Orgia dos Loucos: Moçambique sem saída de emergência, por Vanessa Ribeiro Teixeira
Orgia dos loucos, de Ungulani Ba Ka Khosa, publicado em 1990, funciona como um caleidoscópio vertiginoso sobre a realidade de Moçambique nas décadas que se seguiram à Independência. A obra, composta por nove contos, ficcionaliza as experiências de homens e mulheres marcados pela escassez, pela guerra, pelo aviltamento da cultura endógena, pela distopia. Deparamo-nos com uma série de escritos aparentemente desconexos, mas que logo se revelam profundamente dialogantes sob uma importante perspectiva: tudo parece estar “fora da ordem”.
“O prémio”, conto que abre o livro, focaliza os princípios de uma política assistencialista, que tem data, hora e local para se fazer presente, e retrata o desespero de uma jovem mulher na sua tentativa de adiar o parto iminente, vislumbrando as benesses destinadas aos primeiros nascidos de Junho, o emblemático mês da Independência, a despeito das urgências do corpo e da nova vida que se anuncia. Do mar à terra firme, da terra ao rio, a fome e a morte são a herança de uma família. O infortúnio se torna regra, entrecortado por raros lampejos de calmaria e fartura. Esses são os elementos norteadores de “A praga”. Por sua vez, a sensação de um tempo parado, alimentado por uma rotina tão decadente quanto inalterável, dá o tom de “A solidão do Senhor Matias”. O velho comerciante branco, reduzido aos limites de sua propriedade em ruínas e à convivência com seu velho empregado negro, amarga a impossibilidade de reencontrar o caminho do mar, rumo à Europa, visto sua alma ter sido amarrada à terra que ele mesmo ajudou a violentar e explorar.
A solidão também “sorri” para a vida de Dolores, protagonista das linhas dispersas de “Fragmentos de um diário”. A narrativa, tecida em primeira pessoa, abre-nos as portas da intimidade diária de uma mulher que, através de suas reflexões, potencializa a sua presença, mesmo quando ausente. A personagem, suicida e homicida, é reconduzida à vida através do discurso e traduz sua existência numa frase: “A vida é uma estupidez, uma anedota permanente, uma passarela de esquizofrénicos.” (p. 27). Tal declaração surge como mote para o desenrolar da trama de “Orgia dos loucos”, conto que dá nome ao livro. A realidade que se anuncia é tão avessa à ideia de humanidade, que só um estado alterado de consciência poderia com ela conviver. Por entre os escombros de seres que, um dia, foram homens, um jovem procura por seu pai. O corpo do mais velho está vivo, mas a vida não existe mais: “Ninguém está vivo. Estamos mortos. Somos espíritos angustiados à porta duma sepultura decente.” (p. 35)
A solidão e a morte, a solidão da morte, são experiências extremamente democráticas entre os espaços moçambicanos, desde os grandes centros urbanos até às recônditas províncias do interior. É o que “Morte inesperada” e “Exorcismo” comprovam. No primeiro conto, a modernidade mal gerida, representada por um elevador num país subdesenvolvido, vitima mais um homem. A imagem da cabeça a ser esmagada pela máquina alegoriza a força das estruturas de poder que se impõem cotidianamente, esmagando corpos e esperanças. Já em “Exorcismo”, as bases do poder castrador são estremecidas pela insurgência de forças sobrenaturais e veem-se obrigadas a ceder espaço a um saber ancestral, evocado quando o filho de um administrador local desaparece misteriosamente e seu corpo só é devolvido pelas águas após uma sequência de rituais classificados como “obscurantistas”. A cristalização dessa lógica de poder ganha colorações satíricas nas linhas de “A revolta”, quando um governante é tomado pela cólera ao deparar-se com uma folha de jornal onde sua foto estava estampada e “borrada por excrementos de desconhecida origem”. Diante da pergunta “Eu sou merda?”, o povo permanece calado. Apesar dos homens, o Homem e a Natureza resistem. Eis a mensagem do último conto, “Fábula do futuro”, que, numa narrativa articulada em três parágrafos, aponta para alguma esperança nos dias vindouros, inspirada pela constância democrática da natureza.
Em Orgia dos loucos, todos os passos parecem caminhar para o fim, realidade sugerida, aliás, na recorrência de imagens e processos escatológicos que tecem os contos. Paradoxalmente, a experiência caótica do fim dos corpos, fim dos homens, fim do mundo, aponta, pela própria essência cíclica da vida, para a construção de outros começos.
Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2016.
Vanessa Ribeiro Teixeira – Universidade Federal do Rio de Janeiro / UNIGRANRIO
Citar como:
TEIXEIRA, Vanessa Ribeiro. “Orgia dos loucos: Moçambique sem saída de emergência”. Prefácio in: KHOSA, Ungulani Ba Ka. Orgia dos loucos. Ilustrações de Mariana Fujisawa. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África)