Na última quarta-feira (21) comemorou-se o Dia Mundial da Poesia. A data foi criada em 1999, na XXX Conferência Geral da Unesco, com o objetivo de celebrar a leitura e a escrita.
A Kapulana tem o enorme prazer de fazer parte desta celebração com as publicações de obras poéticas de diversas autoras e autores que conduzem os leitores à reflexão da sociedade e os vastos sentimentos do mundo.
A editora selecionou diversos poemas dos livros de seu catálogo para comemorar este dia especial.
Sangue Negro
de Noémia de Sousa
Súplica
Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um tabuleiro de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a lua lírica do xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos a vida)
teirem-nos a palhota – humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
ttrem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
– mas não nos tirem a música!
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos,
e no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá pão!
E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
– Por isso pedimos,
de joelho pedimos.
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!
(04/01/1949)
★★★
Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo
de Sangare Okapi
cardume de beijos
Teu corpo tem litoral
e mangal
A brisa, que
da boca escapa
alguma linguagem
marinha
e
oral, me devolve
o cardume de beijos
★★★
Viagem pelo mundo num grão de pólen e outros poemas
de Pedro Pereira Lopes
A ilha é um mundo
A ilha é um mundo,
uma bolha de terra
sentada na água
Uma bolha de areia em pilha.
A ilha que brilha
a água que molha.
Sobre o mar como folha
a bolha que é ilha
o vento embrulha.
A bolha que borbulha
a água empilha e molha
a folha que brilha,
a ilha.
★★★
Outras fronteiras: fragmentos de narrativas
de Ana Mafalda Leite
A lenda da criação
No princípio havia chauta [deus] e a terra parada
um dia um relâmpago imenso desenhou nos céus
a chuva
que trouxe à terra o homem e todos os animais
Pousaram nos planaltos da marávia e da angónia
no topo da montanha de domué
deus, os homens e os animais
as rochas ainda mostram as antigas pegadas, uma cesta uma enxada e um pilão
em harmonia sagrada
★★★
Roda das Encarnações
de Sónia Sultuane
A fome, com cara de menino, tocou-me
os pés e o coração. A fome, no corpo faminto
de um bebé inocente,
sem idade ainda para entender
esse karma que carrega
nem para saber que cada vida exige
uma profunda aprendizagem da alma
neste universo
onde milhões de pessoas por vezes
são iludidas, sem se aperceberem
que ela se mascara de várias maneiras
e inúmeras vezes até
com cara de bebé
★★★
O cão na margem
de Luís Carlos Patraquim
O olho
intrusivo
o que vês na paisagem
se houvesse
e
dizes a palavra
muda
há uma savana anjo
que te redime
ela
pietá
a invisível árvore
e tu
filho de nada
no seu colo
★★★
de terra, vento e fogo
de Lica Sebastião
Os poemas não revelam tudo
Faltam sempre as metáforas perfeitas
para descrever a tua respiração
entre o sono e o sonho.
As palavras não cabem todas nos dicionários.
Algumas escapam à caçada Académica dos lexicólogos.
E eu que precisava tanto do sinónimo para o teu gesto
a compor-me as tranças, sorrindo…
Os poemas não são tão maravilhosos assim.
Queria que dissipassem a minha fúria quando te censuro
só porque me trazes rosas e não margaridas,
só porque estás inseguro e eu altiva,
só porque não és o Hércules, apenas tu
★★★
Sonho da Lua
de Sílvia Bragança
Queria nascer como a Lua
Queria nascer como a Lua
Ao toque do anoitecer
uma bola prateada
rolando… rolando…
segredos escondidos
quantos os tenho eu!
Segredos escondidos
quantos os tenho eu!
À Lua os entrego
Para serem seus
Para serem seus
Para serem seus
Correi, correi para as montanhas
levai tranquila a verdade
que ela perdure
por toda a eternidade
★★★
Canções do caos – Vozes brasileiras
de Adriana Cecchi, Ana Júlia Baldi, Andrea Lucia Barros e Marcella Barbieri
Maçaneta
(Adriana Cecchi)
Acho que escrevi um texto pensando em você
Eu juro, ainda não sei o que isso quer dizer
Comecei a te ver em todos os lugares
Doa mais improváveis até
Ruas, ônibus, shoppings e bares
Pense que coisa louca, até na parede eu vi o seu rosto
Mas nada me abalou mais quando, de repente, da sua boca eu senti o gosto
Por isso, antes que qualquer coisa aconteça
Deixo este bilhete pendurado na sua maçaneta
Peço que leia e não se aborreça
Não tem erro, vocâ vai ver
Passando alguns dias, é certo
irá me esquecer
★
Existência
(Ana Júlia Baldi)
Penso que existo
E a cabeçadós, a alma pesa
Mandaram-me viver
E eu não soube recusar
Agora que já sou eu
Possoser um outro?
Tenho a mim
Mas a mim não desejo
Vivo assim, sendo.
Não sei não ser
Ainda que eu queira
Querer saber não ser
A vida que me deram
Não soube aceitar
Vivo assim, sem a vida
Que todos me esperaram acreditar
★
Somente…
(Andrea Lucia Barros)
Somente você
É capaz de mexer na ferida
Que insiste em sangrar
Aberta em meu peito
Deixa à vista o coração
Mostrando todas as veias
Que me fazem
Perder a razão
Enlouquecer em pensar
Que me deixaste
Estenda-me a mão
Mostre-mea esperança
Revele-me teu sorriso
Quebre minhas defesas
Busque o melhor de mim
Encontre o amor
Enfim, pronto para ser…
… Somente seu.
★
Ponto final
(Marcela Barbieri)
Qurendo chorar por tudo, mas chora por nada.
Desenvolvendo uma nova personalidade para disfarçar aquela que ninguém quer conhecer.
Contandocada respiração, torcendo para que o ar que vem de fora acalme o caos que está por dentro.
Ouvindo a música como se a melodia fosse capaz de consertar o aperto no peito.
Pensando em como acabar com a ansiedade, sem saber o porquê de ter começado.
★★★★★