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Aldino Muianga, entre nós e com as gentes, por Nazir A. Can

Ambientadas nos subúrbios do período colonial, as narrativas de O Domador de Burros e Outros Contos inserem-se em uma longa tradição literária moçambicana que faz do gênero, o conto, um lugar de permanente reinvenção. A proposta de Aldino Muianga – que inicia seu projeto nos anos 80 – possui, além disso, algumas singularidades.

Articulando descrição e reflexão de modo humorado e simultaneamente didático, seus narradores fazem da oralidade menos instrumento que objeto. Com efeito, o registro linguístico do autor, mais próximo do clássico, não prescinde de uma busca pela musicalidade nem de uma pesquisa sobre a energia das tradições nos espaços marginalizados. Essa opção, aliada ao domínio do gênero e à intimidade com as paisagens socioculturais focalizadas, permite a Aldino Muianga unificar literariamente o coro de vozes erguido por suas narrativas.

A intermitência de suas personagens, em constante trânsito (os “deslocados do norte”, os que partem do campo para a cidade ou, então, os que se aventuram nas minas do “Djone” – Johanesburgo) e em contínua invenção de malabarismos que assegurem sua sobrevivência, em um momento histórico que, seguindo critérios de raça e de classe, os remete à imobilidade e à subvivência, confirma também a arguta aposta do autor em fundir as coordenadas de existência tempo e espaço. Ao trazer para suas estórias a materialidade do universo periférico (os lugares do trabalho, a gastronomia, o rumor, etc.) e o peso simbólico das práticas do sul de Moçambique, em tempos mais propensos aos “cordões sanitários”, Aldino Muianga nos convida a pensar no modo como as dinâmicas de poder criam abismos, inclusive entre oprimidos, mas também inspiram criativas formas de sublevação.

A figura do colonizador é, todavia, residual nestas narrativas. O que não reduz o impacto de sua presença. Ela se faz sentir de maneira subterrânea, mas contundente, a partir da inscrição de uma estrutura internalizada de violência (“A tensão pega-se com as mãos”) que corrói os elos comunitários (“Tudo verga, em desequilíbrio”). Nesse contexto, enquanto algumas personagens se empenham “em tácticas para envolver inocentes nos males que enferma a comunidade”, outras são exploradas “até ao tutano dos ossos”. Há ainda aquelas que exercitam estratagemas, nem sempre legais, para minimizar a precariedade a que são submetidas. Finalmente, existem outras que apenas julgam, no quadro, por exemplo, das tradicionais banjas. Ninguém, porém, escapa do escárnio dos narradores. Nem mesmo os desvalidos: “O que estamos aqui a fazer é o mesmo que esfaquear um morto – filosófica e fúnebre opinião de um velho mestiço (…) Sentara-se na ponta de uma fila, no meio da concentração, no estratégico ponto onde se inicia o circuito da caneca”.

O conflito, enquanto motor do conto, mas também, em sentido mais lato, enquanto elemento estruturador da sociedade colonial, confere unidade às sete narrativas que se seguem, elaboradas por um autor que faz entrecruzar de maneira instigante forma e conteúdo, escrita e oralidade, tempo e espaço, história e estória. Que Aldino Muianga, no Brasil, não se fique pela estreia. Mas que ela, entretanto, seja saudada como merece.

Outubro de 2015.
Nazir Ahmed Can
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Citar como:

O ARTIGO:
CAN, Nazir Ahmed. “Aldino Muianga, entre nós e com as gentes”. Prefácio in: MUIANGA, Aldino. O domador de burros e outros contos. São Paulo: Kapulana, 2015. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/aldino-muianga-entre-nos-e-com-as-gentes-de-nazir-ahmed-can-kapulana/>

O LIVRO:
MUIANGA, Aldino. O domador de burros e outros contos. São Paulo: Kapulana, 2015. [Série Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/o-domador-de-burros-e-outros-contos/>