeti-las, Silveira inicia seu cordel com a Invocação, em que apresenta uma espécie de lamento ao pedir a unção e mesmo o apadrinhamento do Senhor para que o leitor reconheça seus versos. Estamos, pois, diante, de mais uma inversão, quando o maravilhoso pagão, próprio das epopeias, é substtituído pelo universo cristão, reiterado no apelo à Virgem Maria e aos Anjos do Céu para que lhe deem inspiração, capacitando-o a cantar o Amor que vence a morte,/vivo além de sua duração.

No Argumento, Silveira apresenta o assunto a ser cantado, bem como os heróis de seus versos, conforme já antecipado no subtítulo, onde se lê:

ABC

do

triste e comovente amor

de

Pedro por Inês,

a triste e mesquinha

que,

depois de morta,

foi Rainha

e até hoje reina na memória e no coração do povo.

Não esquecendo o universo intertextual, o Autor pessoanamente indica que é a hora de iniciar a Narração, além de apontar para a raiz didática do texto sugerindo ironicamente que

(Se alguma palavra rara,

retirada do relicário,

se arcaísmos, minha cara,

refogem do uso diário,

saiba que a todos ampara

essa burra do dicionário.)

 

A Narração apresenta a história do “amor que, contra tudo e todos,/acabou virando infração./Infração contra as leis de Deus,/infração contra as leis da grei”, apontando ainda intertextualmente que a sandice dos amantes acabou por levá-los a um amor de perdição. Sem se afastar do relato histórico, Silveira acompanha diacronicamente os fatos, desde que Pedro viu a aia de D. Constança pela primeira vez em Alenquer até o cortejo fúnebre que a trasladou de Coimbra a Alcobaça, tornando-a rainha depois de morta. Abre, contudo, um parêntesis, para tratar da aporia que atormenta o Rei Afonso IV, autor da sentença de morte contra Inês, uma vez “que tudo e mais sempre faria/em defesa da dinastia.”.

Xico Maciel (pseudônimo? heterônimo do Autor/Professor Francisco Maciel Silveira?) dedica também atenção à relação homossexual de Pedro com seu escudeiro Afonso Madeira, contra quem inflige um dos muitos castigos ─ haja vista o que fará com os matadores de Inês ─, que lhe justificam o epíteto de cru ou cruel, mandando castrá-lo, depois de descobrir sua relação com uma dama da corte casada, conforme já apontara a crônica de Fernão Lopes, paradigma primeiro desta e de muitas outras histórias. Devemos salientar ainda que os desvarios sociopatas e a necrolatria de Pedro estariam radicadas no fato de as monarquias europeias, notadamente a portuguesa, tecerem relações endogâmicas, que levavam a toda sorte de degenerescência.

Chegamos ao Epílogo do ABC do triste e comovente amor de Pedro por Inês, um originalíssimo, se assim podemos denominá-lo, cordel épico. Aqui, sem descurar do apelo intertextual, Silveira ainda dirigindo-se à Leitora, trabalha a ideia do amor eterno, dialogando seja com Camões, seja com Vinícius de Moraes. O amor de Pedro e Inês, talvez tenha suplantado aquele inscrito nos sonetos camonianos ou vinícius-moraesianos, na medida em que, não sendo eterno apenas enquanto durou, prevaleceu à morte (ou será que só se tornou eterno devido à morte da protagonista?), conforme inscrito no túmulo de Pedro, em Alcobaça A:E:AFIN:DOMUDO ─, colocado estrategicamente em ângulo com o de Inês, de modo a que eles possam estar frente a frente, quando se encontrarem na vida eterna.

Assim, mais uma vez, por intermédio de um veículo popular, o Autor trabalha conteúdo canônico, dialogando intertextual e criticamente com a História, com a Literatura, suscitando no Leitor(a), esperamos, o desejo de explorar as sugestões aí contidas, de modo a que o amor de Pedro e Inês continue se perpetuando na memória dos brasileiros, portugueses, espanhóis, franceses, ingleses… Enfim, um caso de amor inesquecível… até o fim do mundo.

Abril/2015

Profa. Dra.Flavia Maria Corradin
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Citar como:

CORRADIN, Flávia Maria. “O cordel a perpetuar o amor de Pedro e Inês”. Apresentação in: SILVEIRA, Francisco Maciel. O caso de Pedro e Inês: Inês(quecível) até o fim do mundo [ABC de Literatura]. Ilustrações de Dan Arsky. São Paulo: Kapulana, 2015. (Série Intersecções Literárias). http://18.231.27.148/o-cordel-a-perpetuar-o-amor-de-pedro-e-ines-flavia-corradin-kapulana/

Referências

[1] O Projeto Autor por Autor, dirigido por Francisco Maciel Silveira e coordenado por Flavia Maria Corradin, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo e objetiva o ensino da Literatura através de textos teatrais, poéticos ou ficcionais cujo tema e/ou motivo trate(m) a vida e obra de autores portugueses.

[2] Pedro I (Coimbra, 8 de Abril de 1320 – Estremoz, 18 de Janeiro de 1367) foi o oitavo Rei de Portugal. Mereceu os cognomes de O Justiceiro (também O Cruel, O Cru ou O Vingativo), Era filho do rei Afonso IV e sua mulher, Beatriz de Castela. Pedro I sucedeu a seu pai em 1357.

[3] D. Inês de Castro (Galiza, 1320 ou 1325 – Coimbra, 7 de Janeiro de 1355) foi uma nobre galega, amada pelo futuro rei D. Pedro I de Portugal, de quem teve quatro filhos. Foi executada às ordens do pai deste, o Rei D. Afonso IV.