Tantos pisam este chão que ele talvez
um dia se humanize. E malaxado,
embebido da fluida substância de nossos segredos,
quem sabe a flor que aí se elabora, calcária, sangüínea?
(“Contemplação no banco”, Carlos Drummond de Andrade)
Após anos de ausência das livrarias brasileiras, somos finalmente agraciados com uma nova publicação desta obra-prima: Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. O magro e denso romance angolano impacta desde a primeira frase e, como pode gerar certo estranhamento, nesta edição [1] são apresentados brevemente alguns elementos da narrativa com o objetivo de incentivar o leitor a caminhar por este labirinto refinado. Aquele que o percorrer perceberá seu esforço recompensado por uma obra que, não se rendendo a qualquer didatismo, aposta numa composição cuja elaboração ao mesmo tempo requer e oferece ferramentas para a sofisticação do olhar.
Nestes tempos em que presenciamos atônitos o ressurgimento de uma tendência global à intolerância e aos totalitarismos, dados a maniqueísmos de toda sorte, urge combater o afluxo e recorrer a exercícios de humanização. As redes sociais têm sido um bom exemplo de arena onde algoritmos ensinam a reduzir o outro: ali, via de regra, somos induzidos por certo sentido de urgência a não lhe reservar o direito ao erro, ao diálogo, ou mesmo ao processo de aprendizado, percurso que cada um trilha a seu tempo e que exige paciência. Sob aparente fugacidade, fixamos um momento do outro como dado acabado, interditando, assim, possibilidades de transformação.
Diante de tal cenário, parece senso comum recorrer à sugestão do mergulho na literatura como remédio. A sensibilidade que aciona, o tempo que exige para contemplação, absorção e amadurecimento da apreciação, a identificação com o diferente que demanda e proporciona, a transformação de personagens diante de nossos olhos são algumas das faculdades que caminham na contramão do simplismo que facilmente se transveste em algoz. Recuperando a voz de Antonio Candido, o texto literário “não corrompe nem edifica (…); mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.
Importa salientar, entretanto, que, apesar de todo o potencial de humanização que a literatura efetivamente comporta, nem sempre é esta a vocação que privilegia. Um exemplo pode ser encontrado na pena de outro grande escritor, o nigeriano Chinua Achebe, quando ensina que o “vasto arsenal de imagens depreciativas da África que foram coletadas para defender o tráfico de escravos e, mais tarde, a colonização, deu ao mundo uma tradição literária que agora, felizmente, está extinta; mas deu também uma maneira particular de olhar (ou melhor, de não olhar) a África e os africanos que, infelizmente, perdura até os dias de hoje”.
Vale recordar que, no final do século XIX, após a famigerada Conferência de Berlim, o acirramento das disputas territoriais exigia maior firmeza na ocupação das colônias, levando as metrópoles à criação de uma série de órgãos e mecanismos de controle dos territórios e de suas populações. O contexto angolano não foi exceção. Colonizado por Portugal, cujo império precário não teve a brandura que ainda defendem alguns, foi alvo de uma violência que também se expressou na constituição de um vasto repertório discursivo a serviço da dominação. Os “Concursos de Literatura Colonial” promovidos a partir de 1926 pela Agência Geral das Colônias, com alto investimento financeiro e o objetivo de “intensificar por todos os meios a propaganda das nossas colónias e da obra colonial portuguesa”, ilustram bem como a escrita literária passou a exercer função importante nesse quadro.
Ainda que tenha se prestado ao papel de instrumento a serviço da sujeição, a literatura também pôde ser tomada pelo avesso em seu potencial criativo e transformada em “arma que eu conquistei ao outro”, como define Manuel Rui, outro escritor angolano. Desde o século XIX é possível identificar, em Angola, manifestações literárias que desafiam o padrão proposto pelo opressor. No século XX já se verifica o desenvolvimento de um projeto literário autônomo, resultado do empenho de uma geração de escritores e intelectuais entre os quais podemos situar José Luandino Vieira.
Nascido em Portugal em 1935, muda-se cedo para Luanda, onde vive sua infância. É por seu compromisso radical com a luta pela libertação nacional que se torna cidadão angolano e adota o nome “Luandino”. Em decorrência de sua atuação é preso duas vezes e tem sua vida “hipotecada por muitos anos”, desde muito jovem. Conforme conta em seus Papéis da prisão, “do Aljube, em Lisboa, ao Campo de Trabalho no Tarrafal, passando por todas as cadeias disponíveis na nossa terra de Luanda, palmilhei doze anos da estrada da minha vida”. É nesta condição de exceção, portanto, que o autor desenvolve seu primoroso trabalho literário.
Suas memórias do cárcere, ao contrário do que seria esperado, sugerem um pacto com a liberdade capaz de extrapolar o espaço da cela e inscrever as ruas de Luanda e sua cultura popular em textos que, por meio da memória e da imaginação, ajudavam a substituir a vida, para tomar de empréstimo uma expressão do escritor. Confinado em espaços que impossibilitavam outras intervenções diretas, Luandino Vieira atuou dentro de seu “particular campo de acção – o estético”. Os resultados excepcionais demonstram a eficácia da apropriação da língua portuguesa como “despojo de guerra” e o empenho em construir uma voz narrativa que, desestabilizando a lógica da opressão, engendra novos modos de dizer a realidade.
Um dos frutos deste projeto literário é a escrita, em 1967, “de um só jacto”, deste romance singular, composto no Campo de Concentração do Tarrafal, onde Luandino Vieira passou oito anos. Imerso na severidade do “campo da morte lenta”, surpreende a trilha potente e lúcida que desenha para mostrar que “não há outros homens para com eles construir o mundo. É com esses mesmos que se fará – ou nunca se fará”. A capacidade de aderir radicalmente a um projeto ético e também se colocar habilmente na pele do outro, mesmo do mais antagônico, revela como a literatura pode, sim, vestir o manto diáfano da fantasia para combater a violência objetiva do real sem prescindir da “cortesia de dar a cada um o que lhe é devido”, lembrando novamente Achebe.
O início da leitura pode provocar um choque: que língua é essa que, ao mesmo tempo, sinto que conheço e desconheço? O que ela está me contando? Quem fala e de quem fala? Na primeira sentença somos lançados no meio de uma guerra, mas, logo em seguida, adentramos uma brincadeira em um dia de sol. O que aconteceu?
O leitor que aprender a ouvir o movimento do texto notará que um dos recursos utilizados pelo escritor é a justaposição de ideias, cenas e imagens que podem parecer desconexas. Ao longo da obra, no entanto, muitas delas são retomadas, desvelando aos poucos algumas associações complexas e sempre aprofundando sentidos. Com paciência é possível construir familiaridade com os procedimentos e perceber que alguns se assemelham àqueles do funcionamento da memória, que muitas vezes irrompe de maneiras imprevistas, nem sempre lineares.
Seguindo o movimento da memória de Mais-Velho, acionada pela dor, passamos a reconhecer sua voz e outras tantas que incorpora à sua, num emaranhado cada vez mais complexo, mas também mais nítido. Lembranças, projeções e muitas indagações são misturadas ao momento real que este narrador-personagem vivencia: sua caminhada em direção ao irremediável reconhecimento da morte de Maninho e do “viver de morte” que agarrou Paizinho. Nesta deambulação conhecemos os outros três protagonistas: Maninho, Paizinho e Kibiaka. A realidade asfixiante do colonialismo obriga os companheiros inseparáveis de aventuras infantis pelos capins do Makulusu a carregarem “o alegre caixão da nossa infância” na escolha de rumos inconciliáveis: Maninho, branco nascido na metrópole (assim como seu irmão Mais-Velho) integra o exército colonial português, escolha forçosa que defende com a ideia de que “só há uma maneira de a acabar, esta guerra que não queres e eu não quero: é fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”. Paizinho, meio-irmão mestiço dos dois, participa de ações clandestinas e acaba preso pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Kibiaka, amigo negro morador do Bairro Operário, junta-se à guerrilha. Mais-Velho é aquele que segue imerso em dúvidas; o “escrupuloso” que, segundo o olhar de Maninho, não teve certeza suficiente para tomar uma decisão radical como as de seus companheiros e “limitou-se” ao trabalho clandestino. São “quatro ritmos e saberes e vidas diferentes” atravessados pela violência, inexorável.
No trajeto descobrimos pela voz de Mais-Velho que Maninho, “o melhor de todos nós”, era integrado à terra e aos seus, “ele é quem (…) bebia e comia, falava e ria sempre lá entre os que eu amava vagamundeando nas ruas solitárias e velhas da nossa terra de Luanda. E a ele a carabina escolhera. Simples buraco, fino e furo, toda a vida por ele saiu…”, “para ficar da cor da farda que lhe embrulha, tapado nas moscas, antes que a salva do estilo vai-lhe acordar no sonho de amor que, no ódio do próprio ódio, queria construir”. Descobrimos também que, se Kibiaka “segue na mata seu caminho de dignidade”, também pode ter saído de suas mãos, “que são as culpadas de ter homens com ideias e dignidade”, o balázio que roubou a vida de Maninho. E que Mais-Velho, em um gesto de solidariedade à luta, no Natal colocara “no sapatinho o único brinquedo que merece um homem digno como o meu amigo Kibiaka: Parabellum, de 9 milímetros”.
Paizinho, cuja cabeça “era uma peça de alta precisão, um instrumento afinadíssimo que ele cuidava diariamente com pensamento e acção”, que “nunca trai, porque é sério em tudo que em sua vida faz”, de “sangrenta presença” nos presságios do meio-irmão, é apresentado ao Mais-Velho de seis anos de idade ao mesmo tempo que a dor da mãe “Estrudes”: “cara desfeita e enrugada, alguma coisa lhe dói no dentro da alma é o que pode ser, pois não tira os olhos do miúdo encardido, seguro na mão da mulher negra, está quieto como se fosse de pau”. Dela conhecemos ainda a funda dor da perda do filho, as “mãos grossas de unhas curtas e negras do trabalho, aquelas pernas de varizes que não se equilibravam nos sapatos de salto alto”, de “apanhar azeitona dentro de Invernos frios e descalços da tua infância”, a “coragem de sempre perder” – quando pai Paulo afirma que Paizinho é seu afilhado com o “tranquilo riso de quem que sabe verdade ou mentira ele é que fala verdade sempre”.
Pai Paulo, colono pobre e racista, é exemplar tão verossímil da colonização lusa quanto o operário Brito, com sua consciência de classe que permite linchar publicamente um trabalhador negro. O lamento materno desta morte evoca o peso da violência colonial sobre toda uma coletividade: “este o grito só que oiço ou é coro de milhões de gritos iguais?”. A narrativa dialeticamente evidencia as contradições de um sistema extremamente embrutecedor e não interdita a complexidade a nenhuma das personagens, recuperando traços que marcam também a constituição subjetiva de todo um grupo.
O vigor da premissa, que é possível vislumbrar mesmo com a apresentação de poucos elementos, somado à extraordinária habilidade com que o escritor humaniza todas as personagens sem jamais elidir as relações de força entre elas, entregam ao leitor um texto pelo qual é impossível passar incólume. “Amar os homens é sempre uma alegria dolorosa”, afinal.
São Paulo, abril de 2019.
Jacqueline Kaczorowski
Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH/USP), com pesquisa sobre a obra Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. Membro dos grupos de pesquisa PIELAFRICA – Pactos e impactos do espaço nas literaturas africanas de língua portuguesa (Angola e Moçambique), vinculado à UFRJ, e GEHISLIT, vinculado ao Depto. de História da PUC-Minas.
Citar como:
O ARTIGO:
KACZOROWSKI, Jacqueline .“Nós, os do Makulusu: do fundo humano em cada caco”. Prefácio. In: VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/nos-os-do-makulusu-do-fundo-humano-em-cada-caco-por-jacqueline-kaczorowski/>
O LIVRO:
VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]. Disponível em: https://www.kapulana.com.br/produto/nos-os-do-makulusu/<>