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A oficina de Nazir Ahmed Can em “campos, espaços” da escrita moçambicana, por Rita Chaves

Seis anos após o lançamento, em Moçambique, de Discurso e poder nos romances de João Paulo Borges Coelho, o primeiro trabalho exaustivo sobre o ficcionista moçambicano que acaba de ser publicado pela Kapulana, Nazir Ahmed Can entrega ao leitor brasileiro O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. Durante esse período, a capacidade analítica de seu autor materializou-se em livros coletivos e em algumas das melhores revistas acadêmicas do Brasil e não só, revelando um leitor profundamente interessado na literatura do continente africano. Foi também esse o tempo que do território moçambicano, solo inicial de suas pesquisas, ampliou seu olhar arguto e sensível na direção de países como Angola e Cabo Verde, incorporando ainda espaços pouco palmilhados entre nós como  alguns países situados no Oceano Índico. Assim, em suas análises, nomes como Ondjaki, Ruy Duarte de Carvalho, Mario Lúcio de Sousa e Ananda Devi vieram se associar a João Paulo Borges Coelho e outros moçambicanos como Luís Bernardo Honwana, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa e Helder Faife, alguns dos nomes aqui visitados.

Nesse movimento, o pesquisador habituado a romper fronteiras físicas transitou por diferentes gêneros literários para investigar problemas fundamentais da produção africana, menos empenhado em encontrar respostas do que no compromisso de formular questões – marca que define uma qualidade do intelectual contemporâneo de seu tempo. Nesse volume em que volta a se concentrar em Moçambique, notamos que tal regresso ao lugar de partida articula-se a uma notável capacidade de renovar o modo de percebê-lo. A partir do(s) conceito(s) de espaço, Nazir Ahmed Can avança no processo de análise e interpretação de textos que espelham e constroem as intrincadas relações entre ficção e realidade e convida-nos a uma viagem em que a mobilidade é, mais que um objeto, um modo de ver o mundo, o literário e aquele que catalisa a escrita das tantas páginas examinadas.

 

Na escolha do conceito de campo intelectual, cunhado por Pierre Bourdieu e muito utilizado no domínio das ciências sociais, marca seu apreço pela interdisciplinaridade como método, mas sabe evitar sua utilização como um recurso meramente terminológico para o exercício metalinguístico tão a gosto de algumas modulações críticas. Ao contrário, fugindo à tautologia, suas análises têm no fenômeno literário um cais de partidas e chegadas, expressando o firme propósito de captar vários movimentos para focalizar com pertinência e respeito inclusive um repertório ainda pouco divulgado como o identificado com o símile campo. Para isso concorrem o seu conhecimento do lugar, as suas vivências na realidade viva das ruas que compõem o espaço dos escritores e seus personagens. A pesquisa no terreno iniciada há mais de dez anos está na base de uma experiência capaz de facultar ao leitor brasileiro o acesso a todo um universo inexplorado, sem a trivial convocação à bênção paternalista que traduz alguns de nossos equívocos na relação com as literaturas africanas.

No corpo a corpo com a escrita dos autores visitados, reconhecendo sempre que a literatura é a arte da palavra, definição banal mas às vezes ignorada por tantos estudiosos, ele perscruta a linguagem e seus artifícios na tarefa de desvelar os projetos artísticos que constituem a literatura no país. A concepção de insílio surge como uma chave para observar alguns dos impasses vividos pelos escritores moçambicanos, e, sobretudo, compreender como os dilemas vividos no tempo e no espaço que respiram são operados na estrutura de seus textos. Um quadro assim configurado explica a presença da tradução como um procedimento que se impõe na mediação de mundos misturados e mesmo contraditórios. Sem diluir a contradição que define espaços socioculturais marcados pela diferença e pela desigualdade, ela favorece hipóteses de diálogos entre as pontas, recorda-nos o autor.

Com uma fina seleção de instrumentos de análise e a atenção posta em referências teórico-críticas, como Edward Said, Bernard Mouralis e Antonio Candido, por exemplo, ele procura também captar as redes que envolvem a literatura como instituição, identificando o seu lugar na dinâmica social e política de um estado nacional de formação recente e convulsionada. Contrapondo-se aos procedimentos meramente judicativos e aos apelos à celebração, Nazir Ahmed Can defende o direito à exigência, a que em 1994 já se referia Ruy Duarte de Carvalho. O processo de descolonização do conhecimento e do imaginário no território das chamadas “Africanas” tem em sua reflexão uma forte aliança porque nela estão inscritos os sinais da maturidade desejada por aqueles que nesse barco viajam desde há muito ou em tempos mais recentes.

São Paulo, 10 de junho de 2020.

Rita Chaves
Universidade de São Paulo.

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O ARTIGO:
CHAVES, Rita. “A oficina de Nazir Ahmed Can em ‘campos, espaços’ da escrita moçambicana”. Prefácio: In: CAN, Nazir Ahmed. O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. São Paulo: Kapulana, 2020. [Ciências e Artes] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/a-oficina-de-nazir-ahmed-can-em-campos-espacos-da-escrita-mocambicana-por-rita-chaves/>

O LIVRO:
CAN, Nazir Ahmed. O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio. São Paulo: Kapulana, 2020. [Ciências e Artes] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/o-campo-literario-mocambicano-traducao-do-espaco-e-formas-de-insilio/>