[Sobre] NARRAÇÃO NOTURNA, por João Paulo Borges Coelho, o autor

Narração noturna, por João Paulo Borges Coelho
Se me fosse pedido um só motivo para a escrita de ficção eu diria que é talvez a experimentação. Experimentar, em cada caso, com base em mecanismos diferentes, em todos os sentidos, por forma a que a viagem seja sempre uma nova e diferente viagem. Há casos em que parto de uma construção puramente imaginária, embora sempre com algum tipo de relação com o real. Mas, sendo eu historiador de profissão, é forçoso que a história, ou seja, uma versão narrada do passado, constitua muitas vezes o ponto de partida. Não só a história dos documentos mas também as histórias antigas, as memórias, os rumores, as lendas. Interesso-me muito pelas vicissitudes por que passa uma história para sobreviver, as suas transformações e adaptações, as ambiguidades de que se reveste.
Neste caso, eu tinha há algum tempo uma ideia (ainda não um tema que conduzisse à escrita de um romance) baseada em duas figuras. A primeira era esse extraordinário José Fernandes Júnior (Chiphazi), que viveu e protagonizou aqueles a que poderíamos chamar “tempos interessantes”, de transformação de todos aqueles territórios do norte da província moçambicana de Tete, do sul da actual Zâmbia e de uma parte do Malawi de territórios disputados e independentes em colónias de Portugal e da Inglaterra. Fernandes Júnior foi extraordinário no sentido em que era de todo figura invulgar um africano culto, capaz de ler e escrever, e ainda por cima testemunha ocular e participante dos grandes acontecimentos. A segunda figura era o alemão Carl Wiese, figura central nesse processo de colonização, ao serviço quer de Portugal, quer da Inglaterra, e que nos deixou um também extraordinário diário, publicado nessa altura pela Sociedade de Geografia de Lisboa. O facto de Júnior e Wiese se terem cruzado e, até, terem tido relações vagamente familiares (o que denota um “trânsito” social maior do que aconteceria um pouco mais tarde), constituiu em si a centelha para o projecto de romance. Tive acesso a alguns textos de Júnior (infelizmente não todos, nunca encontrei por exemplo um texto de Júnior sobre o alemão Wiese que sei que existe), e o Zeferino Coelho, meu editor em Portugal, ofereceu-me gentilmente uma cópia do diário de Wiese. A partir daqui fiquei com material para trabalhar, digamos assim.
Convém dizer também, nesta altura, que durante muito tempo acreditei que cedo ou tarde a verdade das coisas acabava sempre por vir ao de cima. Hoje não sou tão optimista, além de que sei que existem várias formas de verdade. Muita coisa se perde, não só por esquecimento (esquecer é até necessário para abrir espaço a novas lembranças) mas também por ficar enterrada no cemitério das pequenas coisas que não chegaram a ter suficiente importância para serem colectivamente lembradas, ou, tantas vezes, por terem sido escondidas deliberadamente, ou até profundamente transformadas. O móbil do historiador é perseguir essas supostas verdades, tentar encontrá-las seja lá onde se escondem. O ficcionista tem prioridades diferentes, em grande medida ligadas também à estética e à linguagem de maneira que não cabe aqui resumir. Cabe, sim, relativamente ao tema de que vinha falando, dizer que o objectivo não era a pomposa motivação de “repor a verdade”, mas o de imaginar arbitrariamente (no sentido de recorrer a critérios próprios, literários se quisermos) o percurso de Wiese e Junior nesse meio e nesse tempo, e, enfim, de imaginar aquilo que não se sabe. E sabe-se muito pouco de Júnior, para além dos textos que deixou. Criei-lhe uma filha voluntariosa que pus a mover-se num burro, refiz um ambiente na Chiúta do qual sei muito pouco. E deixei-me conduzir, como sempre, pelas forças escondidas que fazem avançar o romance, nessa altura muito mais fortes do que o princípio da procura da magra verdade a partir das fontes escassas, embora com noção das fortes “pontes éticas” entre os dois campos, o da realidade e o da ficção.
Claro que existem mil e uma outras motivações escondidas no romance. Refiro algumas, sem a preocupação de ser exaustivo. Desde logo, combater a dicotomia verdadeira, mas também algo simplificadora do colonizador por um lado e do colonizado por outro, uma dicotomia que acaba por esconder tanta coisa. A época vivida no romance é riquíssima a este respeito, no sentido em que nos mostra os conflitos existentes no interior dessas duas categorias. Por um lado temos os invasores Nguni recém chegados do sul, que desmantelam com violência os restos do outrora poderoso império Marave e colidem com os senhores de escravos afro-goeses. E, por outro, a competição surda entre portugueses e ingleses, e entre grandes companhias coloniais, pelo domínio dos territórios. Vários interesses em conflito, tornando esta vasta região em espaço violento e em transformação. Tendo Wiese e Júnior vivido estes “tempos interessantes”, os seus relatos permitem-nos uma visão praticamente directa e pormenorizada de alguns dos acontecimentos mais importantes.
O empreendimento também permitiu desafiar uma ideia arreigada segundo a qual a história é escrita pelo colonizador e contada oralmente pelo colonizado. Embora seja verdade em grande medida, há também casos, como este, de excelentes relatos escritos levados a cabo pelo colonizado.
Ainda uma outra motivação indirecta é a de confrontar o conceito de “Herói” que impera nas nossas sociedades, tantas vezes destinado a cobrir de imunidade as acções do presente. Há que torná-lo ambíguo e complexo por forma a desafiar a heroicidade de tantos ditos heróis da independência que a velhice transformou em predadores ávidos, impiedosos e soezes das riquezas nacionais. O que significa ser herói? José Fernandes Júnior não foi um herói. Escreveu a pedido das autoridades coloniais e foi até medalhado por elas. Procurou “imitar” os empresários europeus, investindo na agricultura comercial numa altura em que esta estava condenada ao fracasso devido às extremas dificuldades de comunicação com os mercados e os europeus a abandonavam em favor de outros negócios. Junior chegou sempre tarde na sua luta por conquistar privilégios que se começavam a desenhar como exclusivos dos europeus. Mas dentro dos seus textos adivinha-se uma angústia resultante do confronto com a sua condição africana subalterna, e é em parte isso que o romance procura explorar.
João Paulo Borges Coelho
Escritor e historiador
Autor das seguintes obras publicadas pela Kapulana no Brasil:
- 2019 – As visitas do Dr. Valdez
- 2020 – Crônica da Rua 513.2
- 2021 – Quatro histórias
- 2022 – Museu da Revolução
- 2024 – Roteiros provinciais: novelas
- 2025 – Narração noturna
Citar como:
COELHO, João Paulo Borges.“[Sobre] Narração noturna, de João Paulo Borges Coelho”. São Paulo: Kapulana, 2025. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/sobre-narracao-noturna-por-joao-paulo-borges-coelho-o-autor/>
O livro:
COELHO, João Paulo Borges. Narração noturna. São Paulo: Kapulana, 2025. [Vozes da África]. Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/produto/narracao-noturna/>
[12/08/2025]