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Entrevista com Carmen Lucia Tindó Secco, brasileira, organizadora do livro de ensaios “Pensando o cinema moçambicano”

CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO, da UFRJ, professora e pesquisadora de cinema e literatura de Moçambique, concede entrevista à Editora Kapulana sobre o novo livro de ensaios que organizou, Pensando o cinema moçambicano.

1- Sendo docente da área de Literatura, como surgiu seu interesse pelo Cinema, especificamente o moçambicano?

R- Há tempos venho trabalhando a correspondência entre as artes: literatura, pintura. Trabalhei Literaturas Africanas de Língua Portuguesa em diálogo com telas de importantes pintores de Moçambique, Angola , Cabo Verde. Depois, convidada a participar do Projeto “NARRATIVAS ESCRITAS E VISUAIS DA NAÇÃO PÓS-COLONIAL”- (NEVIS), coordenado por Ana Mafalda Leite da Universidade de Lisboa, me interessei também pelo cinema produzido nos países africanos de língua oficial portuguesa. Nas minhas aulas na UFRJ, projetei alguns filmes e houve uma motivação grande por parte dos alunos. A África tão distante destes ganhou uma visibilidade um pouco maior, o que propiciou diálogos mais fecundos entre narrativas literárias e cinematográficas. Ofereci várias disciplinas na Pós e na Graduação da UFRJ, propondo leituras comparadas entre literatura e cinema. Foram cursos bastante produtivos.

2- Como surgiu a iniciativa de produzir o Pensando o Cinema Moçambicano para um público brasileiro?

R- Ministrei um curso na Pós-Graduação em Letras Vernáculas na UFRJ no primeiro semestre de 2017. Os alunos gostaram muito e fizeram  monografias sobre filmes em diálogo com obras literárias de Moçambique, Angola, Guiné-Bissau. Realizamos, também, ao final do curso, uma Mostra de Cinema e trouxemos o escritor moçambicano Luis Carlos Patraquim, um dos fundadores do cinema moçambicano. A palestra proferida por ele motivou muito os alunos. Acredito que, por isso, a maioria das monografias versou sobre o cinema moçambicano e foram de qualidade. Então, resolvi publicar um livro reunindo esses trabalhos dos alunos.

Já  estou a organizar um outro livro sobre cinema, intitulado CineGrafias Moçambicanas,  em parceria com Luis Carlos Patraquim e Ana Mafalda Leite, cujos textos aprofundarão bastante a discussão sobre o cinema moçambicano ainda pouco conhecido no Brasil. Este segundo livro deve sair no ano que vem e reunirá ensaios de reconhecidos pesquisadores da área do cinema, entrevistas e crônicas de realizadores e cineastas de Moçambique, entre os quais: Camilo de Sousa, Ruy Guerra, Licínio Azevedo, Isabel de Noronha, Sol de Carvalho, João Ribeiro. Esse segundo livro lançará um outro olhar sobre o cinema moçambicano, trazendo reflexões importantes dos cineastas e realizadores.

3- É possível traçar paralelos entre o Cinema moçambicano e o brasileiro?

R- Sim. Há uma profunda ligação entre o cinema moçambicano e o brasileiro. No período logo após a independência de Moçambique, o cinema teve importante função na construção da nação moçambicana recém- libertada. Ruy Guerra, nascido em 1931 em Moçambique, residente no Brasil desde 1958, ao lado de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, participou da criação do Cinema Novo brasileiro e do processo de criação do Instituto Nacional de Cinema em Moçambique, levando cineastas e colaboradores brasileiros para Moçambique, entre os quais José Celso Martinez Corrêa, Chico Carneiro. Ruy Guerra ajudou a pensar o Instituto Nacional de Cinema em Moçambique. Mostrou que era possível fazer cinema de uma forma bem simples e não cara, com poucos meios e utilizando a realidade. Na opinião de cineastas de Moçambique, como Sol de Carvalho, “não houve uma influência estética do Ruy Guerra no cinema moçambicano. Na verdade, a influência do Ruy esteve exatamente na produção. Ele trouxe um grupo grande de brasileiros para ajudar a organizar o sistema de produção de Moçambique. Daquilo que podemos chamar os modelos de produção, há uma influência do Ruy, mas não é uma influência brasileira, é de alguns cineastas brasileiros que foram liderados por ele”. Também o cineasta brasileiro Licínio de Azevedo, radicado em Moçambique desde 1975, tem a mesma opinião. Segundo ele, “entre o cinema de Moçambique e o do Brasil, a influência, se existiu, foi ‘ao contrário’ ”.

4- Grandes títulos da produção cinematográfica moçambicana partem de obras literárias do país. Por que existe este diálogo tão intenso entre as duas linguagens?

R- Literatura e cinema em muitos países são artes que dialogam. A adaptação cinematográfica de obras literárias é encontrada em diversas partes do mundo. No caso específico de Moçambique, penso que tanto a Literatura, como o Cinema tiveram um papel importante na época da independência e também no período logo após a independência. Colônia de Portugal há séculos, assim como Angola e outros países, Moçambique precisava contar sua própria história, pensar a nação recém-libertada. Romances e filmes, como grandes relatos, são narrativas propícias a esse ato de ‘narrar a nação’, ou seja, (re)escrever a nação moçambicana, a partir de um olhar descolonizador. O projeto “NARRATIVAS ESCRITAS E VISUAIS DA NAÇÃO PÓS-COLONIAL”- (NEVIS), coordenado por Ana Mafalda Leite, do qual participei, evidencia justamente isso.

5- O Cinema africano em geral parece ser ainda pouco conhecido no Brasil. Qual você acredita que seja o caminho para que estes filmes entrem no repertório brasileiro?

R- Realmente, o cinema africano em geral é no Brasil ainda bastante desconhecido. É considerado um cinema periférico. E, como se afasta do cinema hollyoodiano, não é apoiado, nem divulgado, porque não dá lucro. O caminho, na minha opinião, seria um maior investimento das políticas públicas da Cultura e da Educação na área do cinema, principalmente dos cinemas considerados marginais. Seriam importantes festivais cinematográficos com prêmios regularmente realizados, cursos e oficinas de cinema oferecidos ao público, mostras de cinema com debates, incentivo a projetos que trabalhassem e divulgassem filmes africanos. 

6- Você teria alguma projeção sobre o futuro do Cinema moçambicano?

R- Atualmente, em Moçambique, os apoios e incentivos ao cinema desapareceram quase por completo. Vários cineastas que participaram do nascimento do cinema moçambicano apresentam um olhar bastante pessimista em relação às políticas públicas moçambicanas no que se refere à área cultural. Contudo, há uma resistência: cineastas e realizadores antigos continuam produzindo, com muitas dificuldades, mas não desistem. Há grupos de jovens também buscando outras formas cinematográficas de resistência. Há o projeto do Museu do Cinema de Moçambique. Há eventos de divulgação de filmes. Agora mesmo, entre 17 e 20 de outubro de 2018, ocorreu em Maputo a mostra intitulada “Cruzamentos Cinematográficos”. Portanto, mesmo com pouco investimento do governo moçambicano em relação ao cinema, há exibição de filmes. Há um interesse muito grande do povo moçambicano. Exemplos disso são os inúmeros prêmios conseguidos pelo filme “Comboio de Sal e Açúcar”, de Licínio Azevedo, bem como a recente concorrida estreia do longa-metragem “O Dia em que Explodiu Mabata-bata”, de Sol de Carvalho, que, mesmo debaixo de uma chuva fortíssima, colocou 400 pessoas no cinema Scala, em Maputo. Assim, embora não possa fazer uma projeção exata sobre o futuro do cinema moçambicano, penso que, como esse cinema foi muito importante após a independência, o gosto pela sétima arte está entranhado em muitos realizadores e cineastas –antigos e jovens – que continuam produzindo e hão de resistir preparando um futuro.

7- O que você indica para as pessoas interessadas em conhecer mais sobre o Cinema moçambicano e africano em geral?

R- Muitos filmes já se encontram na internet (no yotube, vimeo, etc). Há, também, escolas, oficinas e fóruns sobre cinema, há sites, projetos, publicações em livros e revistas, festivais, mostras. Vou aqui divulgar alguns. No Rio de Janeiro, há a Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Há em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros estados, mostras, como a da Caixa Cultural, nas quais foram exibidos muitos filmes africanos e moçambicanos. Há Centros de Estudos sobre Cinema em diversas universidades brasileiras. Há fóruns de cinema, como o Making off, em que podemos encontrar vários filmes. Há estudos na Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (https://rebeca.socine.org.br/1). Há Centro Afro Carioca de Cinema, com Joel Zito Araújo, Janaína Oliveira e outros que promovem encontros sobre cinema africano. Há o Cineclube Atlântico Negro, com o cineasta Clementino Jr. que também divulga filmes africanos. Há publicações importantes na Revista Mulemba 17, número inteiramente dedicado ao cinema africano (https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba); há, ainda, publicações na Revista Cerrados, uma publicação da Universidade de Brasília (http://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/view/1362/showToc). Há blogues, como INCINERRANTE, coordenado pelo Professor Marcelo Ribeiro, da UFBA, reconhecido estudioso de cinema (https://www.incinerrante.com/textos/cinema-internacional-cinemas-africanos). Há os arquivos do Festival CINEPORT (http://www.festivalcineport.com.br/).

Há o meu site CinÁfrica, com meu projeto intitulado “LITERATURA, CINEMA E AFETO: REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA EM ROMANCES E FILMES DE MOÇAMBIQUE E GUINÉ-BISSAU” (http://cinafrica.letras.ufrj.br/index.php), que nasceu como desdobramento do “Projecto NEVIS – NARRATIVAS ESCRITAS E VISUAIS DA NAÇÃO PÓS-COLONIAL”, CESA / FCT , PTDC / CPC-ELT / 4939 / 2012, coordenado pela Doutora Ana Mafalda Leite, Professora da Universidade de Lisboa, cujo link é o seguinte: http://www.nevisproject.com/page/presentation.

Há também centros de estudos em países estrangeiros. Há livros sobre o cinema em português editados em Portugal, entre os quais o de Maria do Carmo Piçarra, o de Manuela Penafria, entre outros. No Brasil, foi publicada pela Editora Boitempo de São Paulo, em 2017, a biografia escrita por Vavy Pacheco Borges, intitulada Ruy Guerra: Paixão Escancarada.

Enfim, sabendo procurar, podem ser encontrados materiais instigantes e de relevante importância para os estudos sobre cinema. Penso que o livro que organizei e o que estou organizando (ambos serão publicados pela Editora Kapulana de São Paulo) contribuirão sobremaneira para um maior conhecimento acerca do cinema africano e, especialmente, do cinema moçambicano.

18 de outubro de 2018.

Citar como:

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Entrevista. São Paulo: Kapulana, 18 out. 2018. Disponível em: https://www.kapulana.com.br/entrevista-com-carmen-lucia-tindo-secco-organizadora-do-livro-de-ensaios-pensando-o-cinema-mocambicano/

Saiba mais sobre o livro: https://www.kapulana.com.br/produto/pensando-o-cinema-mocambicano-ensaios-carmen-tindo-secco/

Saiba mais sobre a organizadora: https://www.kapulana.com.br/carmen-tindo-secco/

Leia o artigo “Pensa Kanema – escritos sobre o cinema moçambicano – por Carmen Lucia Tindó Secco”: https://www.kapulana.com.br/pensa-kanema-escritos-sobre-o-cinema-mocambicano-por-carmen-lucia-tindo-secco/