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Posfácio do livro “Roda das encarnações” – por Francisco Noa

Este é o quarto livro de poesia de Sónia Sultuane – Sonhos (2001), Imaginar o Poetizado (2006) e No Colo da Lua (2008) – e que se inscreve numa singular trajetória de uma escalada em que o acento na sensação se afirma como inapagável imagem de marca. Marca que adquire agora novos contornos, já insinuados em No Colo da Lua, onde claramente o misticismo se posiciona para funcionar como expressão apoteótica (ou superação?) da volúpia sensorial que define o estilo criativo desta voz que se insinua nesta e noutras margens do Índico.

            E é logo o título que nos prepara não para uma ruptura, ou inversão, mas para uma espécie de aliança estruturante entre o pendor sensorial e o apelo místico. A roda das encarnações convoca necessariamente as doutrinas sobre a transmigração da alma ao longo de tempos imemoriais, de vidas anteriores, de emoções não resolvidas nessas mesmas vidas. Isto é, aquilo a que vulgarmente se chama karma ou destino e que teria a ver com o ciclo de intenções, ações e consequências que precisa ser quebrado para ultrapassar e resolver uma espécie de bloqueio encerrado… na roda das encarnações.

            E a poesia parece funcionar, neste caso, como tentativa de purificação, de redenção e de sublimação dos desequilíbrios e das cargas negativas acumuladas nas diferentes vidas passadas. Obviamente, tudo isto só fará sentido para quem acredita na encarnação. Falo, entre outros, dos praticantes do hinduísmo, do budismo, ou das doutrinas místicas do Egito antigo. O espiritismo, entretanto, entende que essa transmigração não pode ser aleatória, mas deve representar uma progressão.

            Outra possibilidade, para quem não entende ou se distancia destas doutrinas, a decisão mais razoável, porque pragmática, é a do leitor fazer um pacto tácito e comunicativo com os poemas que esta obra nos proporciona e que oscilam entre a materialidade algumas vezes crua das sensações e a espiritualização das mesmas.

            No poema a abrir, “Roda das Encarnações”, título homônimo da obra, os dados ficam lançados:

 

            Sou os olhos do Universo,

                a boca molhada dos oceanos,

                as mãos da terra,

                sou os dedos das florestas,

                o amor que brota do nada,

                sou a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o

                mundo,

                sou o que sinto sem pudor,

                […]

                sou o cosmos

                vivendo na harmonia da roda das encarnações.

 

            Surpreendemos, aqui, aquela que vai ser a nota dominante, contraditória por um lado, mas ao mesmo tempo conciliatória entre uma dimensão transcendente, cósmica (Sou os olhos do Universo/ sou o cosmos/ vivendo na harmonia da roda das encarnações) e uma dimensão sensualista, com um caráter transgressivo e lúbrico (sou o que sinto sem pudor). Neste particular, é como se assistíssemos a uma deriva pessoana de sentir tudo de todas as maneiras ou de então viver tudo de todos os lados, como se o sentir fosse, para todos os efeitos, uma espécie de centro existencial. Veja-se “Alma Inquieta”:

 

            fazendo calar o tropel sonoro

                da minha alma inquieta, sensorial,

                num recanto qualquer

                do jardim dos meus sentimentos.

 

            E num poema como “O teu nome é paixão”, a sensação emerge como a vertigem de uma onda, em que a conexão com o outro que se deseja e com quem se estabelece um diálogo íntimo faz com que tudo tenha sentido na voz que entretanto se agiganta:

 

            sinto que toda eu sou um poema dos sentidos, exuberante,

                cheia de viço e força, como se o meu corpo fosse um tronco

                onde o látex rebenta em belas lágrimas de âmbar.

                sinto-me analfabeta do amor, face à grandeza do teu amor

                sim o teu amor!!! …e que amor!!!….

 

            Não admira, pois, que seja a sinestesia a figura retórica que sobressai em porções generosas no lirismo poético de Sónia Sultuane. Exuberante rapsódia de sensações e emoções, a sinestesia acaba por instituir-se como reinvenção da própria sensação, seja ela tátil, visual, olfativa ou mesmo sonora:

 

            Um poema de descontentamento

                que enrola os meus sentimentos

                num xaile negro e na voz desconhecida

                que canta a minha dor.

 

            Seria ilusório, no entanto, acreditar que a peregrinação poética e sensorial de que o leitor é testemunha e cúmplice, nesta obra, assenta em exercícios gratuitos de irracionalidade lírica. A comprová-lo estão, entre outras, as demonstrações reiteradas de uma consciência do próprio fazer poético, de que poesia, afinal, são palavras: “As palavras são a exterioridade que reveste o meu coração” (Palavras); “Caminho com meus pés sem medo das palavras” (Vocabulário); “Só tu conheces o texto onde me reescrevo” (Pontuação); “Por ti/ dou todos os verbos autênticos que conheço” (Gramática).

            Será, porém, na espiritualização das sensações, no misticismo que atravessa grande parte dos poemas de Roda das Encarnações, onde uma espécie de aprofundamento e questionamento da existência individual, numa perspectiva atemporal, nos transporta para uma dimensão outra, diríamos mesmo inapreensível. Isto é, a mesma voz poética que, em algum momento, e assume como “uma vagabunda/ no mundo dos sentimentos”, procura, agora, levar-nos mais longe.

            Tal é o caso de uma viagem imaginária, difusa e onde o próprio limite é o Universo:

 

            nessa viagem de sonho sem norte nem sul

                procurando dentro de mim os desconhecidos

                oceanos que me purificarão,

                procurando dentro de mim a essência

                que mate a minha imensa sede de saber

                com a certeza de apenas servir a verdade

                do que sou

                nesta nova missão espiritual.

 

            E a poesia vai-se derramando numa religiosidade sem religião, onde Deus, Natureza, Universo, Tempo, Lugar, Cosmos, karma se entrelaçam num círculo mais de busca de transcendência do que propriamente da sua afirmação ou realização.

            E na intensa e envolvente dicotomia vida-morte, emerge um sentido de mortalidade da qual se renasce quase que indefinidamente, numa aparente negação dessa mesma dualidade. E aí percebemos que, sair da roda das encarnações, quando se sai, mais do que redenção, significa sobretudo abraçar a eternidade, superação das prisões que o corpo, isto é, as sensações foram engendrando na travessia do tempo e da memória.

Setembro de 2016.

Francisco Noa – Ensaísta, pesquisador de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), Moçambique.

Citar como:
NOA, Francisco. “Posfácio do livro Roda das encarnações”. Posfácio in: NOA, Francisco. Roda das encarnações. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)

Prefácio da 1ª edição moçambicana de Roda das Encarnações, de Sónia Sultuane, 2016 (Fundação Fernando Leite Couto). A ortografia foi atualizada em conformidade com o Acordo Ortográfico de 1990.

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VIMA LIA DE ROSSI MARTIN

VIMA LIA DE ROSSI MARTIN é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e professora de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Atua na graduação e na pós-graduação e é membro do Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil África (USP).

Publicou artigos em revistas nacionais e internacionais e também em livros. Desenvolve projetos de pesquisa nas áreas de literatura e marginalidade e ensino de literaturas de língua portuguesa.

É autora de obras didáticas de Língua Portuguesa para o Ensino Médio. Escreveu o posfácio do livro Nós matamos o Cão Tinhoso!, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, da edição de 2017 da editora Kapulana.

OBRAS DA KAPULANA

MARTIN, VIMA L. R.. “A violência do colonialismo pelo olhar de Luís Bernardo Honwana”. Posfácio in: HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso!. São Paulo: Kapulana, 2017. [Vozes da África]

MARTIN, VIMA L. R.; MORAES, Anita M. R. de. O Brasil na poesia africana de língua portuguesa – antologia. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

MARTIN, VIMA L. R.; MORAES, Anita M. R. de. “O Brasil e a poesia africana de língua portuguesa: perspectivas de leitura”. Posfácio in: .O Brasil na poesia moçambicana – antologia. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]

 

OUTRAS PUBLICAÇÕES

  • Revista Via Atlântica n. 34: Literatura e jornalismo. 34. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 2018. v. 1. (Org. com CHAUVIN, J. (Org.) ; SALLA, T. M.)
  • Comparativismo contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Portal de Livros Abertos da USP, 2017. v. 1. (Org. com VECCHIA, R. ; VASCONCELOS, M.)
  • Veredas da Palavra. 1. ed. São Paulo: Ática, 2016. v. 3. (Org. com ALVES, R. H.).
  • Revista Via Atlântica n. 28: Literatura e educação. 1. ed. São Paulo: , 2015. v. 1. (Org. com REZENDE, N. L.)
  • Língua Portuguesa. 1. ed. Curitiba: Positivo, 2013. v. 3. (Com ALVES, R. H.)
  • Língua Portuguesa – Projeto ECO. Curitiba: Positivo, 2010. v. 3. (Com ALVES, R. H.)
  • Literatura e marginalidade. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2008. v. 1.
  • A língua portuguesa no mundo. São Paulo: Humanitas, 2008. v. 1. (Org. com Lima-Hernandes, M. C.; MARÇALO, M. J.; MICHELETTI, Guaraciaba)
  • Revista Via Atlântica n. 12. , 2007. v. 1. (Org. com CHAVES, R.)
  • Diálogos Críticos. Literatura e sociedade nos países de Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: Arte e Ciência, 2005. v. 1.
  • Revista Via Atlântica n. 6. 1. ed. São Paulo: , 2004. v. 1. (Org. com GARMES, H.; MOTTA, P.; BUENO, A. F.)
  • Revista Via Atlântica n. 7. 1. ed. São Paulo: , 2004. v. 1. (Org. com GARMES, H.; MOTTA, P.; BUENO, A. F.)
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Contação de história do livro Kambas para sempre, de Maria Celestina Fernandes, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional

A Editora Kapulana promoveu a contação de história do livro Kambas para sempre, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional

Na tarde da última quinta-feira, dia 12 de outubro de 2017, feriado do Dia das Crianças, aconteceu o mais recente lançamento da Editora Kapulana, do livro Kambas para Sempre, de autoria da angolana Maria Celestina Fernandes. O evento, uma contação dramatizada e musical da história, aconteceu na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, em São Paulo.

As artistas Mariana Rhormens e Ana Vitória Prudente apresentaram Angola, a editora Kapulana e a menina Lueji, protagonista do livro Kambas para sempre.

Antes mesmo do início da apresentação, as crianças já se aproximavam, curiosas pelos panos africanos coloridos que compunham o cenário, as capulanas, para saber o que iria acontecer. A contação teve músicas, rimas e muita interação com o público que se aglomerou para ouvir a história de Lueji.

Kambas para sempre é a história de uma menina com nome de rainha, Lueji, que aprende com a avó Cisca a importância de celebrar suas origens africanas e de ser forte para lidar com as diferenças e o preconceito.

Kambas para sempre quer dizer Amigas para sempre!

No final da apresentação, a contadora Mariana Rhormens leu uma mensagem enviada diretamente de Angola pela autora Maria Celestina Fernandes, agradecendo ao público brasileiro por ouvir sua história e expressando a importância da mensagem trazida por Lueji.

Agradecemos a todos que puderam comparecer ao evento e a parceria da Livraria Cultura que, através de disposição, apoio e gentileza, tornou possível mais uma contação bem-sucedida da Editora Kapulana.

São Paulo, 16 de outubro de 2017.

 

Saiba mais sobre o livro “Kambas para sempre”: https://www.kapulana.com.br/produto/kambas-para-sempre/

Saiba mais sobre a escritora Maria Celestina Fernandeshttps://www.kapulana.com.br/maria-celestina-fernandes/

Saiba mais sobre a ilustradora Mariana Fujisawahttps://www.kapulana.com.br/mariana-fujisawa/

Veja as fotos do lançamento: http://www.kapulana.com.br/12102017-lancamento-com-contacao-de-historia-kambas-para-sempre-na-livraria-cultura-do-conjunto-nacional-em-sao-paulo-sp/

Veja o vídeo do lançamento: https://youtu.be/0Q9HJk2FGCc


 

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ROGÉRIO MANJATE

ROGÉRIO MANJATE nasceu em 1972, em Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique.

É escritor e profissional de teatro, área na qual atua como ator, encenador e docente. Escreveu e dirigiu o premiado curta-metragem de ficção I love You (2007), e os documentários O meu marido está a negar (2007) e Quitupo Hoyê! (2015).

Atualmente, é docente e diretor do Curso de Teatro da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane.

 

OBRAS DA KAPULANA

Wazi, Contos de Moçambique, v. 7,  2017.

OUTRAS PUBLICAÇÕES

  • Amor silvestre. Maputo: Ndjira, 2002.
  • Casa em flor. Maputo: Mwananga, 2004.
  • O coelho que fugiu da história. São Paulo: Ática, 2010.
  • Wazi. Maputo: Escola Portuguesa de Moçambique; Barcelona: Fundació Contes pel Món, 2011.
  • Cicatriz encarnada. Maputo: Cavalo do Mar, 2017.

PRÊMIOS, CONCURSOS E OUTRAS PARTICIPAÇÕES

  • Prémio Literário Telecomunicações de Moçambique (TDM), Contos, 2001.
  • Prêmio União Latina do Concurso Literário Guimarães Rosa/RFI, 2002.
  • Prémio de Literatura para Crianças do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, 2002.
  • Prémio 10 de Novembro de Poesia, 2005.
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Roda das encarnações, de Sónia Sultuane

Roda das encarnações, de Sónia Sultuane

PRÉMIO FEMINA 2017 – MÉRITO NAS LETRAS – POESIA!

Em seu mais recente livro, Roda das encarnações, a poeta moçambicana Sónia Sultuane emociona o leitor ao revelar suas impressões mais profundas, como mulher, mãe, poeta e trabalhadora. Os poemas levam o leitor por um universo sensorial e místico em que as vivências espiritual e terrena se misturam.

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Lançamento no Brasil do livro Roda das Encarnações, se Sónia Sultuane

A editora Kapulana lançou, em 29/09/2017, livro de poemas da escritora moçambicana, Sónia Sultuane, inédita no Brasil

Na noite de 28 de setembro de 2017, a equipe da editora Kapulana recebeu para um evento exclusivo de lançamento de seu mais novo livro, Roda das encarnações, escritores, colaboradores e convidados que participam do processo de edição da editora e apoiam suas iniciativas em divulgar as Vozes da África no Brasil.

O evento, na sede da Kapulana em São Paulo, teve início às 19h e contou com a voz brasileira de Daisy Serena, que apresentou alguns poemas do livro com uma leitura emocionada de textos selecionados.

Na sequência, houve uma apresentação sobre a autora, pois este é seu primeiro livro lançado no Brasil. Nesta obra de caráter lírico, Sónia Sultuane emociona o leitor ao revelar suas impressões mais profundas, como mulher, mãe, poeta e trabalhadora africana.

Os presentes, de várias nacionalidades, como moçambicanos, brasileiros e portugueses, tiveram a oportunidade de ver a exposição de livros do catálogo da Kapulana e a confraternizar em um momento precioso de divulgação da cultura moçambicana.

A Kapulana agradece a todos por terem prestigiado com sua presença o lançamento de seu novo livro Roda das Encarnações, da poeta moçambicana Sónia Sultuane.

Agradece aos colaboradores que se empenharam para que o evento ocorresse com sucesso. Agradece à escritora de Moçambique, Sónia Sultuane, por confiar sua obra à Kapulana. Agradece à Fundação Fernando Leite Couto, editora do livro em Moçambique.

O encontro foi bastante agradável e importante para que a Kapulana sinta-se forte para continuar no seu caminho de divulgar vozes literárias que, muitas vezes, ainda não ecoam no Brasil.

O livro Roda das encarnações está disponível para venda na loja virtual da Editora Kapulana.

São Paulo, 02 de outubro de 2017.

 

Saiba mais sobre o livro: https://www.kapulana.com.br/produto/roda-das-encarnacoes/

Saiba mais sobre a escritora Sónia Sultuane: https://www.kapulana.com.br/sonia-sultuane/

https://www.youtube.com/watch?v=2XBPkOZ071o 

https://www.youtube.com/watch?v=5USAVQGunz4&feature=youtu.be